domingo, 25 de março de 2018

Última canção do beco

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!

Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas,
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
pobre, vim morar aqui.

Lapa – Lapa do Desterro –,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)

Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!


*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.
À Hora em que os Cisnes Cantam

Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono…
Benevolência. Inconseqüência. Inexistência.

Paz dos que não têm fé, nem carinho, nem dono…
Todo o perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono…
Esmola que faz bem… – nem gestos, nem violência…

Nem palavras. Nem choro. A mudez. Pensativas
abstrações. Vão temor de saber. Lento, lento
volver de olhos, em torno, augurais e espectrais…

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?
– Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais…


*Cecília Meireles*
Em “NUNCA MAIS... E POEMA DOS POEMAS”, São Paulo, Editora Global, 2ª edição, 2015.
Canto

I

Jesus! Filho de Deus! Quero adorar-te
No céu, na terra, no universo inteiro!
Vejo teu nome escrito em toda a parte
Onde vai meu olhar de forasteiro!
Milagres de saber, prodígios de arte,
Senhor e servo, artista e pegureiro,
Todos repetem neste mundo vário,
O poema sublime do Calvário!

II

Os astros de mais luz, orbes imensos,
Hipérboles lançadas sobre os ares,
Brilhantes a rolar em mares densos,
Escarpados de angélicos colares;
Gênios supernos, querubins infensos,
Tudo, tudo, Senhor, em teus altares
São míseras ofertas que a desgraça
Logo transforma em pó, cinza e fumaça!

III

A faixa branco-azul dos hemisférios,
Onde palpitam borboletas de ouro,
Estrada excelsa dos salões sidéreos,
Mostra a meus olhos imortal tesouro!
Ali vagueiam meus irmãos etéreos!
Ali repousa meu sonhar vindouro!
Ali da glória resplandece a origem!
Ali domina a sempiterna Virgem!

IV

O’ Cristo! Se de um sangue sacrossanto
Banhaste a gleba vil onde pisaste,
Se jogaram soldados em teu manto
Quando da cruz as dores suportaste,
Tudo mudou-se! Do divino pranto
Constelações sem número formaste!
Da túnica manchada por imundos
Fizeste o pavilhão que abriga os mundos.

V

Nos belos tempos da saudosa infância
Quadra de louros sonhos, de esperanças
Ouvia-te das balsas na fragrância:
– ‘Vinde, vinde até mim, pobres crianças!’
Tu me deste a miséria e a abundância,
Quando chorei, me consolaste, ó Deus!
Ao clarão imortal dos olhos teus!

VI

Rujam embora as vagas do oceano
Mandando aos alcantis navio incerto,
Corra o gládio de bárbaro tirano
Transformando as cidades num deserto!
Passe da peste e morte o sopro insano,
Medonho, horrendo em boqueirão aberto!
Flagele a humanidade a sede, a fome...
O’ Cristo! Creio em ti, creio em teu nome!

VII

Jesus! Hoje porém se os livros abro
E o fruto colho da fatal ciência,
Tudo vejo em terrível descalabro!
Nem crenças, nem razão, nem consciência
De velha planta tronco feio e glabro
Volve este pobre mundo em decadência!
Só tu podes verter aos homens luz,
Árvore santa onde sofreu Jesus!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde, 
Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)”,
Rio de Janeiro, Editora Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.

sábado, 24 de março de 2018

Que me pedes

Tu pedes-me um canto na lira de amores,
Um canto singelo de meigo trovar?!
Um canto fagueiro já – triste – não pode
Na lira do triste fazer-se escutar.

Outrora, coberto meu leito de flores,
Um canto singelo já soube trovar;
Mas hoje na lira, que o pranto umedece,
As notas d’outrora não posso encontrar!

Outrora os ardores que eu tinha no peito
Em cantos singelos podia trovar;
Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me,
Mas hoje, traído, como hei de cantar?

Não peças ao bardo, que aflito suspira,
Uns cantos alegres de meigo trovar;
À lira quebrada só restam gemidos,
Ao bardo traído só resta chorar.


*Antônio Gonçalves Dias*
Em “Nossos Clássicos, Gonçalves Dias”, São Paulo, Livraria Editora Agir, Vol. 18, 12ª Edição, 1985.
Pedido

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.


*Antônio Gonçalves Dias*
Em “Nossos Clássicos, Gonçalves Dias”, São Paulo, Livraria Editora Agir, Vol. 18, 12ª Edição, 1985.
XXXIV

Lá onde a luz do último lampião
Uns tristes charcos alumia embalde,
Moram, numa infinita solidão,
As estrelinhas quietas do arrabalde...

Na cidade, quem é que atenta nelas,
Na sua história anônima, escondida?
São menininhas pobres às janelas,
Olhando inutilmente para a vida...

Quando ao Centro descemos à noitinha,
Penso às vezes o quanto essas meninas
No seu desejo triste hão de sofrer

Ao ver os bondes que, do fim da linha,
Partem, iluminados como vitrinas,
Para a doida Cidade do Prazer!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.
Alma solitária

Ó alma doce e triste e palpitante!
Que cítaras soluçam solitárias
Pelas Regiões longínquas, visionárias
Do teu Sonho secreto e fascinante!

Quantas zonas de luz purificante,
Quantos silêncios, quantas sombras várias
De esferas imortais imaginárias
Falam contigo, ó Alma cativante!

Que chama acende os teus faróis noturnos
E veste os teus mistérios taciturnos
Dos esplendores do arco de aliança?

Por que és assim, melancolicamente,
Como um arcanjo infante, adolescente,
Esquecido nos vales da Esperança?!


*Cruz e Sousa*
Em “Últimos Sonetos de Cruz e Sousa”, Forianópolis-Rio de Janeiro,
Editora da UFSC/Co-edição Fundação Casa de Rui Barbosa, 3ª Edição Revista, 1997.

domingo, 18 de março de 2018

Publicado em 1851...

I-Juca Pirama

I

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos
cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d’outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.

Quem é?
ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz:
de um povo remoto
Descende por certo
dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras:
no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incubem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira
Entesa-se a corda da embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Em tanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,

II

Em fundos vasos d’alvacenta argila
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
Jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim!

Contudo os olhos d’ignóbil pranto
Secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
Do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode,
Em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
Na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
Folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
Lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
O raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
Como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
Esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

III

Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras,
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante.
Ao menor passo

Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d’imigos feros.

‘Eis-me aqui’, diz ao índio prisioneiro;
‘Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
As nossas matas devassaste ousado,
Morrerás morte vil da mão de um forte.’

Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
‘Dize-nos quem és, teus feitos canta,
Ou se mais te apraz, defende-te.’ Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.

IV

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes
escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do inimigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja,
dizei!

Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta?
Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

V

Soltai-o!
diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
És livre; parte.
E voltarei.
Debalde.

Sim, voltarei, morto meu pai.

Não voltes!

É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
És livre; parte!

Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.

Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi:
arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite.
Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia:
Ingrato! Ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio.
Espectro d’homem, penetrou no bosque!

VI

Filho meu, onde estás?

Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões; tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!

Tardaste muito!

Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!

Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!

Que novos males

Nos resta de sofrer?
que novas dores,
Que outro fado pior Tupã nos guarda?
As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.

Mas tu tremes!

Talvez do afã da caça...

Oh filho caro!

Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!...

E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tacteando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo:
foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!

Tu prisioneiro, tu?

Vós o dissestes.

Dos índios?

Sim.

De que nação?

Timbiras.

E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebrastes maça...
Nada fiz... aqui estou.

Nada! –

Emudecem;

Curto instante depois prossegue o velho:
Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...
E depois?...

Eis-me aqui.

Fica essa taba?

Na direção do sol, quando transmonta.

Longe?

Não muito.

Tens razão: partamos.

E quereis ir?...

Na direção do acaso.

VII

‘Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis’,
e mas foram
Senhores em gentileza.

‘Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por se ufane!’

Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:
Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto.

Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!

VIII

‘Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés’.

‘Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!’

‘Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.’

‘Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!’

‘Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.’

‘Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.’

IX

Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservada,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma!
O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
Esse momento só vale a pagar-lhe
Os tão compridos transes, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai:
vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem,
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis
o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.

Basta! Clama o chefe dos Timbiras,
Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças.

O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
‘Este, sim, que é meu filho muito amado!’

‘E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
Corram livres as lágrimas que choro,
Estas lágrimas, sim, que não desonram.’

X

Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente:
‘Meninos, eu vi!’
‘Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mi.

‘Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!’

Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: ‘Meninos, eu vi!’.


*Antônio Gonçalves Dias*

Em “Nossos Clássicos, Gonçalves Dias (Últimos Cantos)”, São Paulo, 
Livraria Editora Agir, Vol. 18, 12ª Edição, 1985.

sábado, 17 de março de 2018

XXIX

                                                           Para o Sebastião


Olha! Eu folheio o nosso Livro Santo...
Lembras-te? O ‘Só’! Que vida, aquela vida...
Vivíamos os dois na Torre de Anto...
Torre tão alta... em pleno azul erguida!...

O resto, que importava?... E no entretanto
Tu deixaste a leitura interrompida...
E em vão, nos versos que tu lias tanto,
Inda procuro a tua voz perdida...

E continuo a ler, nessa ilusão
De que talvez me estejas escutando...
Porém tu dormes... Que dormir profundo!

E os pobres versos do Anto lá se vão...
Um por um... como folhas...  despencando...
Sobre as águas tristonhas do Outro Mundo...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.