“Poente
A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.
Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...
Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.
Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,
Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma
Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.”
*Fernando Pessoa*
Em “Poesia do Eu”, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2ª Edição, 2006.
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
Os teus olhos perpetuavam a lembrança dos grandes rios
perpassando na bruma antiquíssima da montanha
e tinham o silêncio trémulo transparente das estrelas
que se extinguem ao clarim da aurora
Os teus olhos tinham a serenidade dos grandes dias
iluminando a cinza prateada das escarpas
na cor serena tranquila das memórias
que renascem ao clarim da aurora
Os teus olhos tinham o sussurro rumorejante das ervas
onde crescem os ventos ágeis da planície
a luz milenar da manhã primeira
que me acordou ao clarim da aurora.”
*José Vieira Calado*
Extrai daqui: https://vieiracalado-poesia.blogspot.com/2015/01/os-teus-olhos.html
“Espectros
Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda,
Erguendo o olhar, exausto de tanto estudo,
Vejo ante mim, no aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,
Da lâmpada à inconstante claridade,
(que, ao vento, ora esmorece, ora se aviva
Em largas sombras e esplendor de sóis)
Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva,
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.
Defronte da janela, em que trabalho,
Nas horas quietas, em que tudo dorme,
Sobranceira e viril, como um carvalho,
Alevanta-se espessa árvore enorme.
O zéfiro em um momento escrepa um galho
À sua barba: e, ou seja que a transforme
O vento ou meu olhar, a árvore enorme,
Erguida ante a janela em que trabalho,
Toma a feição de uma cabeça rude,
Sonolenta e selvática oscilando
Numa estranha, fantástica atitude.
E, posta a contemplá-la, esta alma cuida
Ver sob o azul do céu, diáfano e brando,
A fronte erguer, leonina, o último druida.”
*Cecília Meireles*
Em “Espectros”, São Paulo, Editora Global, 3ª Edição, 2013.
terça-feira, 3 de novembro de 2020
o perpassar dos dias
o lento fervilhar do tempo em seus artifícios
de claridade e sombras
trazem-nos a este lugar preciso
de quietude
em ondulações do silêncio e apaziguamento.
É aqui
onde deveremos aprender
os festejos da luz
a sombra do pecado original
dos fascínios
pelo regresso urgente
a nossa casa.”
*José Vieira Calado*
Extraí daqui: https://vieiracalado-poesia.blogspot.com/2015/02/?m=0