domingo, 15 de novembro de 2015

Devolve

Mandaste as velhas cartas comovidas,
Que na febre do amor, te enviei;
Mandaste o que ficou de duas vidas:
O romance, uma dor, que provei...
Mandaste tudo, porém,
Falta o melhor que eu te dei:
Devolve toda a tranquilidade,
Toda a felicidade
Que eu te dei e que perdi.
Devolve todos os sonhos loucos
Que eu construí aos poucos,
E te ofereci.
Devolve, eu peço, por favor,
Aquele imenso amor
Que nos teus braços esqueci.
Devolve, que eu te devolvo ainda
Esta saudade infinda
Que eu tenho de ti.


*Composição: Mário Lago 

Execução: Carlos Galhardo*
Ode ao silêncio

Vesti o silêncio com teu rosto.

Na passagem das horas,
fiquei menos só;
fiquei mais triste.

Somente ao construir
a tua ausência
é que pude entender
de que consiste.

Não me importa o que tu
és ou não és,
mas o que tanto foste
e que persiste,

ornamentado o silêncio.

As palavras te recriam
do fundo irretocável do passado
como uma silhueta móvel.


*Ildásio Tavares*
Em “50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares)”, Rio de Janeiro, 
Edições Galo Branco, 2006.
Intenção de outono

Queria compreender o outono,
tantos e diversos amarelos,
caindo e atapetando o chão.
Fácil e o verão,
seu espetáculo de sol sobre o azul.
E a primavera com seu ramalhete
de bromélias febris; de acácias
e de orquídeas selvagens.

Queria compreender o outono,
seus amarelos que caem;
sua intenção de aos poucos avançar
até a neve – o inverno
com seu horizonte de chumbo.


*Ildásio Tavares*
Em “50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares)”, Rio de Janeiro, 
Edições Galo Branco, 2006.
RESTOS

Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda parte
Que nunca pude ser inteiramente.


*Ildásio Tavares*
Em “50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares)”, Rio de Janeiro, 
Edições Galo Branco, 2006.
Da minha janela

Mar alto! Ondas quebradas e vencidas
Num soluçar aflito e murmurado...
Vôo de gaivotas, leve, imaculado,
Como neves nos píncaros nascidas!

Sol! Ave a tombar, asas já feridas,
Batendo ainda num arfar pausado...
Ó meu doce poente torturado
Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!

Meu verso de Samain cheio de graça,
’Inda não és clarão já és luar
Como branco lilás que se desfaça!

Amor! Teu coração trago-o no peito...
Pulsa dentro de mim como este mar
Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...


*Florbela Espanca*
Em “FLORBELA ESPANCA – SONETOS COMPLETOS”, Lisboa, 
Editora Coimbra–Livraria Gonçalves, 9ª Edição, 1952.
As minhas ilusões

Hora sagrada dum entardecer
D’ Outono, à beira-mar, cor de safira.
Soa no ar uma invisível lira...
O sol é um doente a enlanguescer...

A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!

O sol morreu... e veste luto o mar...
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol d’espuma.

As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna d’ oiro,
No mar da Vida, assim... uma por uma.


*Florbela Espanca*
Em “FLORBELA ESPANCA – SONETOS COMPLETOS”, Lisboa, 
Editora Coimbra–Livraria Gonçalves, 9ª Edição, 1952.
Outonal

Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
– Brumas longínquas do País do Vago...

Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...

Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
– Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...


*Florbela Espanca*
Em “FLORBELA ESPANCA – SONETOS COMPLETOS”, Lisboa, 
Editora Coimbra–Livraria Gonçalves, 9ª Edição, 1952.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
− para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.


*José Gomes Ferreira*
Em “Poesia-I”, Lisboa, Editora Portugália, 2ª Edição, 1962.
Que ando a esconder de mim

Que ando a esconder de mim
com estes gritos de unhas
contra a injustiça do mundo
que só me deixam no coração
tédios de céu afogado?

Que ando a esconder de mim
com esta raiva do amor pelos outros,
a querer arrancar lágrimas de tudo
para as colar nos olhos vazios?

Que ando a esconder de mim
nesta agonia de escurecer a alma
para a confundir com a noite
– bandeira negra de todos os humilhados?

Que ando a esconder de mim
sem coragem de mostrar aos homens
a minha pobre dor,
tão débil e exígua,
que em vão oculto atrás de toda a dor humana
para a tornar maior?


*José Gomes Ferreira*
Em “Poesia-I”, Lisboa, Editora Portugália, 2ª Edição, 1962.
Ah! Como te invejo

Ah! Como te invejo,
pássaro que cantas
o silêncio das plantas
 
alheio à tempestade.

Vives sem chão
ao sol a cantar
a grande ilusão
da liberdade...

(...com algemas de ar.)


*José Gomes Ferreira*
Em “Poesia-I”, Lisboa, Editora Portugália, 2ª Edição, 1962.
Os meus versos

Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os inspirou?

Adivinhaste? Eu não posso acreditar
Que adivinhasses, vês? E até, sorrindo.
Tu disseste para ti: ‘Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,

Ficar amando um homem!... Que loucura!’

  Pois foi o teu olhar; a noite escura,
  (Eu só a ti digo, e muito a medo...)

Que inspirou esses versos! Teu olhar
Que eu trago dentro d'alma a soluçar!
Aí não descubras nunca o meu segredo!


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.
Aos olhos d'ele

Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda a gente
Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,
Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa
Que criou esse brilho que m'encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus
!”

*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.
Mistério d'amor

Um mistério que eu trago dentro em mim
Ajuda-me, minh’alma a descobrir…
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Vivemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde… houve um fulgor,
Um olhar que brilhou… e mansamente…
Ai, dize ó meu encanto, meu amor:

Porque foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d’amor e de saudade?!


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.
Meu fado, meu doce amigo
Meu grande consolador
Eu quero ouvir-te rezar,
Orações à minha dor!

Só no silêncio da noite
Vibrando perturbador,
Quantas almas não consolas
Nessa toada d'amor!

Cantando p'r uma voz pura
Eu quero ouvir-te também
P'r uma voz que me recorde
A doce voz do meu bem!

Pela calada da noite
Quando o luar é dolente
Eu quero ouvir essa voz
Docemente... docemente...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.