quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 “Sonêto 168

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.


*Luís Vaz de Camões*
Em “Sonetos de Camões”, São Paulo, Editora Ateliê Editorial, 1ª Edição, 1998.

 “Cântico XIII

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.


*Cecília Meireles*
Em “Cânticos”, São Paulo, Editora Moderna, 2ª Edição, 1982.

Para o ANO VINDOURO, economizei nos desejos:

[...] 

Pedi a Deus que nos desse muita saúde e felicidade,
não pedi coisas demais para não confundir Deus
que à meia-noite de ano-novo está tão ocupado.

[...]

*Clarice Lispector*
Fragmento da carta que Clarice Lispector enviou para Tania Kaufmann,
em 02 janeiro de 1947.
Extraí daqui:
https://site.claricelispector.ims.com.br/acervo/cartas/067405-2/

 

No ano passado

Já repararam como é bom dizer ‘o ano passado’? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem... Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse ‘tudo’ se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraordinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

‘Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados’.

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição – morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras coisas é que, nestas calçadas claras do ano bom:

Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
‘Como é possível sem doutrinação?!’

Mas entendem-me o céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
‘Olha! É o idiota desta Aldeia!’ dizem...


*Mario Quintana*
Em “Mario Quintana - Poesia Completa – Porta Giratória”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, Volume Único, 1ª Edição, 2005.

[...] 

O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar,
mas ao mesmo tempo, viver como se esta minha vida fosse eterna.
” 

[...]  

*Clarice Lispector*
Excerto da crônica “As três experiências”,
publicada no Jornal do Brasil, em 11 de maio de 1968, Rio de Janeiro.

O tempo corre, passam-se os dias, e o ano vai rapidamente chegando a seu termo;
mais algumas semanas e ele cairá na eternidade
como um grão de areia na ampulheta das horas.

A comparação não tem nada de novo, é muito antiga;
mas por isso mesmo acho-a excelente para um ano velho e caduco,
que está tão próximo a deixar-nos, que os historiadores já se preparam
para disseca-lo e fazer-lhe autópsia.

Assim, esse pouco tempo que nos resta é consagrado ao adeus e às despedidas.
Tudo se despede, e os dias vão correndo de despedida em despedida
até que chegue o momento de dizermos a este ano, como se diz no Barbeiro de Sevilha
ao massante D. Basílio: Buona sera, mio signor.

[...]

*José de Alencar*
Fragmento da crônica XII, publicada no “Correio Mercantil”, de 26 de novembro de 1854. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 Dezembro

Feliz Dezembro!
Profusão de verdes novos
As cajazeiras todas se enfolharam,
Sobre os telhados voando as andorinhas;
Feliz Dezembro!
Como vai florido este verão!
Sombra de nuvem corre pela estrada,
Sombras de árvores curvando

se recuam, rastejam:
Negros escravos do sol;
Eu vejo os subúrbios tranqüilos,
A paz dominical entre os homens e as coisas,
As casas brancas de telhados de biqueira
E fico a pensar e a sentir
Dentro da minha tristeza espiritualizada.
Tenho a suspeita de um talvez feliz,
Vaga incerteza de um prazer antigo.
Ah! Desejo de lembrar coisa esquecida,
Raras, remotas, imprecisas volúpias
de segredo e de saudade.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.

O PRESÉPIO

Na palhoça iluminada,
Que fica junto da ermida,
Des que a missa foi cantada
Se congrega a multidão;
Toldo de mirta florida,
Flores de mágico aroma
Ornam o presépio, que toma
Na sala grande extensão.

Quão lindo está! Não lhe falta
Nem o astro milagroso
Que de repente brilhou;
Nem o galo, que o repouso
Deixara por noite alta
E que inspirado cantou!

Tudo o que a lenda memora
E consagra a tradição,
Vê-se ali, grosseiro embora,
Despido de perfeição.

Céu de estrelinhas douradas,
Estrelas de papelão;
Brancas nuvens fabricadas
Da plumagem do algodão!

Anjos soltos pelos ares,
Peixes saindo dos mares,
Feras chegando do além.
Marcha tudo, e vêm na frente
Os Reis Magos do Oriente
Em demanda de Belém.

É esta a lapa; o Menino
Nas palhas está deitado,
Com um sorriso de alegria
Todo doçura e amor!

Contempla o quadro divino
São José ajoelhado,
E a Santíssima Maria
De Jericó meiga flor!

Trajando risonhas cores
Com muitos laços de fitas,
Rapazes, moças bonitas
Formam grupos de pastores.

Que curiosos bailados,
Com maracás e pandeiros!
E o ruído dos cajados
Desses risonhos romeiros!

Essa quadrilha dançante,
Cantando versos festivos,
Aos pés do celeste infante
Vai depor seus donativos:

Frutas, doces, sazonadas,
Ramilhetes de açucenas,
Cera, peles delicadas,
Pombinhos de brancas penas.

São as joias que os pastores
Dão ao Deus onipotente!
E o povo aplaude os cantores
E o espetáculo inocente.

Eis o presepe singelo
Da devoção popular;
Oratório alegre e belo
Sagrado, risonho altar!


*Joaquim Serra* (Joaquim Maria Serra Sobrinho)
Em “Poesia Brasileira para a Infância”, de Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito,
São Paulo, Editora Saraiva, 1969.

 Chove. É dia de Natal
                                
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove o Natal presente.
Antes isso que nevar.
 
Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés”
.
   
*Fernando Pessoa*
Em “Cancioneiro – Obra Poética V”, São Paulo, L&PM Pocket Editores, 1ª Edição, 2007.

Natal

Vejo a estrela que percorre
a noite larga.
Vejo a estrela que perturba
fundos mares.
Vejo a estrela que revela
a eternidade.

Mas para onde foi a estrela
contemplada?
Para onde foi no momento
mais amargo?
Em que cimos ora habita
que debalde
a procuro nestas frias
orvalhadas?

Vejo a estrela – tão de súbito! –
ao meu lado.
Vejo os olhos do Menino
desejado.


*Henriqueta Lisboa*
Em “Henriqueta Lisboa, Poesia, Obra completa – Nova Lírica”,
Volume 1, Editora Peirópolis, 1ª Edição, 2020.

Consoada

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.


*Miguel Torga*
Em "Poesia Completa", Coimbra, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.

 “Presepe

Chorava o menino.

Para a mãe, coitada,
Jesus pequenito,
De qualquer maneira
(Mães o sabem…), era
Das entranhas dela
O fruto bendito.
José, seu marido,
Ah esse aceitava,
Carpinteiro simples,
O que Deus mandava.
Conhecia o filho
A que vinha neste
Mundo tão bonito,
Tão mal habitado?
Não que ele temesse
O humano flagício:
O fel e o vinagre,
Escárnios, açoites,
O lenho nos ombros,
A lança na ilharga,
A morte na cruz.
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
– Esse bicho estranho
Que desarrazoa
Muito presumido
De sua razão;
– Esse bicho estranho
Que se agita em vão;
Que tudo deseja,
Sabendo que tudo
É o mesmo que nada;
– Esse bicho estranho
Que tortura os que ama;
Que até mata, estúpido,
Ao seu semelhante
No ilusivo intento
De fazer o bem!
Os anjos cantavam
Que o menino viera
Para redimir
O homem – essa absurda
Imagem de Deus!
Mas o jumentinho,
Tão manso e calado
Naquele inefável,
Divino momento,
Esse bem sabia
Que inútil seria
Todo o sofrimento
No Sinédrio, no horto,
Nos cravos da cruz;
Que inútil seria
O fel e vinagre
Do bestial flagício;
Ele bem sabia
Que seria inútil
O maior milagre;
Que inútil seria
Todo sacrifício…


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira – Belo belo”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 15ª Edição, 1988.

 “A Anunciação

Seis meses passados sobre
A angélica anunciação
Do nascimento de João, Santo filho de Isabel,
Baixou o arcanjo Gabriel
À Galiléia e na casa
Do carpinteiro José
Entrou e diante da virgem
Desposada com o varão
– Maria ela se chamava –
Curvou-se em genuflexão.
Dizendo com voz suave
Mais que a aura da manhã: ‘Ave,
Maria cheia de graça!
Nosso Senhor é contigo,
Tu bendita entre as mulheres’.
E ela, vendo-o assim, turbou-se
Muito de suas palavras.
Mas o anjo, tranquilizando-a,
Falou: ‘Maria, não temas:
Deus escolheu-te, a mais pura
Entre todas as mulheres,
Para um filho conceberes
No teu ventre e, dado à luz,
O chamarás de Jesus;
O santo Deus fá-lo-á grande,
Dar-lhe-á o trono de Davi,
Seu reino não terá fim’.
E disse Maria ao anjo:
‘Como pode ser assim,
Se não conheço varão?’
E, respondendo o anjo, disse-lhe:
‘Descerá sobre ti o Espírito
Santo e a virtude do Altíssimo
Te cobrirá com sua sombra;
Pelo que também o Santo
Que de ti há de nascer,
Filho de Deus terá nome,
Com ser filho de mulher,
Pois tua prima Isabel
Não concebeu na velhice,
Sendo estéril? A Deus nada
É impossível’. O anjo disse
E afastou-se de Maria.
Como no extremo horizonte
A primeira, desmaiada
Celagem da madrugada,
Duas rosas transluziram
Nas faces da Virgem pura:
Já era Jesus no seu sangue,
Antes de, infinito Espírito
Mudado em corpo finito,
Se fixar em forma humana
na matriz santificada.


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da vida inteira – Estrela da Tarde”, Rio se Janeiro, José Olympio Editora,
15ª Edição.

 “Natal sem Sinos

No pátio a noite é sem silêncio.
E que é a noite sem o silêncio?
A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos
Do meu Natal sem sinos?

Ah meninos sinos
De quando eu menino!

Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio.
Sinos do Poço, do Monteiro e da Igrejinha de Boa Viagem.

Outros sinos
Sinos
Quantos sinos

No noturno pátio
Sem silêncio, ó sinos
De quando eu menino,
Bimbalhai meninos,
Pelos sinos (sinos
Que não ouço), os sinos de
Santa Luzia.


*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

Natal

Penso em Natal. No teu Natal. Para a bondade
A minh’alma se volta. Uma grande saudade
Cresce em todo o meu ser magoado pela ausência.
Tudo é saudade… A voz dos sinos… A cadência
Do rio… E esta saudade é boa como um sonho!
E esta saudade é um sonho… Evoco-te… Componho
O ambiente cuja luz os teus cabelos douram.
Figuro os olhos teus, tristes como eles foram
No momento final de nossa despedida…
O teu busto pendeu como um lírio sem vida,
E tu sonhas, na paz divina do Natal…

Ó minha amiga, aceita a carícia filial
De minh’alma a teus pés humilhada de rastos.
Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos…
Ampara a minha fronte, e que a minha ternura
Se torne insexual, mais do que humana, – pura
Como aquela fervente e benfazeja luz
Que Madalena viu nos olhos de Jesus…


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

 Orfandade

Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.


*Adélia Prado*
Em “Bagagem”, Rio de Janeiro, Editora Record, 27ª Edição, 2008.

sábado, 19 de dezembro de 2020

 Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, Porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

 “Oração para os que estão envelhecendo
 
Ó, Senhor, Tu sabes melhor do que eu que estou envelhecendo a cada dia.
E que um dia estarei velha.
Livra-me da tolice de achar que devo dizer algo em todas as ocasiões.
Livra-me do desejo enorme de pôr em ordem a vida dos outros.
Ensina-me a pensar sobre os outros,
a ajudar os outros, sem me impor sobre eles, apesar da enorme sabedoria que acumulei (seria uma pena não passá-la para os outros!),
tu sabes, Senhor, que eu desejo preservar alguns amigos.
Livra-me da tolice de querer contar todos os detalhes
e dá-me asas para voar diretamente ao ponto que interessa.
Ensina-me a fazer silêncio sobre doenças e dores.
Elas estão aumentando e, com isso,
a vontade de descrevê-las aumenta também a cada ano que passa.
Não ouso pedir o dom de ouvir com alegria as descrições das doenças dos outros.
Ensina-me simplesmente a suportá-las com paciência.
Ensina-me a maravilhosa sabedoria de saber que posso estar errada.
Mantenha-me o mais amável possível.
Não quero ser Santa.
É tão difícil conviver com os santos!
Mas um velho rabugento é a obra-prima do diabo.
Ensina-me a descobrir talentos inesperados em outras pessoas.
E dá-me, Senhor, o belo dom de dizer a eles que descobri seus talentos.


*Teresa de Ávila*
Em “O Espírito de DEUS Pairou Sobre as Águas - Orações para o Século XXI,
Rose Marie Muraro
”, São Paulo, Editora Pensamento, 1ª Edição, 2004.

 “Becos de Goiás

Beco da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia,
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha,
jogada no teu monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
descendo de quintais escusos
sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida, de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada.

Amo esses burros-de-lenha
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros,
secos, lanzudos, malzelados, cansados, pisados.
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra,
no range-range das cangalhas.

E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja.
Sem infância, sem idade.
Franzino, maltrapilho,
pequeno para ser homem,
forte para ser criança.
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade.

Amo e canto com ternura
todo o errado da minha terra.
Becos da minha terra,
discriminados e humildes,
lembrando passadas eras...

Beco do Cisco.
Beco do Cotovelo.
Beco do Antônio Gomes.
Beco das Taquaras.
Beco do Seminário.
Bequinho da Escola.
Beco do Ouro Fino.
Beco da Cachoeira Grande.
Beco da Calabrote.
Beco do Mingu.
Beco da Vila Rica...

Conto a estória dos becos,
dos becos da minha terra,
suspeitos... mal afamados
onde família de conceito não passava.
Lugar de gentinha
diziam, virando a cara.
De gente do pote d’água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco.
Quarto de porta e janela.
Prostituta anemiada,
solitária, hética, engalicada,
tossindo, escarrando sangue
na umidade suja do beco.

Becos mal assombrados.
Becos de assombração...
Altas horas, mortas horas...
Capitão-mor
alma penada,
terror dos soldados, castigado nas armas.
Capitão-mor, alma penada,
num cavalo ferrado,
chispando fogo,
descendo e subindo o beco,
comandando o quadrado
feixe de varas...
Arrastando espada, tinindo esporas...

Mulher-dama. Mulheres da vida,
perdidas,
começavam em boas casas, depois,
baixavam pra o beco.
Queriam alegria. Faziam bailaricos.
Baile Sifilítico era ele assim chamado.
O delegado-chefe de Polícia
brabeza
dava em cima...
Mandava sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
cabeça raspada a navalha,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz,
na frente da Cadeia.

Becos da minha terra...
Becos de assombração.
Românticos, pecaminosos...
Têm poesia e têm drama.
O drama da mulher da vida, antiga,
humilhada, malsinada.
Meretriz venérea,
desprezada, mesentérica, exangue.
Cabeça raspada a navalha,
castigada a palmatória,
capinando o largo,
chorando. Golfando sangue.

(ÚLTIMO ATO)

Um irmão vicentino comparece.
Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara.
Uma passagem de terceira no grande coletivo de São Vicente.
Uma estação permanente de repouso
no aprazível São Miguel.

Cai o pano.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Global Editora, 23ª Edição, 2006.

 “RIO VERMELHO

Longe do Rio Vermelho       
Fora da serra dourada.
Distante desta cidade,
Não sou nada, minha gente.

Sem rebuço, falo sim.
Publico para quem quiser.
Arrogante digo a todos.
Sou Paranaíba para cá.
E isto chega pra mim.

Rio Vermelho das janelas da casa velha da ponte...
Rio que se afunda de baixo das pontes.
Que se alarga nos remansos.
Esteira de lambaris.
Peixe cascudo nas locas.

Rio, vidraça do céu.
Das nuvens e das estrelas.
Tira retrato da lua.

Da lua quarto crescente
Que mora detrás do morro.
Lua que veste a cidade de branco
E tece rendado de marafunda
Na sombra das cajazeiras.

Rio de águas velhas.
Roladas das enxurradas.
Crescidas das grandes chuvas.
Chovendo nas cabeceiras.
Rio do princípio do mundo
Rio da contagem das eras.

Rio – mestre de química.
Na retorta das corredeiras,
Corrige canos, esgoto, bueiros,
Das casas das ruas, dos becos.
Da minha terra.

Rio, santo milagroso.
Padroeiro que guarda e zela
A saúde da minha gente,
Da minha antiga cidade largada.
Rio de lavadeiras lavando roupa.
De menino lavando o corpo.
De potes se enchendo da água.
E quem já ficou doente da água do rio?
Quem já teve ferida braba, febre malina,
Pereba, sarna ou coceira?

Rio, meu pobre Jô...
Cumprindo sua dura sina.
Raspando sua lazeira
Nos cacos dos seus monturos.
Rio, Jô que se alimpa,
Pela graça de deus, virgem santa Maria,
Nas cheias de suas enchentes
Que carregam seus monturos.

Ponte da lapa da minha infância...
Da escola da Mestra Silvina,
Do tempo em que eu era Aninha...

Ponte do Carmo, querida,
Dos namorados de longe.
Pó onde passava enterro,
Dos anjinhos de Goiás,
Que iam pro cemitério,
Pintadinho de carmin.
E a música tocando atrás
A valsa da despedida.

Ponte nova do Mercado
– Foi pinguela do Antônio Manuel,
Banheiro da meninada.
Ponte do padre pio dos potes d’água.
Carioca de nós todos.
Pinguelona dos destemidos,
Contando a estória de um sino.

Sino grande, impensado,
Nas locas da cachoeira.
Sino da igreja da Lapa,
Que rodou na grande enchente
Tocando pro rio abaixo.
Até que parou imprensado
Nas pedras da pinguelona.

Gente que passa ali perto
Conta estória do sino:
Inda toca à meia-noite
Quando a cidade se aquieta,
E as águas ficam dormindo

Tange, pedindo uma graça:
Que algum cristão caridoso,
O salve daquele poço,
O tire debaixo d´águas
Pois seu destino de sino
É no de uma torre
Abençoando a cidade.
Dando aviso para o povo
– louvar a deus poderoso.

Poço da mandobeira...
Poço do bispo...
Sombras de velhos banhistas dos velhos tempos.
Sabão do reino no bolso.
Toalha passada ao ombro
Cigarro de palha no bico.
A vitamina do banho.
Banho da carioca.
Águas vitaminadas...

Rio vermelho – meu rio.
Rio que atravessei um dia
(Altas horas, mortas horas.)
há cem anos...
em busca do meu destino.

Da janela da casa velha
Todo dia, de manhã,
Tomo a bênção do rio:
– Rio Vermelho, meu avozinho,
Dá sua bênção pra mim...

Na minha alma, hoje, também corre um rio,
um longo e silencioso rio de lágrimas que meus
olhos fiaram uma a uma e que há de ir subindo,
subindo sempre, até afogar e submergir na tua
profundeza sombria a intensidade da minha dor!…


*Cora Coralina*
Em “VILLA BOA DE GOYAZ”, São Paulo, Global Editora, 1ª Edição, 2001.

 “Pablo Neruda (I)

Perdoa-me poeta.
Tão tarde o conheci.
Tantos cantores pelo mundo…
Para minha ignorância
eras mais um deles.

Foi assim que não pedi a Deus
poupar-te a vida
e ficares para sempre
semente viva, incorruptível,
de beleza excelsa e universal.

Ninguém me disse antes.
Ninguém me disse nada.
Ninguém me fez a doação fraterna
de um livro teu.

Perdida no meu sertão goiano,
só o teu nome, Pablo,
só o teu apelido crespo, Neruda,
chegaram a mim…
E eu a pensar que foste apenas
um grande poeta entre outros grandes…

Foi assim que não pedi ao Criador
poupar-te a vida
e ficares para sempre.

Semente viva e luminosa,
sementeira e semeador,
semeando o pão e o vinho
da tua poesia
na terra faminta, desolada e triste.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Pedras

Os morros cantam para meus sentidos
a música dos vegetais
que se movem ao vento.
 
As pedras imóveis me enviam
uma bênção ancestral.
Debaixo da minha janela
se estende a pedra-mãe.
 
Que mãos calejadas
e imensas mãos sofridas de escravos
a teriam posto ali,
para sempre?
 
Pedras sagradas da minha cidade,
nossa íntima comunicação.
Lavada pelas chuvas,
queimada pelo sol,
bela laje velhíssima e morena.
 
Eu a desejaria sobre meu túmulo
e no silêncio da morte,
você, uma pedra viva, e eu,
teríamos uma fala
do começo das eras.

*Cora Coralina*
Em “VILLA BOA DE GOYAZ”, São Paulo, Global Editora, 1ª Edição, 2001.

  Minha cidade

Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras.
 
Eu sou aquela menina feia 
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
 
Eu sou aquela mulher
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
contando estórias,
fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
Eu vivo nas tuas igrejas
e sobrados
e telhados
e paredes.
 
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.
Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.
 
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
 
Eu sou a dureza desses morros,
revestidos,
enflorados,
lascados a machado,
lanhados, lacerados.
Queimados pelo fogo.
Pastados.
Calcinados
e renascidos.
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as virações
de minha sensibilidade de mulher,
têm, aqui, suas raízes.
 
Eu sou a menina feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985. 
 
        

                                                                  O poeta e a poesia

Não é o poeta que cria a poesia.
E sim, a poesia que condiciona o poeta.
 
Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
Poeta é o operário, o artífice da palavra.
E com ela compõe a ourivesaria de um verso.
 
Poeta, não somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia,
se extasia sensível ao achado
de uma rima, à autenticidade de um verso.
 
Poeta é ser ambicioso, insatisfeito,
procurando no jogo das palavras,
no imprevisto texto, atingir a perfeição inalcançável.
 
O autêntico sabe que jamais
chegará ao prêmio Nobel.
O medíocre se acredita sempre perto dele.
 
Alguns vêm a mim.
Querem a palavra, o incentivo, à apreciação.
Que dizer a um jovem ansioso na sede precoce de lançar um livro...
Tão pobre ainda a sua bagagem cultural,
tão restrito seu vocabulário,
enxugando lágrimas que não chorou,
dores que não sentiu,
sofrimentos imaginários que não experimentou.
 
Falam exaltados de fome e saudades, tão desgastadas
de tantos já passados.
Primário nos rudimentos de sua escrita
e aquela pressa moça de subir.
Alcançar estatura de poeta, publicar um livro,
 
Oriento para a leitura, reescrever,
processar seus dados concretos.
Não fechar o caminho, não negar possibilidades.
É a linguagem deles, seus sonhos.
A escola não os ajudou, inculpados, eles.
 
Todos nós temos a dupla personalidade.
O id e o ego.
Um representa a sua vida física, material completa
Pode ser brilhante, enriquecida de valores que ajudam a ser feliz,
pode ser angustiada e vacilante, incerta, insatisfeita.
Mesmo possuindo o que deseja, nada satisfazendo.
O id representa sua vida interior paralela, ambivalente,
exercendo seu comando em descargas nervosas,
no eterno conflito entre a razão e o impulso incontrolado.
Dupla vida inter e extra, personalidade se contrapondo.
Pode ser trivial e dependente, podemos fazê-la rica e cheia de nobreza,
nos valendo da força incomensurável do pensamento positivo
emanado da vida interior que é o nosso mundo,
invisível a todos, sensível ao nosso ego.
 
Há sempre uma hora maldita na vida de um homem.
Pode levá-lo ao crime e às paredes sombrias de uma cela escura.
Um curto circuito nas suas baterias carregadas,
uma descarga nas linhas de transmissão potencial.
Daí, fatos aberrantes que surpreendem.
 
Conclusões demolidoras de um passado brilhante.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.