segunda-feira, 26 de agosto de 2013

As rosas que tu plantastes... são ternuras que deixastes dentro de meu coração...

Adeus à vida

É, então, isso a vida: a nau perdida,
Sem bússola e sem leme, aos temporais?
A flórea escarpa, de íngreme subida,
Da montanha dos risos e dos ais?

É, então, isso a vida: a flor colhida
Sobre abismos ocultos e fatais?
A quimera da Terra Prometida,
No êxodo eterno para o Nunca-Mais?

É, então, isso a vida: o sonho obscuro
Dos Ícaros, Jasões e Prometeus,
Perdido na celagem do futuro?

É, então, isso a vida? ᅳ Vida, adeus!
Não é esse o caminho que procuro...
Mas seja tudo pelo amor de Deus.


*Da Costa e Silva*

Em “Obras completas de Da Costa e Silva”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, 3ª edição, 1985.

domingo, 25 de agosto de 2013

Despedida

No momento cruel da despedida,
Gelado o lábio, mudo, hirto, sem ar,
Eu vi sua alma, de ilusões despida,
Tremer à luz de seu tão triste olhar.

E eu não chorei… Seu peito ᅳ a alva guarida
De minha alma ᅳ chorava em doudo arfar…
E eu não chorei, mas eu senti a vida
Das lágrimas ao peso se curvar!…

Saí, andei, corri, parei cansado.
Voltei-me e longe, longe eu vi asinha
ᅳ Garça de amor fugindo pr’a o passado

Branca, pura, ideal, ᅳ sua casinha -
E as lágrimas de amor deixei ᅳ domado ᅳ
Constelarem da dor a noite minha!


*Euclides da Cunha*

Em “Euclides da Cunha: Poesia Reunida”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Eu quero

Eu quero à doce luz, os vespertinos pálidos
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas
ᅳ Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos
Onde a Poesia dorme, aos cantos da cascatas…

Eu quero aí viver ᅳ o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar ᅳ os tristes prantos meus…
E envolto o coração, nas sombras do mistério,
Sentir minh’alma erguer-se entre a floresta de Deus!

Eu quero aí unir a voz de meus martírios
C’os trenos, que murmura a brisa nos palmares
ᅳ As lágrimas guardar, no seio azul dos lírios,
E os soluços no seio dos trêm’los nenúfares…

Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens ᅳ da agreste patativa…
Da natureza eu quero nos grandes seios túmidos,
Beber a Calma, o Bem e a Crença ᅳ ardente, altiva.

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
Das ásp’ras cachoeiras que irrompem do sertão…
 E a minh’alma, cansada ao peso atroz das mágoas,
Silente adormecer no colo da so'idão…


*Euclides da Cunha*

 Em “Euclides da Cunha: Poesia Reunida”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Desalento

Às vezes oiço rir, e ‘ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa.
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entorpecida…
O roxo de meus lábios é saudade
Duns beijos que me deram noutra vida!

Eu não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
De só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, negra, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A voz da saudade

Se cai a noite plácida, serena,
Tão branca de luar ᅳ doce magia...
A carícia da brisa torna a cena,
Num requinte envolvente de poesia.

O azul do céu de uma beleza extrema
Povoado de estrelas irradia,
E qual o encantamento de um poema
Faz palpitar sutil melancolia.

No Coração da mata um mocho pia
Rompendo a solidão num tom dolente,
Como um canto de amarga soledade.

E o coração da gente silencia
Porque mais alto que sua voz ardente
Fala a voz merencória da saudade.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Embalo

Adormeço em ti minha vida,
ᅳ  flor de sombra e de solidão ᅳ
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! ᅳ E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...


*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira - MEC, 1973.

domingo, 18 de agosto de 2013

Saudade

Saudade é uma dor suave e forte!
Cicatriz a sangrar dentro da gente...
E a vida em flor com sensação de morte;
Amanhecer com sombras de poente.

Saudade! Insônia de quem não se importe
De sonhar envolvido em sono quente.
Nuvem de sol, calor que desconforte
A alma gelada, tiritante e ardente.

Saudade é a expressão indefinida...
Verso incompleto de canção dorida...
Minuto que se fez eternidade!

Recado extraviado no caminho...
A paz da ave que perdeu seu ninho...
Melodia de pranto é o que é Saudade.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição,
1994.
Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.


*Carlos Drummond de Andrade*

Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Pequena flor

Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
E se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
Na seda frágil, e preservar o perfume que aí dorme,

E vê passarem as leves borboletas livremente,
E ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia,
E o sol claro do dia às claras estátuas beijando sente,

E espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho
Pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
A libertasse, porém a desprenderia do galho,

E nesse temor e esperança aguarda o mistério transida
ᅳ Assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
Há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.


*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira - MEC, 1973.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.


*Carlos Drummond de Andrade*

Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.
Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


*Carlos Drummond de Andrade*

Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, Volume Único, 3ª edição, 2002.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Como a noite descesse...

Como a noite descesse e eu me sentisse só,
só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam,
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora!
e vi logo só as estrelas é que me entenderiam.

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
ᅳ É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
ᅳ Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
ᅳ Ó doce e incorruptível Aurora...
se só as estrelas é que me entenderiam?


*Emílio Moura*

Em “Poesias de Emílio Moura”, Belo Horizonte, Editora Art, 1ª Edição, 1991.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

CEM ANOS DE PERDÃO

Quem nunca roubou não vai me entender.
E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender.
Eu, em pequena, roubava rosas.


[...]

No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa,
havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha.
Eu queria poder pegar nela.
Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.


[...]

O processo era sempre o mesmo: 
 
[...]

Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória
que ninguém me tirava.

[...]

Também roubava pitangas.


[...]

Nunca ninguém soube.
Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão.
As pitangas, por exemplo,
são elas mesmas que pedem para ser colhidas,
em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.
”      

*Clarice Lispector*

Em "Felicidade Clandestina", Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1971.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Medida da Significação

I

Procurei-me nesta água da minha memória
que povoa tôdas as distâncias da vida
e onde, como nos campos, se podia semear, talvez,
tanta imagem capaz de ficar florindo...

Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,
para sentir, na noite, o aroma da minha duração.

Compreendo que, da fronte aos pés, sou de ausência absoluta:
desapareci como aquele ᅳ no entanto, árduo ᅳ ritmo
que, sôbre fingidos caminhos,
sustentou a minha passagem desejosa.

Acabei-me como a luz fugitiva
que queimou sua própria atitude
segundo a tendência do meu pensamento transformável.

Desde agora, saberei que sou sem rastros.
Esta água da minha memória reúne os sulcos feridos:
as sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.

E aquilo que restaria eternamente
é tão da côr destas águas,
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletido aqui,
permanece inefável.

II

Voz obstinada, por que insistes chamando
por um nome que não corresponde mais a mim?
Não é do meu propósito que fiques ao longe sòzinha.

Nem tu sabes que espécie de saudade abrolha na noite
e como o silêncio tenta mover-se inùtilmente,
quando diriges teus ímãs sonoros,
sondando direções!

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.

As aparências dispersaram-se de mim,
como pássaros:
que sol se pode fixar nesta existência,
para te definir a minha aproximação?

Minhas dimensões se aboliram nos limites visíveis:
como podes saber onde me circunscrevo,
e de que modo me pode o teu desejo atingir?

Eu mesma deixei de entender a minha substância;
tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

Como podes chamar por mim como às coisas concretas,
e assegurar-me que sou tua Necessidade e teu Bem?

III

Pela experiência do teu contentamento,
crio formas que vistam meus pensamentos irreveláveis,
e modelo fisionomias com que te possa aparecer.

Pisarei minha solidão com renúncia e alegria
e, por entre caminhos assombrados,
resoluta virei até onde te encontres,
cortando as sombras que crescem como florestas.

Eu mesma me sentirei alucinada e esquisita,
com êsse alento das nebulosas sinistras
que se desenvolvem nas febres.

Não saberei precisamente quando me verás,
nem si compreenderei a linguagem que falas,
e os nomes que têm as tuas realidades
e o tempo dos outros acontecimentos...

Mas o que, desde agora, sinto e sei com firmeza
é que tua voz continuará chamando por mim, obstinada,
embora eu não possa estar mais perto nem mais viva,
e se tenha acabado o caminho que existe entre nós,
e eu não possa prosseguir mais...

IV

A água da minha memória devora todos os reflexos.

Desfizeram-se, por isso, tôdas as minhas presenças
e sempre se continuarão a desfazer.

É inútil o meu esforço de conservar-me;
todos os dias sou meu completo desmoronamento:
e assisto à decadência de tudo,
nestes espelhos sem reprodução.

Voz obstinada que estás ao longe chamando-me,
conduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.

Traze de longe os teus atributos de amargura e de sonho,
para veres o que dêles resta
depois que chegarem a êstes ermos domínios
onde figuras e horas se decompõem.

Não precisaremos falar mais nem sentir:
seremos só de afinidades: morrerão as alegorias.

E saberás distinguir as coisas que perecem desoladas,
olhando para esta água interminável e muda,
que não floriu, que não palpitou, que não produziu,
de tanto ser puramente imortal...


*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 1, 1973.

domingo, 4 de agosto de 2013

Cantilena

Quando as estrelas surgem na tarde, surge a esperança...
Toda alma triste no seu desgosto sonha um Messias:
Quem sabe? o acaso, na sorte esquiva, traz a mudança
E enche de mundos as existências que eram vazias!

Quando as estrelas brilham mais vivas, brilha a esperança...
Os olhos fulgem; loucas, ensaiam as asas frias:
Tantos amores há pela terra, que a mão alcança!
E há tantos astros, com outras vidas, para outros dias!

Mas, de asas fracas, baixando os olhos, o sonho cansa;
No céu e na alma, cerram-se as brumas, gelam as luzes:
Quando as estrelas tremem de frio, treme a esperança...

Tempo, o delírio da mocidade não reproduzes!
Dorme o passado: quantas saudades, e quantas cruzes!
Quando as estrelas morrem na aurora, morre a esperança...


*Olavo Bilac*

Em “Poesias – Olavo Bilac”, São Paulo, Martins Editora Livraria Ltda., 1ª Edição, 2001.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

[...]

Já vê que não sou nada
 
 [...]

Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões,
uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida,
uma indiferente a transbordar de ternura.
Grave e metódica até à mania, atenta a todas as subtilezas
d'um raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto,
de ser uma espécie de D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento,
quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida,
num dom de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa.
Toda, enfim, nesta frase a propósito de Delteil:
‘Três simple avec son enthousiasme à sa droite et son désespoir à sa gauche’.

 
[...]

*Florbela Espanca*
Trecho de uma carta escrita ao Dr. Guido Battelli,
em 27 de julho de 1930 - SOMBRIO, 1947, pág. 35.