quarta-feira, 29 de julho de 2015

Boa noite, solidão

Boa noite, solidão
Espera-te o meu coração
E não faltas, minha amiga
Chegas um pouco atrasada
Ao convívio que te aguarda
Desta ilusão exaurida.
 
Boa noite, solidão
Serve-me de distração
Vem p’ra bem perto de mim
Vê-me como um teu amigo
Que não encontra outro abrigo
Nesta dor que não tem fim.
 
Boa noite, solidão
Renegemos a emoção
Mandemos a esperança embora
Foi promessa que fizemos
E amanhã cá nos veremos
Como sempre, à mesma hora.


*Eugénio de Sá*

 Extraí daqui: http://www.joaquimevonio.com/espaco/eugenio_de_sa/eugenio_ed_anteriores.html
A Voz que Nos Rasgou por Dentro

De onde vem - a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui − aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos reconhecido outrora, onde está?
A voz que dança de noite, no inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: ‘Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos’.

Como se a ouvíssemos.


*Nuno Júdice*
Em “Meditação sobre Ruínas”, Lisboa, Quetzal Editores, 1ª Edição, 1994.
Menino e Moço

Tombou da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!

Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se à distância!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:
Voltam na asa do vento os aias que a alma chora,
Elas, porém, Senhor, elas não voltam mais...


*António Nobre*
Em “”, Lisboa, Editora Publicações Dom Quixote, 1ª Edição, 2000, pág. 163.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Amor e religião

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração.
Quantos, oh! Quantos

Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!

No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o Céu se alara.

E Deus lhe disse: ‘És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto’
.”

*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira, 41ª Edição, 1997.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

O guardador de rebanhos

[...]

II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…


[...]

*Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “Poemas completos de Alberto Caeiro”, São Paulo, Editora Nobel, 1ª Edição, 2008, pág. 11.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Acrobata da dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...


Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.


*Cruz e Sousa*
Em “Broquéis - Cruz e Sousa, OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro,
Editora José Aguilar S.A., 1961, 1ª Edição, pág. 92.
O riso

                              ‘Ri, coração, tristíssimo palhaço’.
                         (Cruz e Sousa)


O Riso – o voltairesco clown – quem mede-o?!
– Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Láctea fria do Nirvana,
Alenta a Vida que tombou no Tédio!

Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,
E ergue à sombra da dor a que se irmana
Lauréis de sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho em nimbos de epicédio!
Bendito sejas, Riso, clown da Sorte
– Fogo sagrado nos festins da Morte
– Eterno fogo, saturnal do Inferno!

Eu te bendigo! No mundano cúmulo
És a Ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas de um desgosto eterno!


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira, 41ª Edição, 1997.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Pequei, Senhor...

Pequei Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha, a vossa glória.


*Gregório de Matos Guerra*
Em “Crônica do viver baiano seiscentista – obra poética completa (volume 1)”, 
Rio de Janeiro, Editora Record, 4ª edição, 1999.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Amor e Crença

                                     E sê bendita!
                                        H. Sienkiewicz


Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?!

Ah! Se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp'la do Céu santa e infinita!

Deus é o templo do Bem. Na altura Imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a Crença,
ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira, 1997, 41ª Edição.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Contradição

                                              Para Maria Helena

Sou a contradição de duas almas, trago-as
gêmeas no mesmo corpo e unidas num só ‘Eu’:
− uma, que sonha e canta, e faz das próprias mágoas
poemas para iludir a dor que já sofreu...
Outra, que vive e pensa, e aos contínuos atritos
da vida, já atingiu a realidade em si,
e sublima o recalque de ânsias e de gritos
num sorriso, que às vêzes, sem querer... sorri...

Uma que crê no mundo e que trabalha o belo,
que constrói com paciência, pelas próprias mãos,
nas ruínas de um castelo desfeito, o castelo
nôvo que há de hospedar os velhos sonhos vãos!
Outra, que sabe rir e escarnecer de tudo!
Quando fere, é impiedosa, irônica e mordaz,
e há muito já concluiu: é inútil, não me iludo,
a verdade é a ilusão que dura um pouco mais!

Uma, que quando a sós, o olhar longe povoa
de imagens que a lembrança vai traçando a giz,
é sonhadora e ingênua, e ingênuamente boa
ao pensar que algum dia ainda há de ser feliz!
Outra, que afeita à luta, ao trabalhar seus dias,
sofre em silêncio e encontra em seu sofrer remédio,
− diz que Deus é um brinquedo das filosofias,
a invenção de algum louco em momento de tédio!

Uma, cujo otimismo é uma luz franca e clara,
julgando o mundo bom e achando a vida bela;
outra, materialista e rude, − o mundo encara
com um vago e estranho olhar onde há chamas de vela!

Uma que não cresceu e que se sente criança,
irrequieta e feliz, faz da vida um brinquedo;
outra, − que sepultou sua última esperança
e ao agir previdente, às vêzes sente mêdo...

..........................................................

Aquela é a voz feliz das planícies contentes
matizadas com as veias azuis das correntes;
essa, é a voz que caiu e rolou das montanhas!
E é sentindo-me assim, que às vêzes penso, como
pode ter minha vida a forma de um só pomo
e o sabor de dois frutos de árvores estranhas!

..........................................................

Sou a contradição de duas almas, − uma
onde nas horas suaves de poesia existo;
outra, − a alma que crê que não tem alma alguma
e desceu da montanha tal como o Anti-Cristo!

Duas margens debruando a risca de um caminho;
duas almas; se aquela é flor, essa é espinho,
se uma pisa a terra... a outra se ergue, no céu...
Duas almas... dois lados de uma só moeda;
uma é vinho, sazona; a outra é vinagre, azeda;
uma é amarga, só sal... a outra é doce, é só mel!


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “Concêrto a Quatro Mãos” (JG de Araújo Jorge & Maria Helena), Rio de Janeiro, 
Editora Vecchi, 3ª Edição, 1966.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A Cristo Nosso Senhor Crucificado, falando um pecador nos últimos da vida

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer;
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.


*Gregório de Matos Guerra*
Em “Crônica do viver baiano seiscentista – obra poética completa (volume 1)”, Rio de Janeiro, 
Editora Record, 4ª edição, 1999, pág. 169.

terça-feira, 14 de julho de 2015

[...]
 
O amor que não se sente capaz de um sacrifício não é amor, será, quando muito, desejo grosseiro, expressão bestial dos instintos, incontinência desvairada dos sentidos, que morre com o objetivar-te, sem lograr atingir aquela altura onde a vida se torna um enlevo, um doce arrebatamento, a transfiguração estética da realidade... E eu não quero amar, não quero ser amada assim... Porque quando tudo estivesse findo, quando o desejo morresse, em nós só ficaria o tédio; nem a saudade faria reviver em nossos corações a lembrança dos dias findos, dos dias de volúpia de gozo efêmero, que na nossa febre de amor sensual tínhamos sonhado eternos.

Mas não me julgues por isto diferente das outras mulheres; há, em todas nós, o mesmo instinto, a mesma animalidade primitiva, desenfreada, numas, pela grosseria e desregramento dos apetites; contida, nobremente, em outras, pelas forças vitoriosas da inteligência, da vontade, superiormente dirigida pela delicadeza inata dos sentimentos ou pelo poder selético e dignificador da cultura.

Não amamos num homem apenas a plástica ou o espírito; amamos o todo. Sim, meu Hery, nós, as mulheres, não temos meio termo no amor; não amamos as linhas, as formas, o espírito ou essa alguma coisa de indefinível que arrasta vocês, homens, para um ente cuja posse é para vocês um sonho ou raia às lides do impossível. Não, meu Hery, não é assim que as mulheres amam. Amam na plenitude do ser e nesse sentimento concentram, por vezes, todas as forças da sua individualidade física ou moral.

É pois assim que eu te amo, querido; e porque te amo, sinto-me capaz de esperar e de pedir-te que sejas paciente. O tempo passa lento, mas passa...

...E porque ele passa, e porque a noite já vai alta, é-me preciso terminar.

Adeus. Beija-te longamente, Anayde.

*Anayde Beiriz*

Em “Anayde Beiriz - Panthera dos Olhos Dormentes” (de Marcus Aranha), João Pessoa, 
Editora Manufatura, 1ª Edição, 2005.

sábado, 11 de julho de 2015

Noturno

Têm para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Águas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?


*Ariano Suassuna*
Em
Ariano Suassuna - Um perfil biográfico, Rio de Janeiro, 
Editora Zahar, 1ª Edição, 2007, pág. 50.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Saudade

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?


*Gilka Machado*
Em “Velha Poesia”, Rio de Janeiro, Editora Baptista de Souza, 1ª Edição, 1968.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Anseio II

Nessas paragens desoladas, onde
O silêncio campeia soberano
Morreram notas do bulício humano,
Nem vibra a corda que a saudade esconde.

Anseios d'alma aqui se perdem. Donde
Fluiu outrora a luz dum doce engano,
Hoje é trevas, é dor, é desengano,
E eu ergo preces que ninguém responde.

Triste criança virginal, quem dera
Voar est'alma a ti, longe dos laços
Dessa jaula de carne que a encarcera!

Ah! Que unidos assim, lá nos espaços,
Cantarias do amor a primavera,
Tendo a minh'alma presa nos teus braços!
 

*Augusto dos Anjos*
Em
Augusto dos Anjos, Obra Completa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A., 
3ª reimpressão, 2004.
A razão de eu me gostar

Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta cousa dolorosa
Ele construiu em mim uma cousa gloriosa,
Que é o amor.


*Adalgisa Nery*

Em “A Mulher Ausente”, Rio de Janeiro, Editôra José Olympio, 1ª edição, 1946, pág. 151.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Interrogação

                                                A Guido Batelli

 Neste tormento inútil, neste empenho
 De tornar em silêncio o que em mim canta,
 Sobem-me roucos brados à garganta
 Num clamor de loucura que contenho.

 Ó alma de charneca sacrossanta,
 Irmã da alma rútila que eu tenho,
 Dize pra onde vou, donde é que venho
 Nesta dor que me exalta e me alevanta!

 Visões de mundos novos, de infinitos,
 Cadências de soluços e de gritos,
 Fogueira a esbrasear que me consome!

 Dize que mão é esta que me arrasta?
 Nódoa de sangue que palpita e alastra...
 Dize de que é que eu tenho sede e fome?!


*Florbela Espanca*
Em “Florbela Espanca - Poesia Completa”, Lisboa, Bertrand Editora, 1ª Edição, 2009.
Mentiras

                                                 Ai quem me dera uma feliz mentira
                                               Que fosse uma verdade para mim!
                                              J. Dantas


Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?

Ai, se o sei meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade...
Não palpita d’amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito;

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!


*Florbela Espanca*
Em “Florbela Espanca - Poesia Completa”, Lisboa, Bertrand Editora, 1ª Edição, 2009.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

“Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt”...

Lacrimae Rerum 
 

                                          (A Tommazzo Cannizzarro)
 
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde vão teus sóis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza, que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas...


*Antero de Quental*
Em “Antero de Quental - Sonetos Completos”, Porto, Lello Editores, Edição/reimpressão, 1983.
Desejo

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer,
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!

Que seja a tua mão branda como a neve
Que feche meu olhar numa carícia leve
Num perpassar de pétala de lis...

Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!...
.....................................................................
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!...


*Florbela Espanca*
Em “Florbela Espanca - Poesia Completa”, Lisboa, Bertrand Editora, 1ª Edição, 2009.