domingo, 30 de abril de 2017

NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
 
                                                       Petrópolis, 25 de fevereiro de 1947.


*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (Belo belo)”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

No caminho, com Maiakóvski

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!


*Eduardo Alves da Costa*

Em “No Caminho, Com Maiakóvski”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1985.

domingo, 23 de abril de 2017

Sonetos ao Soneto

I

Soneto! Com quatorze primaveras,
te conheci! Foi predestinação!
Plantei quatorze rosas em botão
no teu nobre jardim cercado de heras.

Por entre as confidências mais sinceras,
eu te entreguei, cativo, o coração.
Meus dias, minha cruz, minha ilusão,
tu vestiste de aromas e quimeras.

Confiei-te sonho, amor, prantos, espinhos!
E tu, recompensando os meus louvores,
dás-me a tua acolhida e os teus carinhos.

Teus passos seguirei para onde fores!
Teremos, a abençoar nossos caminhos,
Um suave arco-íris de quatorze cores!...

II

...Assim, desde que eu era uma criança
e erguia os meus castelos de menino,
tornei-me teu ardente paladino,
lutando armado de perseverança.

Vivo a exaltar tua beleza mansa,
mesmo nos dias em que, à Dor, me inclino,
cansado de correr sem um destino,
cansado de esperar pela Esperança.

Soneto! As tuas taças quero erguê-las,
pois, mesmo tendo o coração tristonho,
espero, sempre e sempre, merecê-las.

Sim, tu me guias, lúcido e risonho,
formando, no alto, com quatorze estrelas,
o Cruzeiro do Norte do meu Sonho!

III

Quando, sangue e luz, no céu apontas,
rompendo as alvas brumas levantinas,
tu és, Soneto, um astro que fascinas,
radiosa estrela de quatorze pontas...

Uma pulseira de quatorze contas,
Um colar de quatorze turmalinas...
...Soberbo girassol entre boninas,
Também nos prados  ̶  novo sol  ̶  despontas...

Quanta vez, no silêncio ou no tumulto,
se te vejo nas cores da alvorada,
saio feliz, no rastro do teu vulto!

E vendo-te, na abóbada estrelada,
quero subir, rendendo-te o meu culto,
os quatorze degraus da tua escada!

 IV

Soneto, a tua vida de fulgores
desliza numa escarpa de martírios;
se és um campo coberto de alvos lírios,
também és um vergel de negras flores.

Regaço de alegrias e amargores,
ninho de mansuetudes e delírios,
nasces da chama espiritual dos círios,
como nasces do sol, que acende as cores.

Tu  ̶  florido e sonoro baluarte;
tu  ̶  rei do Amor, por mais que o ódio aguces;
tu  ̶  novo Cristo de um Calvário de Arte;

mesmo que cantes, mesmo que soluces,
revives todo dia, em toda parte,
as quatorze Estações da Via-Crúcis!

V

És, no reino das Artes  ̶  o Monarca;
no Culto da Poesia  ̶  és o Senhor!
És, Soneto, na Idade  ̶  um Patriarca,
tu, que vences o tempo e o seu clamor!

Nos caminhos, deixaste a tua marca,
Celebraste o Prazer, ungiste a Dor!
̶  Ronsard, Bilac, Herédia, Arvers, Petrarca;
e Bocage e Camões, poetas do Amor;

Stecchetti, Shakespeare, Antero e Dante;
Teresa de Jesus, Rueda e Chocano,
Foram quatorze eternas viibrações...

Ressoa, assim, no espaço, triunfante,
como se fosse a voz de um peito humano,
o bater de quatorze corações!


*Vasco de Castro Lima*
Em “O MUNDO MARAVILHOSO DO SONETO”, Rio de Janeiro, 
Editora Freitas Bastos, 1ª Edição, 1987.

sábado, 22 de abril de 2017

O SONETO

Ó florentino túmulo de prata!
Ó sepultura de catorze versos!
Demais viveu em ti, aprisionada,
A asa vibrátil do meu pensamento!

Demais sofri a dura disciplina
Do réu chicote de catorze pontas,
Soneto arcaico, inquisidor vermelho,
Que Petrarca há seis séculos gerou!

Ó taça antiga de catorze gomos,
Taça de oiro de Guido Cavalcanti,
Bebi por ti, mas atirei-te ao mar!

Não se ouve mais os címbalos da rima!
Asa liberta, voa em liberdade!
Jaula de bronze, estás aberta, enfim!


*Júlio Dantas*
Em “A HISTÓRIA E TEORIA DO SONETO (CRUZ FILHO, O SONETO, Edição de 1961, 
anotado por Glauco Mattoso)”, Rio de Janeiro, ELOS Editora, 2009, pág. 24.
Soneto

Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
Em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nós verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...


*Menotti del Picchia*
Em “Grandes sonetos da nossa língua (Organização de José Lino GRUNEWALD)”, 
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira,  2ª Edição, 1987.

domingo, 9 de abril de 2017

Vibrações do Sol

Dias em que framindo os meus versos estão,
em que estranho meu ser passivo e cismarento;
dias em que meu corpo é uma palpitação
de asas, da natureza ante o deslumbramento!

Numa dia, assim, como este, os meus tédios se vão,
e ao céu de escampo azul e ao Sol de ardor violento
eu só quero sentir a forte vibração
da vida, num prazer ou mesmo num tormento.

Saem dos lábios meus as expressões em trovas;
quero viver, gozar emoções muito novas,
amo quanto me cerca, amo o bem, amo o mal.

E, numa agitação de anseios incontidos,
nestes dias de Sol, os meus cinco sentidos
são aves ensaiando o vôo para o Ideal.


*Gilka Machado*
Em “Poesias Completas (Estado de Alma), Gilka Machado”, Rio de Janeiro, 
Editora Cátedra-Brasília/INL, 1ª Edição, 1978.
Meu anjo

                                 ‘Um anjo desejei ter a meu lado...
                                     E o anjo que sonhei achei-o em ti!...’
                            C. A. DE SÁ


És um anjo d’amor  ̵  um livro d’ouro,
Onde leio o meu fado
És estrela brilhante do horizonte
Do Bardo enamorado
Foste tu que me deste a doce lira
Onde amores descanto
Foste tu que inspiraste ao pobre vate
D’amor festivo canto;
É sempre nos teus cantos sonorosos
Que eu bebo inspiração;
Risos, gostos, delícias e venturas
Me dá teu coração.
Teu nome que trago na lembrança
Quando estou solitário,
Teu nome a oração que o peito reza
D′amor um santuário!
E tu que és minha estrela, tu que brilhas
Com mágico esplendor,
Escuta os meigos cantos de minh’alma
Meu anjo, meu amor.

Quando sozinho, na floresta amena
Tristes sonhos modulava,
Não em lira d′amor  ̵  na rude frauta 
Que a vida me afagava,
Tive um sonho d′amor; sonhei que um anjo
Estava ao lado meu,
Que com ternos afagos, com mil beijos
Me transportava ao céu.
Esse anjo d′amor descido acaso
De lá do paraíso,
Tinha nos lábios divinais, purpúreos
Amoroso sorriso;
Era um sorriso que infundia n′alma
O mais ardente amor;
Era o reflexo do formoso brilho
Da fronte do Senhor.
É anjo sonhado, cara amiga,
A quem consagro a lira,
És tu por quem minh′alma sempre triste
Amorosa suspira!

Quando contigo, caro bem, d′aurora
O nascimento vejo
Em um berço florido, e de ventura
Gozarmos terno ensejo;
Quando entre mantos d′azuladas cores
A meiga lua nasce
E num lago de prata refletindo
Contempla a sua face;
Quando num campo verdejante e ameno
Dum aspecto risonho
Ao lado teu passeio; eu me recordo
Do meu tão belo sonho
E lembra-me esse dia venturoso
Em que a vida prezei
Que vi teus meigos lábios me sorrirem,
Que logo te adorei!

Nesse dia sorriu a natureza
Com mágico esplendor
Parecia augurar ditoso termo
Ao nosso puro amor.
E te juro, anjo meu, ditosa amiga,
Por tudo que há sagrado,
Que esse dia trarei junto ao teu nome
No meu peito gravado.
E tu que és minha estrela, tu que brilhas
Com mágico esplendor,
Escuta os meigos cantos de minh′alma,
Meu anjo, meu amor!


*Machado de Assis*
Em “Obra Completa (Poesias Dispersas), Machado de Assis”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Aguilar, Volume III, 6ª Edição, 1986.
 
Pedras

Eu vi as pedras nascerem,
do fundo do chão descobertas.
Eram brancas, eram róseas,
̵  tênues, suaves pareciam,
mas não eram.

Eram pesadas e densas,
carregadas de destino,
para casas, para templos,
para escadas e colunas,
casas, plintos.

Dava a luz da aurora nelas,
inermes, caladas, claras,
̵  matéria de que prodígios?  ̵
ali nascidas e ainda
solitárias.

E ali ficavam expostas
ao mundo e às horas volúveis
para, submissas e dóceis,
terem outra densidade:
como nuvens.


*Cecília Meireles*
Em “Poemas Escritos na Índia”, São Paulo, Editora Global, 1ª Edição, 2014.
[…]
 
 Há muita coisa a dizer que não sei como
dizer. Faltam as palavras.
Mas recuso-me a inventar novas:
as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido.
E o que é proibido eu adivinho. Se houver força.
Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: 
fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase
cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
 
[…]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.
Essa lembrança que nos vem

Essa lembrança que nos vem às vezes…
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas…
Essa lembrança… mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida…
Ai! Tão perdida
que nem se possa saber mais de quem!


*Mario Quintana*
Em “A Cor Invisível”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 1989.
Meu pequeno oratório

Minha Nossa Senhora das Graças
toda minha.
Das raízes e dos troncos.
Das florestas e das frondes.
Dos rios que correm para o mar
e dos corguinhos sem destino.
Dos altares, dos montes e das grunas.
Dos pássaros sem vôo
e das rolinhas bandoleiras.

Nossa Senhora das cigarras imprevidentes
que morrem de cantar
e das formigas previdentes
que morrem sem cantar.

Das abelhas rufionas
que vão de flor em flor
segredando de amor
e acasalando os pólens
Das cobras e dos tigres
que também têm direito à vida.
Nossa Senhora
dos maus e dos bons.
Profundamente minha
porque de todos os anônimos
bichos e gentes.

Nossa Senhora
da custódia das sementes,
lançadas ao léu da vida
germinando, crescendo, florescentes
ou morrendo perdidas na raleira.

Nossa Senhora das sementes...
Ajudai todas elas – boas e más
a cumprir seu destino
de sementes,
lançando do seu pequenino
coração vital
o esporo à raiz fálica
que as confirmarão na terra
e na seqüência das gerações
através do tempo.
Nossa Senhora das raízes...

Eu sou a raiz ancestral,
perdida e desfigurada no tempo
obscura na terra
onde lutam, sobrevivem
e desaparecem todas
no esquecimento e no abandono.
Vigia para mim
e guarda em vida longa
todas as raízes novas
que vivem enleadas
às minhas
já gastas e amortecidas.

Abençoai, minha Nossa Senhora,
todos aqueles que se fora e que se desfizeram
na obscuridade e no esquecimento
da árvore ingrata que os alimentou.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.
Mãe Didi

Alguns perguntam pela minha vida, pelo embrião primário,
de como veio e se encontrou comigo a minha poesia,
a presença primeira do meu primeiro verso; eu respondo:

Ela cascateia há milênios.
Minha Poesia... Já era viva e eu, sequer nascida.
Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho.
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos:
pedras quebradas no rolar e bater de tantas pedras.

Dura foi a vida que me fez assim. Dura, sem ternura.
Dolorida sem sentir a dor.
Ausente sem sentir a ausência.
Distante tateando na distância. Tudo cruel. Todos cruéis.
Impiedosos.

Em torno, o abandono.
Aninha, a menina boba da casa.
Foi uma ex-escrava que me amamentou no seu seio fecundo.
Eram seus braços prazenteiros e generosos que me erguiam,
ainda rastejante, e
Aninha adormecia, ouvindo
estórias de encantamento.

Minha madrinha Fada...
Eu era Aninha Borralheira.
Era ela que me tirava da cinza
e me calçava sapatinhos de cristal.
Me vestia. Me carregava na Procissão.

Eu adormecia na cadeirinha de seus braços.
E sonhava que era um anjo de verdade
aconchegada na nuvem macia de seu xaile.

Toda a melhor lembrança da minha puerícia distante
está ligada a essa antiga escrava.
Na tarde da minha vida assento o seu nome na pedra rude
do meu verso: Mãe Didi.

Para você, Mãe Didi, está página sem brilho do meu Livro de Cordel.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.
Traço de União

Irmanadas na poesia
nos encontramos:
Quem vem vindo.
Quem vai indo.
Na roda-viva da vida
girando se esbaldando
no encalço de uma rima
fugidia.

Pegar no laço do pensamento
a rima feliz e plantar com amor
na divisa extrema do verso…
A chamada rima de ouro
que tem forma de chave de ouro.
E, dizer que há poetas consagrados
que têm delas um chaveiro!

Com os dedos pegamos a luz.
Começou o seu tempo.
Meu tempo se acaba.
O esplendor de uma aurora.
O poente que se apaga.

Fui na vida o que estás agora.
Tu serás o que sou.
Nosso traço de união.
És o passado dos velhos.
Eu, o futuro dos moços.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.