domingo, 25 de outubro de 2015

Tudo está na palavra...

[...]

Ajoelhou-se trêmula junto da cama, pois era assim que se rezava e disse 
baixo, severo, triste, gaguejando sua prece com um pouco de pudor:
alivia a minha alma;
faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha;
faze com que eu sinta que a morte não existe,
porque na verdade, já estamos na eternidade;
faze com que eu sinta que amar é não morrer, 
que a entrega de si mesmo não significa a morte;
faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária.
Faze com que eu não Te indague demais, 
porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta;
faze com que me lembre de que também não há explicação
 porque um filho quer o beijo de sua mãe e, no entanto,
 ele quer e, no entanto, o beijo é perfeito;
faze com que eu receba o mundo sem receio, 
pois para esse mundo incompreensível eu fui criada 
e eu mesma também incompreensível, então é 
que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, 
mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos 
entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria 
o pão que eu como, o sono que eu durmo;
faze com que eu tenha caridade por mim mesma, 
pois senão não poderei sentir que Deus me amou;
faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte 
haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém.

[…]

*Clarice Lispector*
Fragmento da narrativa do personagem Lóri, em
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, Rio de Janeiro, 
Editora Rocco Ltda., 1ª Edição, 1998, pág. 112.

Dai-me, Senhor, um coração de criança!

O olhar

[...]
 
Obrigado, Senhor, por meus olhos, janelas abertas para o alto mar.
Obrigado pelo olhar que transporta minha alma como o raio
generoso conduz a luz e o calor de Teu sol.
Dentro da noite rezo a Ti para que amanhã quando eu abrir
os olhos à luz da manhã clara,
Estejam prontos para servir à minha alma e ao seu Deus.

Faze que sejam claros meus olhos, Senhor,
E que meu olhar, bem reto, desperte uma fome de pureza.
Faze que não seja nunca um olhar desiludido, desabusado,
desesperado. Mas saiba admirar, extasiar-se, contemplar.
Dá-me aos olhos a graça de saberem fechar-se para melhor
Te encontrar, mas que nunca se afastem do Mundo por medo.
Dá-me ao olhar a graça de ser bastante profundo
para reconhecer Tua presença no Mundo.
E faze que jamais meus olhos se fechem à miséria dos homens.
Que meu olhar, Senhor, seja limpo e firme, Mas saiba enternecer-se,
E que meus olhos sejam capazes de chorar.

Faze que meu olhar não suje o que tocar,
Não perturbe, mas serene, não entristeça, mas semeie a Alegria,
Não seduza para guardar cativo,
Mas convide e arraste à superação de si mesmo.
Faze-o desconcertar o pecador, que reconheça através dele a
Tua Luz seja, porém, censura, só para encorajar.
Faze que meu olhar transtorne, por ser um encontro, o encontro de Deus.

Para que meu olhar seja tudo isto, Senhor,
Uma vez mais, esta noite, eu Te dou a minha alma,
Eu Te dou o meu corpo, eu Te dou os meus olhos,
Para que ao olhar os homens, meus irmãos,
Sejas Tu quem os olhe e de dentro de mim lhes acene.


*Michel Quoist*
Em “Poemas para Rezar”, São Paulo, Editora Livraria Duas Cidades, 23ª Edição, 1969.

A ortografia foi atualizada...

De tarde

Eu vi voando caminho do Ocidente,
O bando ideal de minhas ilusões;
Do sol, um raio trêmulo, dormente
Dourava-as com seus últimos clarões.

Para longe corriam doidamente
A crença, o amor, meigas aspirações...
Creio até, que entre as aves, tristemente,
Iam partindo nossos corações.

Além, além... e os pássaros risonhos,
Foram-se todos. Vênus lacrimosa
Brilhou. No mais, deserta a imensidade.

Não! No ocaso do sol e de meus sonhos,
Ficou, ainda a pairar triste e formosa,
A ave formosa e triste da saudade.


*Augusto de Lima*
Em “Poesias”, Rio de Janeiro, H.Garnier Livreiro-Editor, 1ª Edição, 1909.
Desvio

Podemos marcar um desencontro.
Eu mando a carta,
fico sem resposta,
você sai do jogo,
eu faço a aposta,
tentamos a canção, mas desafina;
rezamos a oração, mas descombina,
o beijo desvia e escorrega,
a palavra tropeça e foge à regra,
eu escolho o sol – você a bruma,
voltamos sempre ao lugar-comum.
Eu desajeito, você desarruma,
Nós dois: motivo algum.


*Flora Figueiredo*
Em “Limão Rosa”, São Paulo, Novo Século Editora, 1ª Edição, 2009.
Tristeza

Ai! quanta vez − pendida a fronte fria
− Coberta cedo do cismar p'los rastros −
Deixo minh'alma, na asa da poesia,
Erguer-se ardente em divinal magia
À luminosa solidão dos astros!...

Infeliz mártir de fatais amores
Se ergue − sublime − em colossal anseio,
Do alto infinito aos siderais fulgores
E vai chorar de terra atroz as dores
Lá das estrelas no rosado seio!

É nessa hora, companheiro, bela,
Que ela a tremer − no seio da soedade
− Fugindo à noite que a meu seio gela −
Bebe uma estrofe ardente em cada estrela,
Soluça em cada estrela uma saudade...

É nessa hora, a deslizar, cansado,
Preso nas sombras de um presente escuro
E sem sequer um riso em lábio amado −
Que eu choro − triste − os risos do passado,
Que eu adivinho os prantos do futuro!...


*Euclides da Cunha*

Em “EUCLIDES DA CUNHA - POESIA REUNIDA”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.
Horas de Crença

De noute aos brilhos dos sidéreos lumes –
Quando o mistério –, das so’idões no meio –,
Num beijo vindo da floresta o seio
Peja, sublime, de estivais perfumes!…

Quando, das serras nos altivos cumes
Debruça a Lua –, num calado anseio –,
A fronte loura –, meu amor, eu creio
Nas crenças santas que no olhar resumes…

Creio nos beijos do teu lábio rubro…
– Creio dos mortos no viver sem fim! –
As sombras d’alma numa prece encubro!…

Creio na febre de teu seio – e alfim
Por entre cismas o meu Deus descubro…

E muitas vezes creio até… em mim!…


*Euclides da Cunha*
Em “EUCLIDES DA CUNHA - POESIA REUNIDA”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.

Poesia enviada em uma foto onde o autor aparece...

Se acaso uma alma se fotografasse

Se acaso uma alma se fotografasse
De modo que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos… Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos.

Poeta! Tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando, deste grupo bem no meio

Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos, é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio…


*Euclides da Cunha*
Em “EUCLIDES DA CUNHA - POESIA REUNIDA”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.

domingo, 18 de outubro de 2015

Som

Alma divina,
por onde me andas?
Noite sozinha,
lágrimas, tantas!

Que sopro imenso,
alma divina
em esquecimento
desmancha a vida!

Deixa-me ainda
pensar que voltas,
alma divina,
coisa remota!

Tudo era tudo
quando eras minha,
e eu era tua,
alma divina!


*Cecília Meireles*
Em “Obra Poética”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2ª Edição, 1967.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

SONETO DE SAUDADE

Em minh’alma chove tanto
que não há como esconder
entre os olhos tanto pranto
que meu pranto faz chover...

Por encanto ou desencanto
em minh’alma é anoitecer
com saudade do teu canto
no encanto do amanhecer...

Num jardim sem claridade
mora em mim tua saudade
com o meu modo de viver...

E a saudade não consegue
esquecer que me persegue
para eu nunca te esquecer...


*Afonso Estebanez*

 Extraí daqui: http://afonsoestebanez.blogspot.com/search?q=SONETO+DE+SAUDADE

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Crepúsculo de outono

O crepúsculo cai, manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale… o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.


*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 12ª Edição, 2001.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Medo

Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloqüência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
- Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
- vejo-te ainda, e já te sinto ausente!


*Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino*
Em “NAMORADOS”, Rio de Janeiro, Editora Livraria H. Antunes, 14ª edição, 1943.
TRISTEZA

Nos dias de tristeza, quando alguém
Nos pergunta, baixinho, o que é que temos,
Às vezes, nem sequer nós respondemos:
Faz-nos mal a pergunta, em vez de bem.

Nos dias dolorosos e supremos,
Sabe-se lá donde a tristeza vem?!...
Calamo-nos. Pedimos que ninguém
Pergunte pelo mal de que sofremos...

Mas, quem é livre de contradições?!
Quem pode ler em nossos corações?!...
Ó mistério, que em toda parte existes...

Pois, haverá desgosto mais profundo
Do que este de não se ter alguém no mundo
Que nos pergunte por que estamos tristes?!


*Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino*
Em “NAMORADOS”, Rio de Janeiro, Editora Livraria H. Antunes, 14ª edição, 1943.
Doce asfixia de amor

Ah, se te houvesse padecer o quanto
do tanto que esse amor desesperado
padeceu-me de enfado e desencanto
como um beijo nos lábios sepultado.

Ah, se me houvesse redimir o pranto
do tanto que te amei sem ter amado
em padecendo em ti morrendo tanto
como o canto de um pássaro calado.

O amor que me asfixia de esperança
também se cala e em ti retine mudo
como sino a tanger sem ressonância.

Ah, não te fora o místico ‘contudo’...
Eu perdoaria o ‘mas’ da intolerância.
E meu amor, sem ‘mas’, seria tudo!


*Afonso Estebanez*

Extraí daqui:
http://afonsoestebanez.blogspot.com.br/2009/09/doce-asfixia-de-amor.html
SONHO ANDARILHO

O sonho é o andarilho da memória
e minha alma é apenas sua estrada
onde o amor recomeça a trajetória
por atalhos de acesso sem entrada.

Nem sempre há personagem numa história.
Nem sempre uma lembrança é relembrada.
Mas quase nunca o pesadelo é uma aurora
para alguns sonhos dissipados na alvorada.

Ai de mim, tua rota de lembrança...
Ai de ti, meu roteiro de esperança
remida pelo olhar dos passarinhos...

Contorno os rios tortos e consulto o mapa
para chegar, inda que morto, àquela etapa
onde morrer seja melhor em teus carinhos...


*Afonso Estebanez*

 Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2008_11_20_archive.html

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Pontinho de vista

Eu sou pequeno, me dizem,
e eu fico muito zangado.
Tenho de olhar todo mundo
com o queixo levantado.
Mas, se formiga falasse
e me visse lá do chão,
ia dizer, com certeza:
– Minha nossa, que grandão!


*Pedro Bandeira*

Extraí daqui:
http://www.escolakids.com/poeminhas-para-criancas.htm
O BATALHÃO DAS LETRAS

Aqui vão todas as letras,
Desde o A até o Z,
Pra você fazer com elas
O que esperam de você…

Aí vem o Batalhão das Letras
E, na frente, a comandá-lo,
O A, de pernas abertas,
Montado no seu cavalo.

Com um B se escreve BALÃO,
Com um B se escreve BEBÊ,
Com um B os menininhos
Jogam BOLA e BILBOQUÊ.

Com C se escreve CACHORRO,
Confidente das CRIANÇAS
E que sabe seus amores,
Suas queixas e esperanças…

Com um D se escreve DEDO,
Que poderá ser mau ou sábio,
Desde o dedo acusador
Ao D do dedo no lábio…

O E da nossa ESPERANÇA
Que é também o nosso ESCUDO
É o mesmo E das ESCOLAS
Onde se aprende de tudo.

Com F se escreve FUGA,
FRADES, FLORES e FORMIGAS
E as crianças malcriadas
Com F é que fazem FIGAS.

O G é letra importante,
Como assim logo se vê:
Com um G se escreve GLOBO
E o globo GIRA com G.

Com H se escreve HOJE
Mas ‘ontem’ não tem H…
Pois o que importa na vida
É o dia que virá!

O I é a letra do ÍNDIO,
Que alguns julgam ILETRADO…
Mas o índio é mais sabido
Que muito doutor formado!

Com J se escreve JULIETA,
Com J se escreve JOSÉ:
Um joga na borboleta,
O outro no jacaré.

O K parece uma letra
Que sozinha vai andando,
Lembra estradas, andarilhos
E passarinhos em bando…

O L lembra o doce LAR,
Lembra um casal à LAREIRA!
O L lembra LAZER
Da doce vida solteira…

Com M se escreve MÃO.
E agora vê que engraçado:
Na palma da tua mão
Tens um M desenhado!

N é a letra dos teimosos,
Da gente sem coração:
Com N se escreve – NUNCA!
Com N se escreve – NÃO!

Outras letras dizem tudo.
Mas o O nos desconcerta.
Parece meio abobalhado:
Sempre está de boca aberta…

Quem diz que ama a POESIA
E não a sabe fazer
É apenas um POETA inédito
Que se esqueceu de escrever…

Esse Q das QUEIJADINHAS,
Dos bons QUITUTES de QUIABO
Era um O tão mentiroso
Que um dia criou rabo!

Os RATOS morrem de RISO
Ao roer o queijo prato.
Mas para que tanto riso?
Quem ri por último é o gato.

Acheguem-se com cuidado,
De olho aceso, minha gente:
O S tem forma de cobra,
Com ele se escreve SERPENTE.

É o T das TRANÇAS compridas,
Boas da gente puxar;
Jeito bom de namorar
As menininhas queridas…

O U é a letra do luto!
O U do URUBU pousado
Nas negras noites sem lua
Num palanque do banhado…

Este V é o V de VIAGEM
E do VENTO vagabundo
Que sem pagar a passagem
Corre todo o vasto mundo.

Era uma vez um M poeta
Que um dia, em busca de uma rima,
Caiu de pernas pra cima
E virou um belo dábliu!
Coisa assim nunca se viu,
Mas é a história verdadeira
De como o dábliu surgiu…

Com um X se escreve XÍCARA,
Com X se escreve XIXI.
Não faças xixi na xícara…
O que irão dizer de ti?!

Ypsilon – letra dos diabos,
Que engasga o mais sabichão!
Por isso o povo e as crianças
A chamam de ‘pissilão’...

O Z é a letra de ZEBRA,
E letras das mais infames.
Com um Z os menininhos
Levam ZERO nos exames.

E todas as vinte e seis letras
Que aprendeste num segundo
São vinte e seis estrelinhas
Brilhando no céu do mundo!


*Mario Quintana*

 Em “O BATALHÃO DAS LETRAS”, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1ª Edição, 2014.
Os Carneirinhos

Todos querem ser pastores,
quando encontram, de manhã,
os carneirinhos,
enroladinhos
como carretéis de lã.

Todos querem ser pastores
e ter coroas de flores
e um cajadinho na mão
e tocar uma flautinha
e soprar numa palhinha
qualquer canção.

Todos querem ser cantores
quando a Estrela da Manhã
brilha só, no céu sombrio,
e, pela margem do rio,
vão descendo os carneirinhos
como carretéis de lã...


*Cecília Meireles*
Em “OU ISTO OU AQUILO”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 5ª Edição, 1990.

domingo, 11 de outubro de 2015

Balatetta

Por não ter esperança de beijá-lo
Eu mesmo, ou de abraçá-lo,
Ou contar-lhe do amor que me corrói
O coração vassalo,
Vai tu, poema, ao meu
Amado, vai ao seu
Quarto dizer-lhe quanto, quanto dói
Amar sem ser amado,
Amar calado.
Beijai-o vós, felizes
Palavras que levíssimas envio
Rumo aos quentes países
De seu corpo dormente, rumo ao frio
Vale onde vaga a alma
Liberta que na calma
Da noite vai sonhando, indiferente
À fonte que, de ardente,
Gera em meu rosto um rio
Resplandecente.
No sonolento ramo
Pousai, palavras minhas, e cantai
Repetindo: eu te amo.
Ele, que dorme, e vai
De reino em reino cavalgando sua
Beleza sob a lua,
Encontrará na voz de vosso canto
Motivo de acalanto;
E dormirá mais longe ainda, enquanto
Eu, carregando só, por esta rua
Difícil, meu pesado
Coração recusado,
Verei, nesse seu sono renovado,
Razão de desencanto
E de mais pranto.

Entretanto cantai, palavras: quem
Vos disse que chorásseis, vós também?


*Mário Faustino*
Em “Poesia de Mário Faustino [Antologia Poética]”, São Paulo,
Editôra Civilização Brasileira, 1ª edição, 1966.
Ego de Mona Kateudo

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.


*Mário Faustino*
Em “Poesia de Mário Faustino [Antologia Poética]”, São Paulo,
Editôra Civilização Brasileira, 1ª edição, 1966.
Carpe Diem

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar - tão nobre.
Já nele a luz da lua - a morte - mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)


*Mário Faustino*
Em “Poesia de Mário Faustino [Antologia Poética]”, São Paulo, 
Editôra Civilização Brasileira, 1ª edição, 1966.