terça-feira, 27 de junho de 2017

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.


*Manuel Bandeira*
Em “MANUEL BANDEIRA - MELHORES POEMAS”, São Paulo, Editora Global, 16ª Edição, 2004.
Amor e lágrimas

Ouve o mar que soluça na solidão
Ouve, amor, o mar que soluça
Na mais triste solidão

E ouve, amor, os ventos que voltam
Dos espaços que ninguém sabe
Sobre as ondas se debruçam
E soluçam de paixão

E ouve, amor, no fundo da noite
Como as árvores ao vento
Num lamento se debruçam
E soluçam para o chão.

Deixa amor que um corpo sedento
Como as árvores e o vento
No teu corpo se debruce e soluce de paixão.


*Letra: Vinicius de Moraes
Composição: Cláudio Santoro*
O Pastor Amoroso

I

Quando eu não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.

Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado.


*Alberto Caeiro (Heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “Poemas de Alberto Caeiro - Fernando Pessoa”, Lisboa, Editora Ática, 10ª Edição, 1993.

domingo, 25 de junho de 2017

Saudade

És a filha dileta da noss´alma
Da noss´alma de sonho e de tristeza
Andas de roxo sempre, sempre calma
Doce filha da gente portuguesa!

Em toda a terra do meu Portugal
Te sinto e vejo, toda suavidade
Como nas folhas tristes dum missal
Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!...

Andas nos olhos negros, magoados
Das frescas raparigas. Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!

Também te trago n´alma dentro em mim,
E trazendo-te sempre, sempre assim,
É bem a pátria qu´rida que eu embalo.


*Florbela Espanca*
Em “POESIA DE FLORBELA ESPANCA: TROCANDO OLHARES, LIVRO DELE E
LIVRO DAS MÁGOAS
”, São Paulo, Editora L&Pm Editores, 1ª Edição, 2002.
Quero

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “AS IMPUREZAS DO BRANCO”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2012.
Epigrama nº 03

Mutilados jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-me tempos, formas, cores, vidas...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só de incerteza da ressurreição.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa (Col. Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira)”, Rio  de  Janeiro, 
Editora Nova  Aguilar, 4ª Edição, 1993.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Canção para uma valsa lenta

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance
Minha vida passou por passar
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches de vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...
” 

*Mario Quintana*
Em “Canções”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

domingo, 18 de junho de 2017

Quando perderes o gosto humilde da tristeza...

Quando perderes o gosto humilde da tristeza,
Quando nas horas melancólicas do dia,
Não ouvires mais os lábios da sombra
Murmurarem ao teu ouvido
As palavras de voluptuosa beleza
Ou de casta sabedoria;

Quando a tua tristeza não for mais que amargura,
Quando perderes todo estímulo e toda crença,
̶  A fé no bem e na virtude,
A confiança nos teus amigos e na tua amante,
Quando o próprio dia se te mudar em noite escura
De desconsolação e malquerença;

Quando, na agonia de tudo o que passa
Ante os olhos imóveis do infinito,
Na dor de ver murcharem as rosas,
E como as rosas tudo o que é belo e frágil,
Não sentires em teu ânimo aflito
Crescer a ânsia de vida como uma divina graça:

Quando tiveres inveja, quando o ciúme
Crestar os últimos lírios de tua alma desvirginada;
Quando em teus olhos áridos
Estancarem-se as fontes das suaves lágrimas
Em que se amorteceu o pecaminoso lume
De tua inquieta mocidade:

Então sorri pela última vez, tristemente,
A tudo o que outrora
Amaste. Sorri tristemente...
Sorri mansamente... em um sorriso pálido... pálido
Como o beijo religioso que puseste
Na fronte morta de tua mãe... Sobre a tua fronte morta...


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Aguilar, 5ª Edição, 2009.
A PARTIDA 

Quero morrer de noite −
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda

Quero morrer de noite.
Irei me separando aos poucos,
Me desligando devagar.
A luz das velas envolverá meu rosto lívido.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas.
Tuas mãos chegarão aos meus lábios
Um pouco de água
E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos.
Os que virão, os que ainda não conheço.
Estarão em silêncio,
Os olhos postos em mim.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.

Aos poucos me verei pequenino de novo, muito pequenino.
O berço se embalará na sombra de uma sala
E na noite, medrosa, uma velha coserá um enorme boneco.
Uma luz vermelha iluminará um grande dormitório
E passos ressoarão quebrando o silêncio.
Depois na tarde fria um chapéu rolará numa estrada…

Quero morrer de noite −
As janelas abertas.
Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo.
E quando todos souberem que já não estou mais

E que nunca mais volverei
Haverá um segundo, nos que estão
E nos que virão, de compreensão absoluta.


*Augusto Frederico Schmidt*
Em “Poesia Completa (1928-1965)”, Rio de Janeiro, Topbooks/Faculdade da Cidade, 1995.