segunda-feira, 6 de maio de 2013

"Quando

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
"

*Álvaro de Campos
(heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “Livro de Versos”, Lisboa, Editora Estampa, 1993.

2 comentários:

Brilho disse...

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A Canção

Enquanto os teus olhos ainda estão cerrados sobre os
mistérios noturnos da alma
E o dia ainda não abriu as suas pálpebras,
Nasce a canção dentro de ti como um rumor de águas,
Nasce a canção como um vento despertando as folhagens...
Não vem de súbito, vem de longe e de muito tempo.

Mas - agora - estás desperto na cidade e não sabes,
Entre tantos rumores e motores,
Como é que tens de súbito esta serenidade
De quem recebesse uma hóstia em pleno inferno.

Deve ser de versos que leste e nem te lembras,
De telas, de estátuas que viste,
De um sorriso esquecido...
E destas sementes de beleza
E que
- às vezes -
No chão do rumoroso deserto em que pisas,
Brota o milagre da canção!

Mário Quintana
in “A Cor do Invisível”

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Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade,
in "As Palavras Interditas"


Fraterno abraço, amiga!

Elaine Bastos disse...

BIluminado,

Grata, grata, gratíssima!
Estas poesias compartilhadas... dizem-me sempre tanto...
Fraternurentos abraços meus.