domingo, 25 de fevereiro de 2018

Sensual

Quando, longe de ti, solitária, medito
neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.

A febril confissão deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
à minha castidade é como um  insulto.

Se acaso te achas longe, a colossal barreira
dos protestos que, outros, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.

Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volúpia a ascosa e fria lesma
minha carne poluir com repugnante baba...


*Gilka Machado*
Em “Poesias Completas, Gilka Machado”, Rio de Janeiro,
Editora Cátedra-Brasília/INL, 1ª Edição, 1978.
Improviso corrigido

Se minto? Quantas vezes!
Mas em palavras. Não
Nos meus olhos castanhos portugueses,
Nestas linhas atávicas da mão...
Se minto?... Minto, pois!
Mas nas orais palavras que vos digo,
Não nas que entôo a sós comigo,
E em que enfim deixo de ser dois.
Não nas que entrego a músicas, miragens,
Alegorias, fábulas, mentiras,
Cadências, símbolos, imagens.
Ecos da minha e mil milhões de liras.
Se minto?... Minto! É regra de viver.
Mas não quando, poeta, me desnudo,
E a mim me visto de inocência, e a tudo.
Venha quem saiba ver!
Venha quem saiba ler!


*José Régio*
Em “COLHEITA DA TARDE, Volume Póstumo, Poesia”, Porto, Brasília Editora, 1ª Edição, 1971.
XVI
                                              

                                                             Para Nilo Milano

Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...

A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!

Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...

Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Arlequim

A grande sala estava constantemente vazia.
O piano, às vezes, ficava aberto
e exalava um cheiro antigo de madeira, seda, metal.

As estátuas seguravam seus mantos,
Olhando e sorrindo, altas e alvas.

E eu parava e ouvia o silêncio:
o silêncio é feito como de muitos guizos,
leves, pequeninos,
campânulas de flor com aragem e orvalho.

Quando abriam as cortinas,
pela vidraça multicor o sol passava
e deitava-se no sofá como um longo Arlequim.

Meu coração batia quase com o mesmo som
daquele relógio de cristal
que se via brilhar entre pequenas colunas
brancas e douradas.

Tudo era calmo e belo
e naquele sofá o Arlequim de luz dormia.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa (Col. Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira)”,
Rio  de  Janeiro, Editora Nova  Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Desintegração

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação.

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sub-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita! Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto.


*Abgar Renault*
Em “OBRA POÉTICA ABGAR RENAULT”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1990.
“Como quem pede uma esmola

Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
– mariposa de ouro azul –
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.”

*Abgar Renault*
Em “OBRA POÉTICA ABGAR RENAULT”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1990.
Elegia para minha mãe

Nesta quebrada de montanha, donde o mar
Parece manso como em recôncavo de angra,
Tudo o que há de infantil dentro em minh'alma sangra
Na dor de ter visto, ó Mãe, agonizar!

Entregue à sugestão evocadora do ermo,
Em pranto rememoroso o teu lento martírio
Até quando exalaste, à ardente luz de um círio,
A alma que se transia atada ao corpo enfermo.

Relembro o rosto magro, onde a morte deixou
Uma expressão como que atônita de espanto
(Que imagem de tão grave e prestigioso encanto
Em teus olhos já meio inânimes passou?)

Revejo os teus pequenos pés... A mão franzina...
Tão musical... A fronte baixa... A boca exangue...
A duas gerações passara já teu sangue,
 – Eras avó –, e morta eras uma menina.

No silêncio daquela noite funeral
Ouço a voz de meu pai chamando por teu nome.
Mas não posso pensar em ti sem que me tome
Todo a recordação medonha do teu mal!

Tu, cujo coração era cheio de medos
– Temias os trovões, o telegrama, o escuro –
Ah, pobrezinha! um fim terrível o mais duro,
É que te sufocou com implacáveis dedos.

Agora que me despedaça o coração
A cada pormenor, e o revivo cem vezes,
E choro neste instante o pranto de três meses
(Durante os quais sorri para tua ilusão!),

Enquanto que a buscar as solitárias ânsias,
As mágoas sem consolo, as vontades quebradas,
Voa, diluindo-se no longe das distâncias,
A prece vesperal em fundas badaladas!


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Escavação

Numa ânsia de ter alguma coisa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar;
E a minh'alma perdida não repousa.

Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...
– Onde existo que não existo em mim?

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Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bocas esmagadas
– Tudo outro espasmo que princípio ou fim...


*Mário de Sá-Carneiro*
Em “OBRA COMPLETA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Volume Único”, Rio de Janeiro,
 Editora NOVA FRONTEIRA, 1ª Edição, 1995.
Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E se me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…


*Mário de Sá-Carneiro*
Em “OBRA COMPLETA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora NOVA FRONTEIRA, 1ª Edição, 1995.
Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...

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................................................

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...

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*Mário de Sá-Carneiro*
Em “OBRA COMPLETA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora NOVA FRONTEIRA, 1ª Edição, 1995.
Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser – quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

..........................................................
..........................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


*Mário de Sá-Carneiro*
Em “OBRA COMPLETA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, Volume Único”, 
Rio de Janeiro, Editora NOVA FRONTEIRA, 1ª Edição, 1995.
Canção

Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.

Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.

Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...

Que eu custei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.

Meu Deus, as coisas que ele dizia!
as coisas que perguntava!

Eu deixei-as sem resposta.

As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.

O mundo é um búzio oco,
menino...

Mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.


*Mario Quintana*
Em “80 ANOS DE POESIA”, São Paulo, Globo Editora, 1ª Edição, 1986.
XII

Tudo tão vago

‘Nossa senhora
Na beira do rio
Lavando os paninhos
Do bento filhinho…

São João estendia,
São José enxugava
e a criança chorava
do frio que fazia

Dorme criança
dorme meu amor
que a faca que corta
dá talho sem dor’

                                     (de uma cantiga de ninar)

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormira... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Salutaris Porta

Para conter aquela imensa chama,
Os nossos corações eram pequenos:
Tivemos medo da paixão... E ao menos
Não vimos tanto céu mudado em lama!

O velário correu-se antes do drama.
E não houve perfídias nem venenos
Entre os nossos espíritos serenos,
Que a saudade do prólogo embalsama.

Bendigamos o amor que foi tão curto,
O sonho vago que expirou tão cedo,
Sossobrado no porto antes do surto!

Feliz o idílio que não teve história!
Salvando-nos do tédio, o nosso medo
Foi uma porta de ouro para a glória!


*Olavo Bilac*
Em “Olavo Bilac – Poesias (Tarde)”, São Paulo, Martins Editora Livraria Ltda., 1ª Edição, 2001.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Saudade

                                              A Isabel Souto

Perpassa o vento as sílabas cantando
De teu nome; por entre a ramaria
Escuto as aves em profundo bando,
Chamando-te em clamores de alegria.

Sobre o prado florente, à tarde, quando
O sol desmaia no final do dia,
Poe entre as flores, triste, meditando,
Vejo-te a imagem plácida, erradia...

De tua voz sonora o timbre ainda,
Suave e puro, eu sinto docemente
Ferir-me o ouvido em música divina;

Tudo me traz de ti saudade infinda,
Saudade que se aviva eternamente
E que a alma inteiramente me domina!


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro, 
Editora Particular do Autor, 1950.
Lágrimas

A lágrima das mães é conhecida,
Dentre as lágrimas todas, por mais pura,
Dizem mesmo que tem mais amargura,
E que é por Deus, talvez, a preferida.

A lágrima de irmãos, – também fulgura.
Há nela a santidade concedida
Pelas torturas desta triste vida,
E, assim, como a das mães, se eleva e apura.

A lágrima de amigos, docemente
Suaviza a existência malograda,
Enche às vezes de luz noite trevosa.

Porém, a que mais dói, a mais ardente,
É a lágrima oculta, amargurada,
Longa, triste, cruel, silenciosa!...


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro,
Editora Particular do Autor, 1950.
Prece

Durma, de tuas mãos nas palmas sacrossantas,
O meu remorso. Velho e pobre, como Jó,
Perdendo-te, a melhor de tantas posses, tantas,
Malsinado de Deus, perdi... Tu foste a só!

Ao céu, por teu perdão, a minha alma, que encantas,
Suba, como por uma escada de Jacó!
Perdi-te...  E eras a graça, alta entre as altas santas,
A sombra, a força, o aroma, a luz... Tu foste a só!

Tu foste a só!...  Não valho a poeira que levantas,
Quando passas. Não valho a esmola do teu dó!
– Mas deixa-me chorar, beijando as tuas plantas,

Mas deixa-me clamar, humilhado no pó:
Tu, que em misericórdia as Madonas suplantas,
Acolhe a contrição do mau... Tu foste a só!


*Olavo Bilac*
Em “Olavo Bilac – Poesias (Tarde)”, São Paulo, Martins Editora Livraria Ltda., 1ª Edição, 2001.
Prece

Não te peço a ventura desejada,
Nem os sonhos que outrora tu me deste,
Nem a santa alegria que puseste
Nessa doce esperança já passada.

O futuro de amor que prometeste,
Não te peço! Minha alma angustiada
Já te não pede, do impossível, nada,
Já te não lembra aquilo que esqueceste!

Nesta mágoa sofrida ocultamente,
Nesta saudade atroz que me deixaste,
Neste pranto que choro ainda por ti,

Nada te peço! Nada! Tão-somente
Peço-te, agora, a paz que me roubaste,
Peço-te, agora, a vida que perdi!


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro,
Editora Particular do Autor, 1950.
Abandono

Talvez já tudo tenhas esquecido:
Aquela casa e as árvores frondosas
Da entrada do caminho e as brancas rosas
E o coqueiral, altivamente erguido.

O bando de aves tímidas, saudosas,
A desferir seu canto enternecido,
E aquele céu azul, indefinido,
Cheio de sóis, de estrelas luminosas.

Quanta mudança encontrarás se um dia
Ali fores!... Tristonhos, tumulares,
O arvoredo, o rosal!... O espaço mudo.

E só, errante, a soluçar, sombria,
A saudade acharás se ali voltares.
Mas... Talvez tenhas esquecido tudo!


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro,
Editora Particular do Autor, 1950.
Noite

Quando a hora final da Ave-Maria
Deixa o eco voar espaço em fora;
Nesse momento em que a melancolia
Mais na terra se estende e se demora.

Quando a sombra da noite que apavora
Encobre o sol, escurecendo o dia;
Quando não temos mais da última aurora
A doce luz, embora fugidia;

Quando as trevas mais negras vão crescendo
E cobrem toda a natureza; quando
Repousa e dorme tudo em paz – gemidos

Ouvem-se, o espaço inteiro percorrendo...
É que, tristes, no mundo, soluçando,
Vagueiam muitos corações perdidos...


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro, 
Editora Particular do Autor, 1950.
Soneto

Noite fechada! O espaço inteiramente
É trevas. Que tristeza encerra esta hora
Em que tudo é silêncio e a alma que chora
Abafa as vozes do sofrer latente!

Mas um canto vibrou, longe, plangente,
Quem é que a solidão perturba agora?
Ah! quem se atreve pela noite a fora
Um grito desferir, lugubremente?!...

É, porventura, uma alma forasteira,
Que vagueia sozinha na espessura
Da noite, procurando a companheira?

Não... Talvez seja a gargalhada insana
De alguma ave de agouro que procura
Escarnecer da dor da vida humana!


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro,
Editora Particular do Autor, 1950.
Mudança

Passa uma aurora e surgem lentamente
Novas auroras sob o azul da esfera;
O verão, sucedendo a primavera,
Enche a terra de sol purpúreo e ardente.

Vem o outono, monótono, cadente,
Dizimando das árvores a hera;
Depois o inverno frígido, que impera
Na grande natureza inteiramente.

Felizes vós que nunca a alma ferida
Tivestes por desgosto e por saudade!
E nem nunca dos risos e da graça

Sentistes falta no correr da vida!
Não vos fieis no tempo, a felicidade
O tempo rouba, o tempo despedaça!...


*Amélia Mariano de Oliveira (eterna noiva de Olavo Bilac)*
Em “Póstuma – Poesias”, organização de Elmo Elton, Rio de Janeiro, 
Editora Particular do Autor, 1950.
A partida

Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.
Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.
Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É a mãe de uma filha minha.
Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.
Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.
Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar
Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa – volume único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar S/A, 4ª Edição, 2004.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A M. C.

No Céu, se existe um céu para quem chora,
Céu, para as mágoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No Céu, se uma alma nesse espaço mora,
Que a prece escuta e enxuga o nosso pranto.
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No Céu, ó Virgem! findarão meus males
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo,
Para não mais findar, nossos amores.


*Antero de Quental*
Em “Poesia Completa (1842-1891)”, Lisboa/Portugal, 
Editora Publicações Dom Quixote, 1ª Edição, 2001.
Soneto XV 

Sob o consentimento das estrelas,
Nós dois, repletos do silêncio antigo
Que os que vivem a amar trazem consigo,
Nos amaremos ternamente, pelas

Noites de calma e de luar profundo
Em que as almas dos olhos que se abordam
Em gotas de água trêmula transbordam,
Como a água que enche o olhar do lago fundo...

E se um dia sentirmos que se finda
O amor mais triste do que a morte, ainda
Tentaremos uma última ternura

Para que o nosso amor morra a viver,
Como uma nota de órgão que perdura,
Como as chamas sonâmbulas que acordam

E ardem mais alto no ar, para morrer...

*Onestaldo de Pennafort*
Em “Poesia”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1987.
Chuva de cinzas
  
Na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.

Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.

Hora crepuscular – concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;

hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.


*Gilka Machado*
Em “Velha Poesia”, Rio de Janeiro, Editora Baptista de Souza, 1ª Edição, 1968.
Menina Mal Amada
 
[...]
     
No Passado
Tanta coisa me faltou.
Tanta coisa desejei sem alcançar.
Hoje, nada me falta,
me faltando sempre o que não tive.

Era eu uma pobre menina mal amada.
Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento.
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente
irreversível.
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha.
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos:
Minha bisavó e minha tia Nhorita.
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe.
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando
as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida,
me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar
e levar queixas doloridas para a mãe
que perdida no seu mundo de leitura e negócios não dava atenção.
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó.
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus mal feitos de criança
e exortava minhas irmãs a me aceitarem.
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades.
E fui marcada: menina inzoneira.
Sem saber o significado da palavra, acostumada ao tratamento
ridicularizante, esta palavra me doía.
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência com
cigarras, descia na casa das formigas, brincava de roda com elas,
cantava ‘Senhora D. Sancha’, trocava anelzinho.
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia.
Chamavam, mãe: ‘vem ver Aninha’...
Mãe vinha, ralhava forte.
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão.
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente.
Era nesse tempo, amarela, de olhos empapuçados, lábios descorados.
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: ‘Cieiro.’

Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas.
Não me deixavam participar de seus brinquedos.
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o braço
no ombro e segredava: ‘Não brinca com Aninha não. Ela tem Cieiro
e pega na gente.’
Eu ia atrás, batida, enxotada.
Infância... Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância...
Infância... Hoje, será.


*Cora Coralina*
Em “VINTÉM DE COBRE - meias confissões de Aninha”, São Paulo,
Global Editora, 6ª Edição, 1997.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Autômatos

No barulho das usinas,
Na sombra áspera e pálida que desce dos sheds,
Um dia os homens desapareceram.
No entanto
Braços de ferro gesticulam enérgicos,
Bocas, abertas, de fogo vociferam,
Ouvem-se vozes telegráficas de comando.

Autômatos!

Os homens se encantaram,
Se enlearam, se perderam
Nas formas e movimentos dos grandes maquinismos?

Ou são as almas que trabalham,
Almas forçadas, almas perdidas, almas penadas?

Oh! Com certeza os homens morreram
E às máquinas legaram
O sopro divino.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa (Poemas) - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.
Para esquecer

Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.

Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.

A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,

o que de meu mais fundo em mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.
”  

*Abgar Renault*
Em “OBRA POÉTICA ABGAR RENAULT”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1990.
Como Nascem as Manhãs

O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.

Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.

Cai um pingo de luz.
Amanhece.


*Flora Figueiredo*
Em “Chão de Vento – Poesia”, São Paulo, Geração Editorial, 1ª Edição, 2005.
Cemitério da Infância

No cemitério da Infância
Era manhã quando entrei,
Das plantas que vi florindo
De tantas me deslumbrei...
Era manhã reluzindo
Quando ao meu país cheguei,
Dos rostos que vi sorrindo
De poucos me lembrarei.

Vinha de largas distâncias
No meu cavalo veloz,
Pela noite, sobre a noite,
Na pesquisa de arrebóis;
E ouvia, sinistramente,
Longínqua, esquecida voz...
Galos cantavam, cantavam.
– Auroras de girassóis.

Por esses aléns de serras,
Pelas léguas de verão,
Quantos passos repetidos
Trilhados no mesmo chão;
Pelas margens das estradas:
Rosário, cruz, coração...
Mulheres rezando as lágrimas,
Passando as gotas na mão.

Aqui caíram as asas
Dos anjos. Rudes caminhos
Adornam covas pequenas
De urtiga branca e de espinhos;
Mais perto cheguei meus passos,
Mais e demais, de mansinho:
As almas do chão revoaram:
Um bando de passarinhos.

Oh! aflições pequeninas
Em corações de brinquedos;
Em sono se desfolharam
Tuas roseiras de medo...
Teus choros trazem relentos:
Ternuras de manhã cedo;
Oh! Cemitério da Infância
Abre a luz do teu segredo.

Carne, cinza, terra, adubo
Guardam mistérios mortais;
Meninos, depois adultos:
Os grandes canaviais...

– Crescem bagas nos arbustos,
Como riquezas reais,
Pasta o gado nas planuras
Dos vastos campos gerais.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa (Signo Estrelado) - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.