sexta-feira, 14 de novembro de 2014

  Tão sutilmente em tantos breves anos
 
[...]

Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.

Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.


[...]

Um anjo vem todas as noites:
senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa,
como se fosse meu melhor amigo.

 

[...]

Esse fantasma que chega e me abraça
(asas cobrindo a ferida do flanco)
é todo o amor que resta
entre ti e mim, e está comigo.


[...]

Se te pareço ausente, não creias:
hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.
Não acredites nesse breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
teus lábios nos meus lábios para ouvir.


Nem acredites se pensas que te falo:
Palavras são meu jeito mais secreto de calar.”

 

[...]

*Lya Luft*  

  Em "Mulher no Palco", São Paulo, Editora Siciliano, 1984.