domingo, 28 de março de 2021

POEMA

I

Somos nós a verdade do que existe,
somos nós, meu amor,
A nossa vida breve ampara a vida
das coisas, que persiste.
De que valem os vértices dourados
dos montes, se os não virmos?
Águas, campos e verdes sossegados
que a fina brisa alisa?

II

Estes montes, que nunca vestiu neve
ampla sombra derramam pelo campo,
onde andam sossegados sobre a relva
que não existe na paisagem calma,
rebanhos silenciosos que eu só vejo,
mergulhada no sonho de existir.
Mas que sei de viver e de existir?
Uma luta entre o fogo e a fria neve,
entre aquilo que vejo e o que não vejo,
o debruçar-me sobre qualquer campo,
se a noite vem e vem com ela a calma
do que nem sei se existe sobre a relva.
A verde, frouxa e tão mais fria relva,
que cobre, sombra e sonho, esse existir
por trás do que aparenta apenas calma,
 e é lento fogo transformado em neve,
arder de estio sob o frio campo,
que só eu mesma posso ver e vejo.

E sinto com meu corpo, mais que vejo,
deitada sobre inexistente relva
de um real, silencioso e verde campo,
sobre o qual as janelas do existir
se abrem de manso como pousa a neve
sobre o alto cimo da montanha calma.
E cai de mim a mim a sombra calma
de alguma coisa que não sei se vejo
e se confunde com estoutra neve
que livre deixa o monte e a fresca relva,
e nem por isso acaba de existir
em mim que me contento olhando o campo;
que aspiro a suavidade que há no campo,
aquela paz sem fim, aquela calma
que não dói nem assusta de existir,
e afundo na umidade do que vejo,
apoiada no sonho dessa relva
que nem existe sob a fria neve.

III

Hoje não vou colher
nem laranjas, nem flores, nem amoras.
Vou ver crescer o dia
no redondo das frutas,
e ouvir sem pressa o canto destas aves.
Serão as mesmas de ontem?
Um dia a mais que fez de mim, que faz?
E as aves que cantavam,
se não são estas, onde
estão? O canto apenas se repete?
Aquela que ontem via
o que ora vejo não é mais em mim?
Então eu me renovo
como as águas e as plantas?
Sou outra ou me acrescento ao que já sou?
No entanto, é tudo igual,
embora eu saiba que só na aparência;
e meu prazer me vem
de estar sentada aqui,
detendo um tempo que se não detém.

IV

Na tarde sem soçobro o azul instala
sobre as coisas um líquido silêncio,
e a mim me deixa só, desapartada,

na observância fiel de um obsidente
solilóquio amoroso, propiciado
por tua ausência e minha infausta mente.

Do jugo não imposto e incerto estado
ninguém me livra, que este mal de agora
ainda é o bem em mal transfigurado

por obra de distância e da memória,
não do acaso ou do sonho, não da sépia
que às vezes cobre o chão de melancólicas

paisagens. Que noturnas, vãs, repletas
formas criadas pelo imaginar
venturoso (que nem o sonho aquieta)

sobem de mim a ti, crescem no ar,
sem perguntas, propósitos, certezas,
 e enrolam-se em si mesmas devagar,

impregnadas de límpida escureza.
Em torno a solidão não desampara,
antes fecunda a antiga natureza

que dorme a tanto mito entrelaçada.

v

Quando flores e nuvens,
mosaicos de silêncio repentino,
frescos vales e montes,
onde a erva cresce e o gado se apascenta,
e o rio sua prata
oferece gentil, à móvel brisa
de sede sossegada,
quando tudo o que tenho for lembrança;
que será do que vejo,
se a mais fiel memória transfigura
o que lembra? No entanto,
o mesmo milho crescerá no campo,
repetindo o ritual
de há milênios; as mesmas-outras águas
espelharão no dorso
de vidro movediço os mesmos ramos.
Estas serão as árvores,
as verdadeiras, íntegras, antigas,
que só com o pensamento
eu não alcançarei em plenitude

de silêncio e de vida.
Pois uma coisa é ter, outra, lembrar.
Uma coisa é viver,
viver em bruto, o sol dando na pele,
o vento levantando
cortinas de esperança e esquecimento;
outra coisa é criar.
Criar quase prescinde do que existe.
O que existe é somente
um rascunho ou um ponto de partida.
Enquanto posso, vivo
a fértil realidade destes longes.
Laboriosa construo
com este mel, para os futuros sonhos, aprazível morada.

*Marly de Oliveira*
Em “A vida natural”, Rio de Janeiro, Companhia Editora Literatura S.A., 1967.

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