domingo, 31 de outubro de 2021

Mais que Beijo

Quando tenho em minhas mãos tua cabeça
e te sinto frágil, trêmula, vencida,
os olhos vidrados, num profundo langor…

Quando esqueço minha boca em tua boca,
em longos, longos momentos de ternura louca,
a fundir meu desejo ao teu desejo
no mesmo estranho calor,

Tenho a impressão que o beijo é mais que beijo,
tenho a impressão de que aos poucos
nestes momentos loucos
te alimento de amor!


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, Rio de Janeiro, Editora Novo Tempo Edições, 2ª Edição, 1982.

 “A arte de rezar

[...]

Gosto de ler orações.
Orações e poemas são a mesma coisa:
palavras que se pronunciam a partir do silêncio,
pedindo que o silêncio nos fale.
 

[...]

Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras
que eu gostaria de ter dito mas não consegui.
As orações põem música no meu silêncio.


*Rubem Alves*
Em “Transparências da eternidade”, São Paulo, Editora Verus, 1ª Edição, 2002.

Silêncio Amoroso

Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.

O silêncio, aprendo, pode construir. É modo
denso/tenso-de coexistir
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.

      
*Affonso Romano de Sant’Anna*
Em “Poesia Reunida – 1965/1999”, Porto Alegre, Editora L&PM Pocket, 1ª Edição, 2007.

 “Ah! velhos livros… Emoções passadas…
Já nos não falam mais como falaram!
Se são as mesmas pálpebras cansadas
e os mesmos olhos, já que não mudaram

as palavras das páginas marcadas,
por que não choram mais onde choraram?
É que as palavras ficam bem guardadas
lá no recanto d’alma em que ficaram.

E quantas almas há num corpo, quantas!
– cismo ao reler um livro, velho amigo
que o tempo amarelou e a que umas plantas

deram um cheiro bom de tempo antigo,
e que eu embora leia tantas vezes,
tantas… quero chorar e não consigo!

 
*Onestaldo de Pennafort*   
Publicado no SUPLEMENTO LITERÁRIO DE “A MANHÔ,
VOL. V, PÁGINA 78, Porto Alegre/RS, de 15/8/1943.

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra
molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história
da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve.
Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane. Só consigo a simplicidade através de muito trabalho.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Hora da Estrela”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1977.

 “EXTRA-TERRENA
 
                                                           Para Cecília Meireles

Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos…
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes…
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas…
Ou quem sabe a Morte nos houvera bordado
numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como
as plantas marinhas
E as nossas palavras como asas suspensas no vento…

 
*Mario Quintana*
Em “PREPARATIVOS DE VIAGEM”, São Paulo, Editora ALFAGUARA BRASIL, 1ª Edição, 2013.

 “Improviso

Cecília, és libérrima e exata
Como a concha.
Mas a concha é excessiva matéria,
E a matéria mata.

Cecília, és tão forte e tão frágil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda é água que afoga:
Tu, não, és enxuta.

Cecília, és, como o ar,
Diáfana, diáfana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te podes limitar?

Definição:
Concha, mas de orelha;
Água, mas de lágrimas;
Ar com sentimento.
– Brisa, viração
Da asa de uma abelha.

7 de outubro de 1945.


*Manuel Bandeira*
Em “Estrela da Vida Inteira – Belo belo”, Rio de Janeiro,
Editora José Olympio, 15ª Edição, 1988.

Manuel em Pelote Domingueiro

Para Manuel Bandeira que, no dia 1º de junho de 1956  
(por ocasião do lançamento do meu disco de poesia),
me apareceu com um paletó muito engraçado.
(E como paródia a Anchieta.)


Dia 1° de junho
na casa do bom livreiro,
vi Manuel todo faceiro
e deixo o meu testemunho
nestes versos que desunho:
Manuel, no dia primeiro,
em pelote domingueiro.

Para que não lhe suceda
ter o pelote furtado,
aqui fica retratado:
é de lã, não é de seda,
proceda de onde proceda,
não é de nenhum moleiro
seu pelote domingueiro.

Este sim, vos asseguro,
que é pelote de poeta,
não de gente analfabeta
que se vista com apuro.
Brilha como ouro, no escuro,
cor de tigre verdadeiro,
seu pelote domingueiro.

De botões não tem um monte
nem veste mil cachopinhos,
mas vêm mirá-lo os vizinhos,
até sumir no horizonte,
e eu me faço Xenofonte,
do pano e do costureiro
do pelote domingueiro.
 
O pelote foi-lhe dado
para o domingo, somente.
Mas bem sabe toda gente
que é domingo e feriado
se Manuel está presente.
(Que ele já nasceu arteiro
sem pelote domingueiro.)

Se lhe roubam o pelote
(pois anda fazendo frio)
tumulto haverá no Rio
com ou sem General Lott.
Brigamos pelo capote
que custou tanto dinheiro:
o pelote domingueiro.

Pode haver pancadaria,
falta de luz e de bondes,
prisões de duques e condes
e greves de livraria.
‘Onde estás que não respondes?’
clamará Carlos Ribeiro
ao pelote domingueiro.

‘Invejosos e gatunos,
procurai outros negócios,
ide roubar os beócios,
imbecis, cretinos e hunos
– mais não sejais importunos,
ocultando o paradeiro
do pelote domingueiro!’

Tem dono e é bem empregado
o pelote justo e certo,
cor de tigre e de deserto,
e tão bem abotoado,
que só falta ser rajado
para ninguém chegar perto
do caro Manuel, fagueiro
no pelote domingueiro!


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (1918-1964), Volume 1”,
Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

Crianças negras

Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando
Desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa música dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
Num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes-quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício a estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!


*Cruz e Sousa*
Em “CRUZ E SOUSA: OBRA COMPLETA (O Livro Derradeiro)”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar S/A, Reimpressão atualizada da primeira edição, 1995.

 “Mulher da Vida

Contribuição para o Ano Internacional da Mulher, 1975.

Mulher da Vida,
minha Irmã.

De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e carrega a carga pesada dos
mais torpes sinônimos, apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.

Mulher da Vida,
minha irmã.

Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.

Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.

Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.

Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.

Flor sombria, sementeira espinhal gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono, enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa mulher corria perseguida pelos
homens que a tinham maculado. Aflita, ouvindo o tropel dos
perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e lançou o repto milenar:
‘Aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra’.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.

O Justo falou então a palavra de eqüidade:
‘Ninguém te condenou, mulher… nem eu te condeno’.
A Justiça pesou a falta pelo peso do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada, ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que na sociedade
possam coexistir a inocência, a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.

Mulher da Vida,
minha irmã.

No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.

E o juiz da Grande Justiça a vestirá de branco
em novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida humilhada e sacrificada
para que a Família Humana possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.

Mulher da Vida,
minha irmã.

Declarou-lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes
vos precedem no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, 31.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”,
São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

sábado, 23 de outubro de 2021

 [...]

O pessimismo passou, mas o bom propósito não: farei o possível
para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas.
Às vezes o amor que se dá pesa, quase como responsabilidade na
pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar,
e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo.
É uma forma de paz...
Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais as pessoas
quando não se está cega pelo amor.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Minhas Queridas”, Org. e introd. Teresa Montero,
Rio de Janeiro, Editora Rocco Ltda., 1ª Edição, 2007.

 “XXXI

É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...

E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono…
Ó velhas rimas! É acabar com elas!

Mas o Outono apanha-as… E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:

Um quê de melancólico e solene
– E para todo o sempre evocativo –
Na frauta enferrujada de Verlaine…


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

O CREDO DE UM POETA

[...]

Pensava saber tudo sobre palavras, tudo sobre linguagem (de pequeno,
a pessoa acha que sabe muitas coisas), mas
aquelas palavras foram uma revelação para mim. Claro, eu não as entendia.
Como poderia entender aqueles
versos sobre pássaros – sobre animais – que eram de algum modo eternos,
intemporais, porque viviam no presente?
Somos mortais porque vivemos no passado e no futuro – porque lembramos
um tempo em não existíamos e antevemos
um tempo em que estaremos mortos. Aqueles versos chegaram a mim através
de sua música. Eu pensava que a
linguagem fosse um modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer
que se estava feliz ou triste, etc.
Mas quando escutei aqueles versos (e os continuo escutando, em certo
sentido, desde então), soube que a linguagem
podia também ser música e paixão. E assim me foi revelada a poesia.

Divertiu-me uma idéia – a idéia de que, embora a vida de uma pessoa seja
composta de milhares e milhares de
momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser
reduzidos a um único: o momento em que
a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si.


[...]   

*Jorge Luis Borges*
(Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo)
Em “Esse Ofício do Verso”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2000.

A Amiga Deixada

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.

Musgo da piscina,
de uma água tão fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.

Antiga
cantiga
da amiga
chamada.

Chegara tão perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto...
Cantava – mais nada.

Antiga
cantiga
da amiga
chegada.

Pérola caída
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois – quebrada.

Antiga
cantiga
da amiga
calada.

Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
– giro de andorinha
na mão da alvorada.

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”,  
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

O VESTIDO   

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
 
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiliza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.


*Adélia Prado*
Em “Poesia reunida”, São Paulo, Editora Siciliano, 10ª Edição, 2001. 

 MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA

Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira,
constelada,
os botões,
alguns já com rosa-pálido
espiando entre as sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizam-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas, perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro.

    
*Adélia Prado*
Em “Poesia reunida”, São Paulo, Editora Siciliano, 10ª Edição, 2001.

 “BALADA LIVRE EM LOUVOR DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
 
Louvo o Padre, louvo o Filho,
O Espírito Santo louvo.
Isto feito, louvo aquele
Que ora chega aos sessent’anos
E no meio de seus pares
Prima pela qualidade:
O poeta lúcido e límpido
Que é Carlos Drummond de Andrade.
 
Prima em Alguma Poesia,
Prima no Brejo das Almas,
Prima na Rosa do Povo,
No Sentimento do Mundo.
(Lírico ou participante,
Sempre é poeta de verdade
Esse homem lépido e limpo
Que é Carlos Drummond de Andrade).
 
Como é fazendeiro do ar,
O obscuro enigma dos astros
Intui, capta em claro enigma.
Claro, alto e raro. De resto
Ponteia em viola de bolso
Que é Carlos Drummond de Andrade.
O poeta diverso e múltiplo
Inteiramente à vontade

Que é Carlos Drummond de Andrade.
Louvo: o homem, o poeta, o amigo
Santo, e após outra Trindade
Louvo o Padre, o Filho, o Espírito.

 
*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira – Poesia Completa e Prosa (ESTRELA DA TARDE)
− Volume Único
”, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.

Senhor, eu não sou digno
 
Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.
Para que entoarei o salmo harmonioso
Se tenho na alma um de-profundis?
Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
Minha voz tem as inflexões dos brados de martírio
Minha voz enrouqueceu no desespero...
Para que cantarei
Se em vez de belos cânticos serenos
A solidão escutará gemidos?
Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
Pelas montanhas sem caminho
Onde a voz fraca não irá.
Antes ir – e abafar as louvações no peito
Ir vazio de cantos pela vida
Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
Como o silêncio que caminha...


*Vinicius de Moraes*   
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

Balada de Di Cavalcanti

Nos sessenta e cinco anos do pintor mais jovem do Brasil

Carioca Di Cavalcanti
É com a maior emoção
Que este também carioca  
Te traz esta saudação.
É de todo o coração
Poeta Di Cavalcanti
Que este também poetante  
Te faz esta sagração.
Amigo Di Cavalcanti
Amigo de muito instante
De alegria e de aflição
Nos teus treze lustros idos
Cinco foram bem vividos
Bem vividos e bebidos
Na companhia constante
Deste também teu irmão.
Quantos amigos já idos!
Quantos ainda partirão!
Mestre pintor Emiliano
Augusto Cavalcanti
De Albuquerque: ou melhor, Di
Um ano segue a outro ano
Diz o vulgo por aí
E daí? se mais humano
Fica um homem (igual a ti!)
Mesmo entrando pelo cano?
Se pode dizer: vivi!?
Viveste, Di Cavalcanti
Foste amigo e foste amante
Não há outro igual a ti.  
Juntos bebemos champagne
Uísque, vinho, parati.  
Juntos rimos e choramos
No México e em Paris.  
Juntos tivemos e amamos
Mulheres daqui e dali.
Maria... quantas Marias...
(Fiquei mesmo por aí.)
Que bom seria, Emiliano
Se Ovalle estivesse aqui!
Que bom seria se Noemia
Braço dado
(Vê minha mão como treme...)
Viesse abraçar-te, Di!
A uma eu diria: yes
À outra dirias: oui
E um porre tomaríamos
De Strega (lembras-te, Di?)


*Vinicius de Moraes*   
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

Poema do Milho

Milho...
Punhado plantado nos quintais.
Talhões fechados pelas roças.
Entremeado nas lavouras.
Baliza marcante nas divisas.
Milho-verde. Milho seco.
Bem-granado, cor de ouro.
Alvo. Às vezes vareia,
– espiga roxa, vermelha, salpintada.

Milho virado, maduro, onde o feijão enrama.
Milho quebrado, debulhado na festa das colheitas anuais.
Bandeira de milho levada para os montes, largada pelas roças.
Bandeiras esquecidas na fartura.
Respiga descuidada
dos pássaros e dos bichos.

Milho empaiolado...
Abastança tranquila
do rato,
do caruncho,
do cupim.
Palha de milho para o colchão.
Jogada pelos pastos.
Mascada pelo gado.
Trançada em fundos de cadeiras.

Queimada nas coivaras.
Leve mortalha de cigarros.
Balaio de milho trocado com o vizinho no tempo da planta.
‘– Não se planta, nos sítios, semente da mesma terra.’

Ventos rondando, redemoinhando.
Ventos de outubro.

Tempo mudado. Revoo de saúva.
Trovão surdo, tropeiro.
Na vazante do brejo, no lameiro, o sapo-fole, o sapo-ferreiro, o sapo-cachorro.
Acauã de madrugada
marcando o tempo, chamando chuva.
Roça nova encoivarada,
começo de brotação.
Roça velha destocada.
Palhada batida, riscada de arado.
Barrufo de chuva.
Cheiro de terra, cheiro de mato.
Terra molhada. Terra saroia.
Noite chuvada, relampeada.
Dia sombrio. Tempo mudado, dando sinais.
Observatório: lua virada. Lua pendida...
Circo amarelo, distanciado, marcando chuva.
Calendário, Astronomia do lavrador.

Planta de milho na lua nova.
Sistema velho colonial.
Planta de enxada.
– Seis grãos na cova,
quatro na regra, dois de quebra.
Terra arrastada com o pé, pisada, incalcada, mode os bichos.
Lanceado certo-cabo-da-enxada.
Vai, vem... sobe, desce...
Terra molhada, terra saroia...
– Seis grãos na cova; quatro na regra, dois de quebra.
Sobe. Desce...
Camisa de riscado, calça de mescla.
Vai, vem...
golpeando a terra, o plantador.

Na sombra da moita,
na volta do toco – o ancorote d’água.

Cavador de milho, que está fazendo?
Há que milênios vem você plantando.
Capanga de grãos dourados a tiracolo.
Crente da terra. Sacerdote da terra.
Pai da terra.
Filho da terra.
Ascendente da terra.
Descendente da terra.
Ele, mesmo, terra.

Planta com fé religiosa.
Planta sozinho, silencioso.
Cava e planta.
Gestos pretéritos, imemoriais.
Oferta remota, patriarcal.
Liturgia milenária.
Ritual de paz.

Em qualquer parte da Terra um homem estará sempre plantando,
recriando a Vida.
Recomeçando o Mundo.

Milho plantado; dormindo no chão, aconchegados seis grãos na cova.
Quatro na regra, dois de quebra.
Vida inerte que a terra vai multiplicar.

Evém a perseguição:
o bichinho anônimo que espia, pressente.
A formiga-cortadeira – quenquém.
A ratinha do chão, exploradeira.
A rosca vigilante na rodilha.
O passo-preto vagabundo, galhofeiro, vaiando, sirrindo...
aos gritos arrancando, mal aponta.
O cupim clandestino
roendo, minando,
só de ruindade.
E o milho realiza o milagre genético de nascer.
Germina. Vence os inimigos.
Aponta aos milhares.
– Seis grãos na cova.
– Quatro na regra, dois de quebra.
Um canudinho enrolado.
Amarelo-pálido,
frágil, dourado, se levanta.
Cria sustância.
Passa a verde.
Liberta-se. Enraíza.
Abre folhas espaldeiradas.
Encorpa. Encana. Disciplina, com os poderes de Deus.

Jesus e São João
desceram de noite na roça, botaram a bênção no milho.
E veio com eles
uma chuva maneira, criadeira, fininha, uma chuva velhinha,
de cabelos brancos,
abençoando
a infância do milho.

O mato vem vindo junto.
Sementeira.

As pragas todas, conluiadas.
Carrapicho. Amargoso. Picão.
Marianinha. Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha. Colchão.
Alcança, não alcança.
Competição.
Pac... Pac... Pac...
a enxada canta.
Bota o mato abaixo.
Arrasta uma terrinha para o pé da planta.
‘– Carpa benfeita vale por duas...’
quando pode. Quando não... sarobeia.
Chega terra. O milho avoa.

Cresce na vista dos olhos.
Aumenta de dia. Pula de noite.
Verde. Entonado, disciplinado, sadio.

Agora...
A lagarta da folha,
lagarta rendeira...
Quem é que vê?
Faz renda da folha no quieto da noite.
Dorme de dia no olho da planta.
Gorda. Barriguda. Cheia.
Expurgo... Nada... força da lua...
Chovendo acaba – a Deus querê.

‘– O mio tá bonito...’
‘– Vai sê bão o tempo pras lavoras todas...’
‘– O mio tá marcando...’
Condicionando o futuro:
‘– O roçado de seu Féli tá qui fais gosto...
Um refrigério!’
‘– O mio lá tá verde qui chega a s’tar azur...’
– Conversam vizinhos e compadres.
Milho crescendo, garfando, esporando nas defesas.
Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.

‘Do chão ao pendão, 60 dias vão.’

Passou aguaceiro, pé de vento.
‘– O milho acamou...’ ‘– Perdido?’... ‘– Nada...
Ele arriba com os poderes de Deus...’
E arribou mesmo, garboso, empertigado, vertical.

No cenário vegetal
um engraçado boneco de frangalhos sobreleva, vigilante.
Alegria verde dos periquitos gritadores...
Bandos em sequência... Evolução...
Pouso... retrocesso.
Manobras em conjunto.
Desfeita formação.
Roedores grazinando, se fartando, foliando, vaiando
os ingênuos espantalhos.

‘Jesus e São João
andaram de noite passeando na lavoura e botaram a bênção no milho.’
Fala assim gente de roça e fala certo.
Pois não está lá na taipa do rancho o quadro deles, passeando dentro
dos trigais?
Analogias... Coerências.
Milho embandeirado
bonecando em gestação.
– Senhor!... Como a roça cheira bem!
Flor de milho, travessa e festiva.
Flor feminina, esvoaçante, faceira.
Flor masculina – lúbrica, desgraciosa.

Bonecas de milho túrgidas, negaceando, se mostrando vaidosas.
Túnicas, sobretúnicas...
Saias, sobressaias...
Anáguas... camisas verdes.
Cabelos verdes...
Cabeleiras soltas, lavadas, despenteadas...
– O milharal é desfile de beleza vegetal.

Cabeleiras vermelhas, bastas, onduladas.
Cabelos prateados, verde-gaio.
Cabelos roxos, lisos, encrespados.
Destrançados.
Cabelos compridos, curtos, queimados, despenteados...
Xampu de chuvas...
Fragrâncias novas no milharal.
– Senhor, como a roça cheira bem!...

As bandeiras altaneiras
vão-se abrindo em formação.
Pendões ao vento.
Extravasão da libido vegetal.
Procissão fálica, pagã.
Um sentido genésico domina o milharal.
Flor masculina erótica, libidinosa, polinizando, fecundando
a florada adolescente das bonecas.

Boneca de milho, vestida de palha...
Sete cenários defendem o grão.
Gordas, esguias, delgadas, alongadas.
Cheias, fecundadas.
Cabelos soltos excitantes.
Vestidas de palha.
Sete cenários defendem o grão.
Bonecas verdes, vestidas de noiva.
Afrodisíacas, nupciais...

De permeio algumas virgens loucas...
Descuidadas. Desprovidas.
Espigas falhadas. Fanadas. Macheadas.

Cabelos verdes. Cabelos brancos.
Vermelho-amarelo-roxo, requeimado...
E o pólen dos pendões fertilizando...
Uma fragrância quente, sexual invade num espasmo o milharal.
A boneca fecundada vira espiga.

Amortece a grande exaltação.
Já não importam as verdes cabeleiras rebeladas.
A espiga cheia salta da haste.
O pendão fálico vira ressecado, esmorecido, no sagrado rito da
fecundação.
Tons maduros de amarelo.
Tudo se volta para a terra-mãe.
O tronco seco é um suporte, agora, onde o feijão-verde trança,
enrama, enflora.
Montes de milho novo, esquecidos, marcando claros no verde que
domina a roça.
Bandeiras perdidas na fartura das colheitas.
Bandeiras largadas, restolhadas.
E os bandos de passo-pretos galhofeiros gritam e cantam na respiga
das palhadas.
‘Não andeis a respigar’ – diz o preceito bíblico.
O grão que cai é o direito da terra.
A espiga perdida – pertence às aves que têm seus ninhos e filhotes a
cuidar.
Basta para ti, lavrador, o monte alto e a tulha cheia.
Deixa a respiga para os que não plantam nem colhem.
– O pobrezinho que passa.
– Os bichos da terra e os pássaros do céu.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

domingo, 17 de outubro de 2021

Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas, também, cair não prejudica demais –
a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!
 


[...]

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais, no meio da alegria,
e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!


[...]

*João Guimarães Rosa*
Em “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, Volume II, 1ª Edição, págs. 440 e 448, 1994.

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos.

E por vezes encontramos de nós
em poucos meses o que a noite
fez em muitos anos.

E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes, ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.


*David Mourão-Ferreira*
Em “Matura Idade”, Lisboa, Editora Arcádia, 1ª Edição, 1973.

Lembrança
 
Fui Essa que nas ruas esmolou
E fui a que habitou Paços Reais;
No mármore de curvas ogivais
Fui Essa que as mãos pálidas poisou...
 
Tanto poeta em versos me cantou!
Fiei o linho à porta dos casais...
Fui descobrir a Índia e nunca mais Voltei!
Fui essa nau que não voltou...

Tenho o perfil moreno, lusitano,
E os olhos verdes cor do verde Oceano,
Sereia que nasceu de navegantes...
 
Tudo em cinzentas brumas se dilui...
Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,  
As que me lembro de ter sido... dantes!...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS – Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

 “PASSARINHO

Sempre me pareceu que um poema era algo assim como
um passarinho engaiolado. E que, para apanhá-lo vivo,
era preciso um meticuloso cuidado que nem todos têm.
Poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito.
Não, o grito é o que mais o mata. É preciso esperá-lo
com paciência e silenciosamente como um gato.

Ora, pensava eu tudo isso e o céu também,
quando topo com uns versos de Raymond Queneau,
que confirmam muito da minha cinegética transcendental.
Eis por que aqui os traduzo, ou os adapto, e os adoto, sem data venia:

Meu Deus, que vontade me deu de escrever um poeminho...
Olha, agora mesmo vai passando um!
Pst pst pst
vem para cá para que eu te enfie
na fieira de meus outros poemas
vem cá para que eu te entube
nos comprimidos de minhas obras completas
vem cá para que eu te empoete
para que eu te enrime
para que eu te enritme
para que eu te enlire
para que eu te empégase
para que eu te enverse
para quo eu te emprose
vem cá...
Vaca!
Escafedeu-se.


*Mario Quintana*
Em “A vaca e o hipogrifo”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 VIII

ESTE INFERNO DE AMAR

Este inferno de amar – como eu amo! –
Quem mo pôs aqui n’alma… quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida – e que a vida destrói –
Como é que se veio a atear,
Quando – ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez… – foi um sonho –
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar…
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei… dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei…


*Almeida Garrett*
Em “Obras de Almeida Garrett (2 volumes), Edição Única”,
Porto/Portugal, Editora Lello & Irmão Editores, 1966.

 “SAUDAÇÃO A VINICIUS DE MORAES

Marcus Vinicius
Cruz de Moraes,
Eu não sabia
Que no teu nome
Tu carregavas
A tua cruz
De fogo e lavas.
Cruz da poesia?
Cruz do renome?
Marcus Vinicius
Que em tuas puras,
Tuas selvagens,
Raras imagens
Da mais pungente
Melancolia,
Ficaste ardente
Para jamais:
Quais são teus vícios,
Vinicius, quais,
Para os purgares
Nas consulares
Assinaturas?
Marcus Vinicius
Eu já te tinha
(E te ofereço
Esta tetinha)
Como um dos marcos
De maior preço
Do bom lirismo
Da pátria minha.
Mas não sabia
Que fosses Marcus
Pelo batismo.
Hoje que o sei,
Te gritarei
Num poema bem,
Bem, não! no mais
Pantafaçudo
Que já compus:
– Marcus Vinicius
Cruz de Moraes
(Melo também),
De cruz a cruz
Eu te saúdo!


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira − Poesia Completa e Prosa (MAFUÁ DO MALUNGO) − Volume Único”,
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.

Cantilena
 
                                                              A Olavo Bilac
 
Fazem hoje vinte anos,
Que saí de minha terra...
Fazem hoje vinte anos,
Que deixei o Maranhão.
Os destinos inumanos
Desde então me fazem guerra...
Os destinos inumanos
Me maltratam desde então!
Fazem hoje vinte anos,
Que deixei o Maranhão!
 
No instante da despedida,
Meu pai chorava deveras...
No instante da despedida,
Minha mãe quase morreu!
A minha gente querida
Verteu lágrimas sinceras!
A minha gente querida
Mais de mil beijos me deu!
No instante da despedida,
Minha mãe quase morreu!

Pobre mãe! Vociferando,
Não deixava que eu partisse...
Pobre mãe! Vociferando,
Não me queria soltar!
Meu pai disse-lhe, chorando:
– ‘Deixe o rapaz! que tolice!’
Meu pai disse-lhe, chorando:
– ‘Sossegue, que há de voltar!...’
Pobre mãe! Vociferando,
Não me queria soltar!
 
Eles ambos lá se foram...
Perdi-os, infelizmente!
Eles ambos lá se foram...
Já não tenho mãe nem pai!
Os meus olhos inda choram,
Porque meu peito inda sente!
Os meus olhos inda choram...
Vede: uma lágrima cai!
Eles ambos lá se foram...
Já não tenho mãe, nem pai!

                                                                    31 de agosto de 1893.


*Arthur Azevedo*
Em “SUPLEMENTO LITERÁRIO DE 'A MANHÃ', Num. 10”, pág. 176, publicado em 19/10/1941.

Uma homenagem...

 “Caro professor, ele terá de aprender que nem todos os homens são justos,
nem todos são verdadeiros, mas, por favor, diga-lhe que
para cada vilão há um herói, para cada egoísta, há um líder dedicado.

Ensine-o, por favor, que para cada inimigo haverá também um amigo.

Ensine-o que mais vale uma moeda ganha que uma moeda encontrada.

Ensine-o a perder, mas também a saber gozar da vitória.

Afaste-o da inveja e dê-lhe a conhecer a alegria profunda do sorriso silencioso.

Faça-o maravilhar-se com os livros, mas deixe-o também perder-se com os
pássaros no céu, as flores no campo, os montes e os vales.

Nas brincadeiras com os amigos, explique-lhe que a derrota honrosa vale
mais que a vitória vergonhosa.

Ensine-o a acreditar em si, mesmo se sozinho contra todos.

Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros.

Ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros
também entraram.

Ensine-o  a  valorizar  a  família  que sempre o apoiará em qualquer situação.

Ensine-o a ouvir todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho.

Ensine-o a rir quando estiver triste e explique-lhe que por vezes os
homens também choram.

Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só
contra todos, se ele achar que tem razão.

Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço.

Deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso.

Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só
assim poderá ter fé nos homens.

Eu sei que estou a pedir muito, mas veja o que pode fazer, caro professor.


*Desconheço a autoria*
[erroneamente atribuída a Abraham Lincoln]

Perguntas e respostas para um caderno escolar

− Qual é a coisa mais antiga do mundo?
− Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
− Qual é a coisa mais bela?
− O instante de inspiração.
− E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de Sua maior inspiração?
− O Universo sempre existiu. O cosmos é Deus.
− Qual das coisas é a maior?
− O amor, que é o maior dos mistérios.
− Das coisas qual é a mais constante?
− O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança.
− Qual o melhor dos sentimentos?
− O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum
mas é uma de minhas verdades.
− Qual é o sentimento mais rápido?
− O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que
um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
− Qual é a mais forte das coisas?
− O instinto de ser.
− O que é mais fácil de se fazer?
− Existir, depois que passa o medo.
− Qual a coisa mais difícil de realizar?
− A própria relativa felicidade que vem do conhecimento de si mesmo.
(Depois as perguntas se tornaram mais complicadas.)

[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Pela passagem do DIA DAS CRIANÇAS...

 “Menor Abandonado

                                                                Versos amargos para o Ano Internacional da Criança, 1979.

De onde vens, criança?
Que mensagem trazes de futuro?
Por que tão cedo esse batismo impuro que mudou teu nome?
Em que galpão, casebre, invasão, favela, ficou esquecida tua mãe?...
E teu pai, em que selva escura se perdeu, perdendo o caminho
do barraco humilde?...
Criança periférica rejeitada...
Teu mundo é um submundo.
Mão nenhuma te valeu na derrapada.

Ao acaso das ruas – nosso encontro.
És tão pequeno... e eu tenho medo.
Medo de você crescer, ser homem.
Medo da espada de teus olhos...
Medo da tua rebeldia antecipada.
Nego a esmola que me pedes.
Culpa-me tua indigência inconsciente.
Revolta-me tua infância desvalida.

Quisera escrever versos de fogo, e sou mesquinha.
Pudesse eu te ajudar, criança-estigma.
Defender tua causa, cortar tua raiz chagada...
És o lema sombrio de uma bandeira que levanto, pedindo para ti
– Menor Abandonado, Escolas de Artesanato
– Mater et Magistra que possam te salvar, deter a tua queda...
Ninguém comigo na floresta escura...
E o meu grito impotente se perde na acústica indiferente das cidades.
Escolas de Artesanato para reduzir o gigantismo enfermo
da criança enferma
é o meu perdido S.O.S.

Estou sozinha na floresta escura e o meu apelo se perdeu inútil na
acústica insensível da cidade.
És o infante de um terceiro mundo em lenta rotação para o encontro
do futuro.
Há um fosso de separação
entre três mundos.
E tu – Menor Abandonado,
és a pedra, o entulho e o aterro desse fosso.
Quisera a tempo te alcançar, mudar teu rumo.
De novo te vestir a veste branca de um novo catecúmeno.
És tanto e tantos teus irmãos na selva densa...
E eu sozinha na cidade imensa!
‘Escolas de ofícios Mãe e Mestra’
para tua legião.
Mãe para o amor.
Mestra para o ensino.

Passa, criança... Segue o teu destino.
Além é o teu encontro.
Estarás sentado, curvado, taciturno.
Sete ‘homens bons’ te julgarão.
Um juiz togado dirá textos de Lei que nunca entenderás.
– Mais uma vez mudarás de nome.
E dentro de uma casa muito grande e muito triste – serás um número.
E continuará vertendo inexorável a fonte poluída de onde vens.
Errante, cansado de vagar, dormirás como um rafeiro
enrodilhado, vagabundo, clandestino na sombra das cidades
que crescem sem parar.

Há um fosso entre três mundos.
E tu, Menor Abandonado,
és o entulho, as rebarbas e o aterro desse fosso.
Acorda, Criança,
Hoje é o teu dia... Olha, vê como brilha lá longe, na manchete vibrante
dos jornais, na consciência heroica dos juízes, no cartaz luminoso da
cidade, o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA.
”  

*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Saudade

Saudade é um pouco como fome.
Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que
a presença é pouco: quer-se absorver a outra
pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para
uma unificação inteira é um dos sentimentos
mais urgentes que se tem na vida
”.

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 [...]

Fiquei sozinha um domingo inteiro.
Não telefonei para ninguém e ninguém me telefonou.
Estava totalmente só. Fiquei sentada num sofá
com o pensamento livre. Mas no decorrer desse dia até
a hora de dormir tive umas três vezes um súbito
reconhecimento de mim mesma e do mundo que me
assombrou e me fez mergulhar em profundezas obscuras
de onde saí para uma luz de ouro. Era o encontro do
eu com o eu. A solidão é um luxo
.”

[...]

*Clarice Lispector*
Em “Um Sopro de Vida”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1978.

[...]

– ‘Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei demais:
é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda
coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar
então mais alegre, mais alegre, por dentro!...’.


[...]   

*João Guimarães Rosa*
Em “Manuelzão e Miguilim: (Corpo de baile)”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 11ª Edição, 2001.

Ambiciosa

Para aqueles fantasmas que passaram,  
Vagabundos a quem jurei amar,  
Nunca os meus braços lânguidos traçaram  
O voo dum gesto para os alcançar...
 
Se as minhas mãos em garra se cravaram  
Sobre um amor em sangue a palpitar...  
– Quantas panteras bárbaras mataram  
Só pelo raro gosto de matar!
 
Minha alma é como a pedra funerária  
Erguida na montanha solitária  
Interrogando a vibração dos céus!
 
O amor dum homem? – Terra tão pisada!  
Gota de chuva ao vento baloiçada...  
Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS – Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

SOB O CÉU TODO ESTRELADO
  
As estrelas, no céu muito límpido, brilhavam,
divinamente distantes.
Vinha de caniçada o aroma amolecente dos jasmins.
E havia também, num canteiro perto, rosas que
cheiravam a jambo.
Um vaga-lume abateu sobre as hortênsias e ali ficou
luzindo misteriosamente.
A parte as águas de um córrego contavam a eterna história
sem começo nem fim.
Havia uma paz em tudo isso…
(Era de resto o que dizia lá dentro o meio adágio de Haydn.)
Tudo era tudo isso era tão tranquilo… tão simples…
E deverias dizer que foi o teu momento mais feliz.

*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (O Ritmo Dissoluto)”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

A Rua dos Cataventos

VI

Avozinha Garoa vai cantando
Suas lindas histórias, à lareira.
‘Era uma vez... Um dia... Eis senão quando...’
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um’outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa...

*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005. 

Soneto de desesperança

De não poder viver na esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.

Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.

Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: – Mato-a!

E foi assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.


*Vinicius de Moraes*
Em “Soneto de Fidelidade e outros poemas (CLÁSSICOS DE OURO)”,
São Paulo, Ediouro Editora, 6ª Edição, 2002.

À MINHA NOIVA 

‘Tu és flor; as tuas pétalas 
orvalho lúbrico molha; 
eu sou flor que se desfolha 
no verde chão do jardim.’ 
Têm por moda agora os líricos 
versos fazer neste estilo... 
– Tu és isso, eu sou aquilo, 
tu és assado, eu assim... 

Às negaças deste gênero, 
Carlotinha, não resisto: 
vou dizer que tu és isto, 
que aquilo sou vou dizer; 
tu és um pé de camélia, 
eu sou triste pé de alface, 
tu és a aurora que nasce, 
eu sou fogueira a morrer.

Tu és a vaga pacífica, 
eu sou a onda encrespada, 
tu és tudo, eu não sou nada, 
nem por descuido doutor; 
tu és de Deus uma lágrima, 
eu sou de suor um pingo, 
eu sou no amor o gardingo, 
tu Hermengarda no amor. 

Os fatos restabeleçam-se, 
ó dona dos pés pequenos: 
eu sou homem – nada menos, 
tu és mulher – nada mais; 
eu sou funcionário público, 
tu minha esposa bem cedo, 
eu sou Arthur Azevedo, 
tu és Carlota Morais.” 

*Arthur Azevedo*
(Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo)
Em “Toda a Poesia: Antologia Poética”, Seleção e organização Iba Mendes, 
Livro 598, São Paulo, Poeteiro Editor Digital, 2015. 

BOATO DA PRIMAVERA

Chegou a primavera? Que me contas!
Não reparei. Pois afinal de contas
nem uma flor a mais no meu jardim,
que aliás não existe, mas enfim
essa ideia de flor é tão teimosa,
que no asfalto costuma abrir a rosa
e põe na cuca menos jardinília
um jasmineiro verso de Cecília.
Como sabes, então, que ela está aí?
Foi notícia que trouxe um colibri
ou saiu em manchete no jornal?
Que boato mais bacana, mais genial,
esse da primavera? Então eu topo,
e no verso e na prosa, eis que galopo,
saio gritando a todos: Venham ver
a alma de tudo, verde, florescer!
Mesmo o que não tem alma? Pois é claro.
Na hora de mentir, meu São Genaro,
é preferível a mentira boa,
que o santo, lá no céu, rindo, perdoa,
e cria uma verdade provisória,
macia, mansa, meiga, meritória.
Olha tudo mudado: o passarinho
na careca do velho faz seu ninho.
O velho vira moço e na paquera
ele próprio é sinal de primavera.
Como beijam os brotos mais gostoso
ao pé do monumento de Barroso!
E todos se namoram. Tudo é amor
no Meier e na Rua do Ouvidor,
no Country, no boteco, Lapa e Urca,
à moda veneziana e à moda turca.
Os hippies, os quadrados, os reaças,
os festivos de esquerda, os boas-praças,
o mau-caráter (bom neste setembro)
e tanta gente mais que nem me lembro,
saem de primavera, e a vida é prímula
a tecnicolizar de cada rímula.
(Achaste a rima rica? Bem mais rico
é quem possui de doido-em-flor um tico.)
Já se entendem contrários, já se anula
o que antes era ódio na medula.
O gato beija o rato; o elefante
dança fora do circo, e é mais galante
entre homens e bichos e mulheres
que indagam positivos malmequeres.
E prima, é primavera. Pelo espaço,
o tempo nos vai dando aquele abraço.
E aqui termino, que termina o fato
surgido, azul, da terra do boato.

*Carlos Drummond de Andrade*
Em “O PODER ULTRAJOVEM”, Rio de Janeiro, Editora Record, 11ª Edição, 1992.