domingo, 28 de março de 2021

Vocação do Poeta
                                                                               
Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano eterno,
Nasci de mil vidas sobrepostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas

Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu Criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.


*Murilo Mendes*
Em “Murilo Mendes: Poesia Completa e Prosa (Tempo e eternidade)”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A., 1ª Edição, 1994. 

A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
”  

*Machado de Assis*
Em “Obra completa (Relíquias de Casa Velha) – Organização Afrânio Coutinho,
Volume 3
”, Biblioteca luso-brasileira, Série brasileira, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A., 1994.

O último pajé

Cheio de angústia e de rancor, calado,
Solene e só, a fronte carrancuda,
Morre o velho Pajé, crucificado
Na sua dor, tragicamente muda.
Vê-se-lhe aos pés, disperso e profanado,
O troféu dos avós: a flecha aguda,
O terrível tacape ensanguentado,
Que outrora erguia aquela mão sanhuda.
Vencida a sua raça tão valente,
Errante, perseguida cruelmente,
Ao estertor das matas derrubadas!
‘Tupã mentiu!’ e erguendo as mãos sagradas,
Dobra o joelho e a calva sobranceira
Para beijar a terra brasileira.


*Péthion de Villar
*
(pseudônimo de Egas Moniz Barreto de Aragão)
Em “POESIA COMPLETA – A morte do pajé”, Brasília, MEC (Conselho Federal de Cultura),
Edição comemorativa do cinqüentenário de seu falecimento, 1978.

 “O canto do Piaga

I

O’ Guerreiros da Taba sagrada,
O’ Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O’ Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite – era a lua já morta –
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro – ossos, carnes – tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
O’ Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O’ Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
O’ desgraça! ó ruína! ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja…
Esse monstro… – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
O’ desgraça! ó ruína! ó Tupá!


*Gonçalves Dias*
Em “GONÇALVES DIAS – POESIA E PROSA COMPLETAS em um volume (Primeiros cantos)”,
Organização Alexei Bueno e Ensaio Biográfico Manuel Bandeira,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A, 1ª Edição, 1998.

A idade da escrita - poema ensaio

Costumo dizer que a minha atividade começa com a escrita
porque toda a minha atividade gira à volta da escrita.
Mas não há só uma escrita nossa
a que escrevemos para nós:
a escrita é POR CAUSA DO TEMPO
é POR CAUSA DOS OUTROS
é para não esquecermos
é para sermos lembrados é PARA SERMOS ALÉM DE
EXISTIRMOS
sinal

vínculo
aceno
Costumo dizer que a nossa era é
a era da ESCRITALIDADE
e da IDADE DA ESCRITA
porque a nossa era é
a era da ESCRIBATURA
a IDADE DA ESCRAVATURA DA ESCRITA
A noção de ESCRITA alargou-se
a TUDO
a QUASE TUDO
porque a escrita é sinônimo de IMAGEM
imagem para se ver
para se ter
para se ser
Escrevo para compreender
para apreender
a escrita é o que me revela
um mundo
o mundo

II

Escrevo e descrevo
e descrevendo
o tempo insere-se nas linhas
e nas entrelinhas em que escrevo
escrevendo imagens
que a si mesmas se descrevem
desescrevendo o tempo
A ESCRITA
é a petrificada imagem de um percurso
do rio antigo
da seta temporal
Ainda não sabemos pensar de outro modo
De caminho o arabesco insinua-se
e mesmo quando maquinal
a escrita prolonga A MÃO
é o prolongamento extensíssimo da mão
indica
disciplina
explosão contida
Onda surda é a escrita.


*Ana Hatherly*
Em “A idade da escrita E OUTROS POEMAS”, São Paulo,
Editora Escrituras (Coleção Ponte Velha), 1ª Edição, 2005.

O Lenço Dela

Quando a primeira vez, da minha terra
Deixei as noites de amoroso encanto,
A minha doce amante suspirando
Volveu-me os olhos úmidos de pranto.

Um romance cantou de despedida,
Mas a saudade amortecia o canto!
Lágrimas enxugou nos olhos belos...
E deu-me o lenço que molhava o pranto.

Quantos anos contudo já passaram!
Não olvido porém amor tão santo!
Guardo ainda num cofre perfumado
O lenço dela que molhava o pranto...

Nunca mais a encontrei na minha vida,
Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto!
Oh! quando eu morra estendam no meu rosto
O lenço que eu banhei também de pranto!


*Álvares de Azevedo*
Em “Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1862)
– Poema integrante da série Lira dos Vinte Anos: Continuação –
GRANDES poetas românticos do Brasil – Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora,
Introd. Frederico José da Silva Ramos
”, São Paulo, LEP, Volume 1, 1959.

 “Uma canção à beira-mar

Na mão que me leva circula o meu sangue
na voz que me fala a voz das origens
na luz dos seus olhos a alma se expande
até mim chegando que causa vertigens
desejos de volta ao seio materno
embora nós dois estejamos felizes
desejos de à fonte do sangue voltar.
Mas pela mão d'ELA não perco o caminho
é seio, é abrigo, é ventre, é ninho
enquanto caminho na beira do mar.


*Manoel Caetano Bandeira de Mello*
Em “Uma canção à beira-mar”, Rio de Janeiro, Livraria Editora Cátedra Ltda., 1977.

POEMA

I

Somos nós a verdade do que existe,
somos nós, meu amor,
A nossa vida breve ampara a vida
das coisas, que persiste.
De que valem os vértices dourados
dos montes, se os não virmos?
Águas, campos e verdes sossegados
que a fina brisa alisa?

II

Estes montes, que nunca vestiu neve
ampla sombra derramam pelo campo,
onde andam sossegados sobre a relva
que não existe na paisagem calma,
rebanhos silenciosos que eu só vejo,
mergulhada no sonho de existir.
Mas que sei de viver e de existir?
Uma luta entre o fogo e a fria neve,
entre aquilo que vejo e o que não vejo,
o debruçar-me sobre qualquer campo,
se a noite vem e vem com ela a calma
do que nem sei se existe sobre a relva.
A verde, frouxa e tão mais fria relva,
que cobre, sombra e sonho, esse existir
por trás do que aparenta apenas calma,
 e é lento fogo transformado em neve,
arder de estio sob o frio campo,
que só eu mesma posso ver e vejo.

E sinto com meu corpo, mais que vejo,
deitada sobre inexistente relva
de um real, silencioso e verde campo,
sobre o qual as janelas do existir
se abrem de manso como pousa a neve
sobre o alto cimo da montanha calma.
E cai de mim a mim a sombra calma
de alguma coisa que não sei se vejo
e se confunde com estoutra neve
que livre deixa o monte e a fresca relva,
e nem por isso acaba de existir
em mim que me contento olhando o campo;
que aspiro a suavidade que há no campo,
aquela paz sem fim, aquela calma
que não dói nem assusta de existir,
e afundo na umidade do que vejo,
apoiada no sonho dessa relva
que nem existe sob a fria neve.

III

Hoje não vou colher
nem laranjas, nem flores, nem amoras.
Vou ver crescer o dia
no redondo das frutas,
e ouvir sem pressa o canto destas aves.
Serão as mesmas de ontem?
Um dia a mais que fez de mim, que faz?
E as aves que cantavam,
se não são estas, onde
estão? O canto apenas se repete?
Aquela que ontem via
o que ora vejo não é mais em mim?
Então eu me renovo
como as águas e as plantas?
Sou outra ou me acrescento ao que já sou?
No entanto, é tudo igual,
embora eu saiba que só na aparência;
e meu prazer me vem
de estar sentada aqui,
detendo um tempo que se não detém.

IV

Na tarde sem soçobro o azul instala
sobre as coisas um líquido silêncio,
e a mim me deixa só, desapartada,

na observância fiel de um obsidente
solilóquio amoroso, propiciado
por tua ausência e minha infausta mente.

Do jugo não imposto e incerto estado
ninguém me livra, que este mal de agora
ainda é o bem em mal transfigurado

por obra de distância e da memória,
não do acaso ou do sonho, não da sépia
que às vezes cobre o chão de melancólicas

paisagens. Que noturnas, vãs, repletas
formas criadas pelo imaginar
venturoso (que nem o sonho aquieta)

sobem de mim a ti, crescem no ar,
sem perguntas, propósitos, certezas,
 e enrolam-se em si mesmas devagar,

impregnadas de límpida escureza.
Em torno a solidão não desampara,
antes fecunda a antiga natureza

que dorme a tanto mito entrelaçada.

v

Quando flores e nuvens,
mosaicos de silêncio repentino,
frescos vales e montes,
onde a erva cresce e o gado se apascenta,
e o rio sua prata
oferece gentil, à móvel brisa
de sede sossegada,
quando tudo o que tenho for lembrança;
que será do que vejo,
se a mais fiel memória transfigura
o que lembra? No entanto,
o mesmo milho crescerá no campo,
repetindo o ritual
de há milênios; as mesmas-outras águas
espelharão no dorso
de vidro movediço os mesmos ramos.
Estas serão as árvores,
as verdadeiras, íntegras, antigas,
que só com o pensamento
eu não alcançarei em plenitude

de silêncio e de vida.
Pois uma coisa é ter, outra, lembrar.
Uma coisa é viver,
viver em bruto, o sol dando na pele,
o vento levantando
cortinas de esperança e esquecimento;
outra coisa é criar.
Criar quase prescinde do que existe.
O que existe é somente
um rascunho ou um ponto de partida.
Enquanto posso, vivo
a fértil realidade destes longes.
Laboriosa construo
com este mel, para os futuros sonhos, aprazível morada.

*Marly de Oliveira*
Em “A vida natural”, Rio de Janeiro, Companhia Editora Literatura S.A., 1967.

A Moenda

Na remansosa paz da rústica fazenda,
à luz quente do sol e à fria luz do luar,
vive, como a expiar uma culpa tremenda,
o engenho de madeira a gemer e a chorar.

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
e, ringindo e rangendo, a cana a triturar,
parece que tem alma, advinha e desvenda
a ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...

Movida pelos bois tardos e sonolentos
geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
que as desgraças por vir, sabe-as todas de cor.

Ai, dos teus tristes ais, ai, moenda arrependida
– Álcool! para esquecer os tormentos da vida
– e cavar, sabe Deus, um tormento maior!


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren,
Pandora, Verônica e Alhambra)
”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

Soneto Inascido

O poema subjaz. Insiste sem existir
Escapa durante a captura  
Vive do seu morrer.

O poema lateja.
É limbo, é limo,
Imperfeição enfrentada
Pecado original.

O poema viceja no oculto
Engendra-se em diluição
Desfaz-se ao apetecer.

O poema poreja flor e adaga
E assassina o íncubo sentido.

Existe para não ser.


*Artur da Távola
*
(pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)
Em “O JUGO DAS PALAVRAS”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 2013.

sábado, 20 de março de 2021

 “No fundo azul

No fundo azul
no espelho de uma delicada tristeza
que os meus olhos reflectem:
vês-me?
vês-me como eu sou?
vês-me como algo que se descobre
na acrobacia da imagem?

Na sensual tranquilidade da palavra
o poeta tenta uma arriscada ordem
e entre a fábula e a reportagem

simula mentir
para atingir
a superior verdade.


*Ana Hatherly*
Em “A idade da escrita E OUTROS POEMAS”, São Paulo,
Editora Escrituras – Coleção Ponte Velha, 1ª Edição, 2005.

 Auto-retrato

Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.


*Ana Hatherly*
Em “A idade da escrita E OUTROS POEMAS”, São Paulo,
Editora Escrituras – Coleção Ponte Velha, 1ª Edição, 2005.

Canto da minha terra

Amo-te, ó minha terra, por tudo o que me tens dado:
Pelo azul do teu céu, pelas tuas árvores, pelo teu mar;
Pelas estrelas do Cruzeiro que me deixam anestesiado,
Pelos crepúsculos profundos que põem lágrimas no meu olhar;

Pelo canto harmonioso dos teus pássaros, pelo cheiro
Das tuas matas virgens, pelo mugido dos teus bois;
Pelos raios do sol, do grande sol que eu vi primeiro…
Pelas sombras das tuas noites, noites ermas que eu vi depois;

Pela esmeralda líquida dos teus rios cristalinos,
Pela pureza das tuas fontes, pelo brilho dos teus arrebóis;
Pelas tuas igrejas que respiram pelos pulmões dos sinos,
Pelas tuas casas lendárias onde amaram nossos avós;

Pelo ouro que o lavrador arranca das tuas entranhas,
Pela bênção que o poeta recebe do teu céu azul,
Pela tristeza infinita, infinita das tuas montanhas,
Pelas lendas que vêm do Norte, pelas glórias que vêm do Sul;

Pelo teu trapo de bandeira que flâmula ao vento sereno,
Pelo teu seio maternal onde a cabeça adormeci,
Sinto a dor angustiada do teu coração pequeno
Para conter a onda sonora que canta de amor por ti.


*Olegário Mariano*
Em “Toda uma vida de poesia: poesias completas, Olegário Mariano em dois volumes”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1º Volume, 1957.

 “Meu Sonho

Eu

Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Porque brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O fantasma

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...


*Álvares de Azevedo (Manuel Antônio Álvares de Azevedo)*
Em “LIRA DOS VINTE ANOS – Álvares de Azevedo, Apresentação e Notas – José Emílio Major Neto”,
São Paulo, Ateliê Editorial, 4ª Edição – conforme a nova ortografia, 2009.

Tarde no Recife

Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Máxime.
Cais do Abacaxi. Gameleiras.
Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita.
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um carreto gritando – alerta!
Algazarra, Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses.
Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas do Pacífico.
Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
E da beleza católica do rio.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa – Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.

Imagens do Nordeste

Sobre o capim orvalhado
Por baixo das mangabeiras
Há rastros de luz macia:
Por aqui passaram luas,
Pousaram aves bravias.

Idílio de amor perdido,
Encanto de moça nua
Na água triste da camboa;
Em junhos do meu Nordeste
Fantasma que me povoa.

Asa e flor do azul profundo,
Primazia do mar alto,
Vela branca predileta;
Na transparência do dia
És a flâmula discreta.

És a lâmina ligeira
Cortando a lã dos cordeiros,
Ferindo os ramos dourados;
– Chama intrépida e minguante
nos ares maravilhados.

E enquanto o sol vai descendo
O vento recolhe as nuvens
E o vento desfaz a lã;
Vela branca desvairada,
Mariposa da manhã.

Velho calor de Dezembro,
Chuva das águas primeiras
Feliz batendo nas telhas;
Verão de frutas maduras,
Verão de mangas vermelhas.

A minha casa amarela
Tinha seis janelas verdes
Do lado do sol nascente;
Janelas sobre a esperança
Paisagem, profundamente.

Abri as leves comportas
E as águas duras fundiram;
Num sopro de maresia
Viveiros se derramaram
Em noites de pescaria.

Camarupim, Mamanguape,
Persinunga, Pirapama,
Serinhaém, Jaboatão;
Cruzando barras de rios
Me perdi na solidão.

Me afastei sobre a planície
Das várzeas crepusculares;
Vi nuvens em torvelinho,
Estrelas de encruzilhadas
Nos rumos do meu caminho.

..................................................

Salinas de Santo Amaro,
Ondas de terra salgada,
Revoltas, na escuridão,
De silêncio e de naufrágio
Cobrindo a tantos no chão.

Terra crescida, plantada
De muita recordação.


*Joaquim Cardozo*
Em “Poesia Completa e Prosa – Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar e Editora Massangana, 1ª Edição, 2008.

 Sugestões do poente 

I

Poentes! Quanta tristeza há no céu ao Sol-Posto!
A tristeza do céu se concentra no mar...
Ave, Maria! Unção de esperança ao desgosto
Dos que vão pela Vida a sofrer e a esperar...

Poentes de ouro! Evocais Nosso Senhor exposto
Na custódia do sol, à luz crepuscular!
Poentes de sangue! Em vós deixou Jesus o rosto
Na verônica azul, num símbolo solar...

Poentes no mar! Em vós, como em delírio, avisto
Moisés no Mar Vermelho os vagalhões a abrir...
O mar reverberando à passagem de Cristo...

Poentes! Naus de Nadir! Galeras do Porvir!...
Esquadra em Siracusa, ante o incêndio imprevisto...
Frota de Salomão em demanda de Ofir!

II

Poentes! Que sugestões à hora do entardecer,
Quando em místico enlevo o olhar longe acompanha
O áureo disco do sol, aureolando a montanha,
Que, nimbada de luz, fica a resplandecer...

Poentes! Púrpuras, ouro e pedraria a arder,
Como me deslumbrais na vossa pompa estranha!
Vossa fascinação no meu ser é tamanha,
Que atônito me deixa, a cismar sem querer...

Poentes! Eternizais a beleza tristonha,
Jardins suspensos de Nabucodonosor,
Florindo em íris sob o céu da Babilônia!...

Poentes sobre a montanha! Ante o vosso esplendor,
Nos êxtases da Fé, meu espírito sonha
Com a transfiguração de Jesus no Tabor!

III

Poentes no campo! O céu pelo ocaso, ao declínio
Do sol, que sugestões fantásticas nos dá!
Sobre a paisagem verde, o horizonte sanguíneo
Lembra as sarças de fogo ao verbo de Jeová...

Poentes de ouro, num céu de cobalto e alumínio,
Evocais Salomão, que ora aguardando está,
Sobre a púrpura em luz de radioso triclínio,
A Noite – a negra e astral rainha de Sabá.

Poentes! Simbolizais, num mito estranho ou errôneo,
O almo trigo do Bem no campo azul da Fé,
O ígneo joio do Mal nas ceifas do Demônio...

Poentes rurais dourando as árvores, como é
Que a tarde está tão linda e tão triste o campônio,
Poentes da compunção do Ângelus de Millet!


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada
(Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra)
”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “Litania das Horas Mortas

Por estas horas de silêncio e solidão,
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.

Por estas horas é que a cisma me conduz
Por estradas de treva e caminhos de luz.

É nestas horas, quando em êxtase medito,
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.

Por estas horas, quando a sombra estende os véus,
A fé me leva além dos mais remotos céus.

É nestas horas de tristeza e de saudade
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade.

Por estas horas, minhas naus ousam partir
Para Istambul, para Golconda, para Ofir...

É nestas horas, Noite amiga, em teu regaço,
Que eu me difundo pelo Tempo e pelo Espaço.

Por estas horas eu somente aspiro ao Bem,
Que em vida se tornou minha Jerusalém.

É nestas horas, quando o espírito descansa,
Que me depões na fronte o teu beijo, Esperança!

Por estas horas é que eu sinto florescer,
Como os astros no céu, o jardim do meu ser,

É nestas horas de quietude que deponho,
Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada – o Sonho.

Por estas horas é que eu gosto de sonhar,
Para ter ilusões brancas como o luar.

É nestas horas de mistério e beatitude
Que a Glória me fascina e a Poesia me ilude.

Por estas horas de tranqüila e doce paz,
Quanta serenidade o espírito me traz!

É nestas horas, quando a treva se constela,
Que ouço o teu canto nas estrelas, Filomela!

Por estas horas, a minh'alma anseia por
Teu encanto, Ventura! e teu engano, Amor!

É nestas horas de tristeza e esquecimento
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento.

Por estas horas eu me julgo Parsifal
Para ir pela renúncia à conquista do Graal.

É nestas horas que, como um eco profundo,
Repercute no meu o coração do mundo.

Por estas horas transitórias e imortais
Se desvanecem minhas dúvidas fatais.

É nestas horas de harmonia indefinida
Que eu tento decifrar o teu enigma, Vida!

Por estas horas, meu instinto morre, com
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom.

É nestas horas de fantástico transporte
Que eu busco interrogar a tua esfinge, Morte!

Por estas horas, eu me enlevo assim, porque
Vela no lodo humano a luz que tudo vê...

Por tuas horas silenciosas, benfazejas,
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada
(Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra)
”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 Ilusões da Vida
 
Quem passou na vida em branca nuvem.
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro do homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.


*Francisco Otaviano de Almeida Rosa*
Em “Grandes Poemas do Romantismo Brasileiro – Alexei Bueno”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2003.

A um indiferente

Nesses teus olhos vagos, distraídos,
nesse teu ar distante, indiferente,
nessa apatia assim dos teus sentidos
que parecem dormir profundamente,

nessa frieza com que os teus ouvidos
ouvem o grito deste amor ardente,
nesses teus braços calmos, desprendidos,
que nunca me cingiram ternamente,

nessa ausência completa de desejo,
nessa boca que foge do meu beijo,
é que reside o teu maior encanto...

Se o teu amor ao meu amor viesse,
se essa felicidade eu conhecesse,
talvez... talvez não te quisesse tanto!


*Maria José Aranha Rezende*
Em “O Mundo Maravilhoso do Soneto” – Vasco de Castro Lima
(Coletânea de 232 Poetas Sonetistas fiéis ao Soneto),
Rio de Janeiro, Editora Livraria Freitas Bastos, 1987.

sexta-feira, 12 de março de 2021

À maneira de Olegário Mariano

Triste flor de milonga ao abandono,
Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!
Ontem, a coqueluche dos rapazes,
E agora? pobre pássaro sem dono.

Primavera e verão foram-se. O outono
Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...
E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...
O último sonho, e após, o último sono!

As cigarras calaram-se. Era tarde!
E hoje que no teu sangue já não arde
O fogo em que tanta alma se abrasou,

Choras, sem compreenderes que a saudade
É um bem maior do que a felicidade,
Porque é a felicidade que ficou!


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa - Volume Único”,
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.

 “Soneto de Contrição

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

 “Saudade

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropéis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, bandeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalhar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

Em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!...


*Raimundo Correia*
Em "Poesias Completas (Itaú Cultural - Panorama Poesia e Crônica)",
São Paulo, Editora Nacional, 1948.

Saudade

Infeliz de quem vive sem saudade,
Do agridoce pungir alheio às penas,
Sem lembranças de amor e de amizade,
Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.

Triste de ti, ancião, que te condenas
A mole insipidez da ancianidade
E não revives na memória as cenas

De prazer e de dor da mocidade!
Ter saudade é viver passadas vidas,
Percorrendo paragens preferidas,
Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se... E em sonho, como por encanto,
A dor que nos doeu já não dói tanto,
Gozo que foi é gozo inda maior.


*Bastos Tigre*
Em “Antologia poética de Bastos Tigre” (2 Volumes),
Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves/INL, 1982.

NÓS

XXII

Tu senhora, eu senhor, ambos senhores
de um pequenino mundo. No caminho,
nunca vi flores em que houvesse espinho,
nunca vi pedras que não fossem flores.

Naquele quarto andar, longe das dores
e tão perto dos céus, com que carinho,
com quanto zelo edificaste o ninho
do mais feliz de todos os amores!

Tudo passou. Um dia, triste e mudo,
deixaste-me sozinho. Hoje tens tudo:
és rica, és invejada, és conhecida...

E eu tenho apenas, desgraçado e louco,
daquele amor que te custou tão pouco
esta saudade que me custa a vida!


*Guilherme de Almeida*
Em "Toda a Poesia", São Paulo, Livraria Martins Editora, 1ª Edição, 1952.

 O bandolim

Cantas, soluças, bandolim do Fado
E de Saudade o peito meu transbordas;
Choras, e eu julgo que nas tuas cordas,
Choram todas as cordas do Passado!

Guardas a alma talvez d'um desgraçado,
Um dia morto da Ilusão as bordas,
Tanto que cantas, e ilusões acordas,
Tanto que gemes, bandolim do Fado.

Quando alta noite, a lua é fria e calma,
Teu canto vindo de profundas fráguas,
É como as nênias do Coveiro d'alma!

Tudo eterizas num coral de endechas...
E vais aos poucos soluçando mágoas,
E vais aos poucos soluçando queixas!


*Augusto dos Anjos*
Em “Augusto dos Anjos, Obra Completa”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar S.A., 3ª reimpressão, 2004.

 Duas almas

Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...

A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...


*Alceu Wamosy*
Em “Poesia Completa (Coleção Memória)”, Porto Alegre, Alves Editores, IEL, EDIPUCRS, 1994.

 “DIÁLOGO INTERIOR

Ante o infinito,
Cismo e medito.

Mas vou pensando
E interrogando.

Dialogo a esmo
Comigo mesmo.

– Tudo convida
A amar a vida.

– E a amar se deve
A um bem tão breve?

– A vida é bela
No que revela...

– Mas como existe
O homem tão triste?

– A vida é a luta
Divina e bruta.

– Onde o heroísmo?
Páramo ou abismo?

– A vida encerra
Os bens da terra.

– Se esses dons temos,
Por que sofremos?

– A vida inquieta
É a mais completa.

– Mas por que a alma
Aspira à calma?

– A vida é intensa
Para quem pensa.

– E onde a esperança,
Que não descansa?

– A vida é pura
Quando há ventura.

– E por que sinto
A ânsia do instinto?

– A vida é chama,
Que apura e inflama.

– Por que a resumo
Em névoa e fumo?

– A vida é a glória
Sempre ilusória.

– Mas como é insano
O sonho humano?

– A eterna esfinge
Ninguém atinge...

– Que reticências
Nas existências!


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora,
Verônica e Alhambra)
”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

Saudade

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio.
Cantigas de águas claras soluçando.
 
Noites de junho... O caburé com frio
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.
 
Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra...
 
Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...


*Antônio Francisco da Costa e Silva*

Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora,
Verônica e Alhambra)
”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

Outono estação do amor

I
                                      
No outono desta vida recomponho
as horas que de novo viveria
se pudesse voltar aquele dia
que me semelha o espaço deste sonho.

É o passado de volta de seu sono
como o tempo de outrora voltaria.
Unido o cotidiano com a magia
o amor não muda na estação do outono.

Como se fosse outra primavera
a me trazer de novo ansiedade
agora temperada em experiências

que se não faz da gente o que antes era
nos deixa na lembrança a mesma idade
que ilumina de amor tamanha ausência.

II           

Um encontro de olhares entre vento
e mares e azulejo e velha ilha
cabelos esvoaçantes pensamento
que a alma deste corpo maravilha.

Um regresso na escada de outro tempo
as lembranças rolantes das meninas
que não sei se me vêem mas contemplo
ressurgidas diante da retina.

Quanto calor de quem tanto à distância
se fascina com a chama que o atrai
e desconhece aonde lhe levam os passos

se para os umbrais de uma outra infância
que das fronteiras de minha alma sai
em viagem na noite dos espaços.

III

Olhar de luz a me aquecer a face
quando comigo cruza aquele instante
passageiro, como eu, bem que não passe
amor já tão longínquo quanto o cante.

Naquela tarde luminosa diante
dessa criatura que talvez amasse,
sonho prendê-la em imaginário enlace
mas fujo do seu rosto radiante.

Se nunca ouvi tua voz eu a pressinto
a censurar, quem sabe, o amor covarde
que só em ver de longe se contenta

movido do poder daquele instinto
que ainda hoje como outrora arde
para erguer-me no vôo que sustenta.


*Manoel Caetano Bandeira de Mello*
Em “Outono estação de amor”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora
em convênio com a Secretaria da Cultura do Maranhão, 1987.

domingo, 7 de março de 2021

 Bagagem

Arrumo a valise para a partida.
É bagagem de pouco peso
porque vai desprovida de vaidade.
Sonhos moldam-se aos
espaços disponíveis;
o resto são afetos e saudades.
Dispenso cadeado:
Sentimento não é coisa para se roubar.
Tampouco colo etiquetas,
já que as curvas do meu caminho
nem eu mesma sei onde vão dar.
Uma flor no cabelo,
uma reza no peito,
a cruz companheira,
saio de alma lavada à procura de mim.
Guardo nos olhos as cenas que vivi
e parto em busca de uma tarde de rubi.


*Flora Figueiredo*
Em “Limão Rosa”, São Paulo, São Paulo, Editora Novo Século, 1ª Edição, 2009.

Caixa de costura

Venho costurando minha vida
com linhas de saudade.
Procuro equilibrar-lhes a cor
para que o resultado final não seja triste.
Por vezes, é o cinza que insiste;
por vezes, impera o marrom.
Ainda bem que tem saudade bonita;
mudo o tom, amarro fitas,
busco a outra ponta do novelo;
intercalo a trama em amarelo.
A saudade é assim mesmo,
tecelã do tempo.
Quando menos se espera,
arremata o momento, leva embora,
deixa a porta encostada, o cadarço de fora,
e nunca avisa a hora de voltar.
Ainda hei de costurar com verde florescente
e, se a saudade chegar autoritariamente,
vai se sentir enfraquecida.
Enquanto procuro a cor,
vou costurando a vida,
sem saber qual vai ser o resultado.
Caso ele não fique combinado,
dou um nó, encosto agulha, guardo a linha,
que essa culpa roxa não é minha.
É uma artimanha branca do passado.


*Flora Figueiredo*
Em “O trem que traz a Noite”, São Paulo, Editora Novo Século, 1ª Edição, 2010.

 “O Colecionador de Estrelas

                                                        Para Nando

O menino de olhos tristes
descalçou os sapatos,
rasgou os contratos
e partiu.
Foi colecionar estrelas.
Algumas delas
deslizaram do escuro
e ofereceram-se encantadas;
outras, lívidas de espanto,
ficaram acuadas sem se entregar,
pois o menino de olhos tristes
destelhara os segredos da noite
e dominara os decretos do mar.
Ao perceber-se abarrotado de estrelas,
o menino içou as velas
e voltou.
Mas – surpreso – constatou
que sua coleção tinha debandado
e retornado a seu próprio território.
Ele olhou o céu novamente estrelado
e dormiu agradecido.
O menino de olhos tristes tinha aprendido
a beijar a vida e abraçar o transitório.


*Flora Figueiredo*
Em “Chão de Vento – Poesia”, São Paulo, Geração Editorial, 1ª Edição, 2005.

A Entrega Real

[...]

Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, era.
Até ao fim daquilo que eu não era, eu era.
O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois ‘eu’ é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.
Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido.
Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos.
Mas agora, eu era muito menos que humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse,
como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano.
E entregando-me com a confiança de pertencer ao desconhecido.
Pois só posso rezar ao que não conheço. E só posso amar à evidência desconhecida das coisas,
e só me posso agregar ao que desconheço.
Só esta é que é uma entrega real.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

Fala alto ao coração...

AVE-MARIA NO MORRO

Barracão de zinco,
Sem telhado, sem pintura,
Lá no morro,
Barracão é bangalô.

Lá não existe
Felicidade de arranha-céu,
Pois quem mora lá no morro,
Já vive pertinho do céu!

Tem alvorada, tem passarada,
Alvorecer,
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer.

E o morro inteiro,
no fim do dia,
Reza uma prece: Ave-Maria!

E o morro inteiro,
no fim do dia,
Reza uma prece: Ave-Maria!
Ave-Maria!... Ave-Maria!

E quando o morro escurece,
Eleva a Deus uma prece:
Ave-Maria!


*Composição: Herivelto Martins*
Em “LP O FAMOSO TRIO DE OURO”, Gravadora ODEON, LADO 1, 1958.
Interpretação que me emociona:
https://www.youtube.com/watch?v=b9-7qjfETXs&feature=emb_logo

 “Languidez

Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza d'açucenas,
Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as tardes d'Anto.

Como vos quero e amo! Tanto! Tanto!...
Horas benditas, leves como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de dor em que eu sou santo!

Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que pousam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar...

E a minha boca tem uns beijos mudos...
E as minhas mãos, uns pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar...


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 8ª Edição, 1950.

O Deus do silêncio
 
Não sei por quê; porque dizer não ouso:
Seguindo estância e estância o antigo rito,
No templo de Ísis, adorava o Egito
O deus sem voz, o deus misterioso.
 
Milhões de olhos de um vago olhar aflito
Cobrem-lhe o corpo; e em lânguido repouso,
Guardando um gesto altivo e desdenhoso,
Poisava à boca um dedo de granito.
 
E como um olho só, tudo isso olhava
Do fundo de uma orelha, que o envolvia:
E aos seus pés vendo a turba imbele e escrava,
 
O mudo olhar inquieto ardia em lava...
Porém... quanto mais via, e mais ouvia,
Menos falava o deus que não falava...


*Luís Delfino dos Santos*
Em “Poesia Completa, org. de Lauro Junkes”, Florianópolis,  
Academia Catarinense de Letras (ACL), 2º v., 2001.

 
As três irmãs

 
                                                    C'erano tre zitelle,
                                                                E tutti tre d’amore.
                                                             (Canto popular da Itália)

 
 I
 
A mais moça das três, a mais ardente e viva,
Aquela que mais brilha,
Quando, sorrindo, aos seus encantos nos cativa,
Eu amo como filha.
 
A segunda, que tem da pálida açucena,
Aberta de manhã,
A cor, o cheiro, a forma, a languidez serena,
Eu amo como irmã.
 
A outra é a mulher, que me enleia e fascina
É a mulher que eu chamo
Entre todas gentil: é a mulher divina,
É a mulher que eu amo.
 
II
 
A mais moça das três é linda borboleta:
Entra, abre as asas, sai,
Não compreende bem, não nega, nem rejeita
O meu amor de pai.
 
A segunda é a flor de essência melindrosa,
De rara perfeição;
Não sei se ela desdenha, ou compreende e goza
O meu amor de irmão.
 
A terceira é a mulher, anjo, monstro, hidra, esfinge,
Encanto, sedução:
Amo-a: não a conheço: é verdadeira ou finge?
Não a conheço, não.
 
III
 
Se a primeira casasse, oh! que alegria a minha!
Eu lhe diria: vai;
Veria nela um anjo, um astro, uma rainha,
O meu amor de pai.
 
Se a segunda casasse eu mesmo iria à igreja,
Levá-la pela mão;
Dir-lhe-ia: o céu azul virar-te aos pés deseja
O meu amor de irmão.
 
Se a terceira casasse, oh! minha infelicidade!
A mais velha das três
No horror da escuridão, fora uma eternidade
A minha viuvez.
 
IV
 
Se a primeira morresse, oh! como eu choraria
A minha desventura!
Com lágrimas de dor lavaria noite e dia
A sua sepultura.
 
Se a segunda morresse, oh! transe amargurado!
Eu choraria tanto,
Que ela iria nadando, em seu caixão dourado,
Nas águas do meu pranto.
 
Se a terceira morresse, em seu caixão deitada,
Sem que eu chorasse, iria;
Porque noutro caixão, ó minha morta amada,
Alguém te seguiria...


*Luís Delfino dos Santos*
Em “Poesia Completa, org. de Lauro Junkes”, Florianópolis,  
Academia Catarinense de Letras (ACL), 2º v., 2001.