terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Estátua

Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, − frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.


*Camilo Pessanha*
EmClepsidra e poemas dispersos”, Sintra/Portugal, Editora Publicações Europa-América, 
Coleção Livros de Bolso 502, págs. 23/66, 1987.
“Onde vos ides, minhas saudades?
Ou porque deixaes de vós ausente?
Sempre minhas sereis eternamente,
Por mais que me deixeis, ou que vos vades.

Se crueldade buscaes, por crueldades,
Onde achareis como eu quem vos sustente?
Se piedade buscaes, quem vos não sente,
Como vos quererá para piedades?

Mas que é isto, saudades, que tivestes?
Com tanta pressa, para mim tornastes?
Ou é que no caminho vos perdestes?

Porém, já de mim vos apartastes,
Tornae-vos outra vez d’onde viestes,
Porque outras tenho já que me deixastes!


*Desconheço a autoria*
Copiei daqui: http://www.culturalivre.net/2013/04/02/raridade-poetica/
Anoitecer

É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.

É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo
desta hora tenho medo.

É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz-morte-mergulho
no poço mais ermo e quedo;
desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza,
agasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.


*Carlos Drummond de Andrade*
EmA ROSA DO POVO, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.