sábado, 24 de abril de 2021

Poente

Que podes mais dizer-me que não saiba,
Veia do sol sangrada para a terra,
Manso esgarçar de névoa refrangida
Entre o azul do mar e o céu vermelho?
Já há tantos poentes na lembrança,
Tantos dedos de fogo sobre as águas,
Que todos se confundem quando, noite,
Posto o sol, se fecham os teus olhos.
”  

*José Saramago*
Em “Os poemas possíveis”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.

 “Cotovia

– Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que tantas saudades me deixaste?
– Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe...
Voltei, te trouxe a alegria.
– Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.
– Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia...

– E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

– Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

– Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

– Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
– Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

 
*Manuel Bandeira*
Em “Os Melhores Poemas de Manuel Bandeira” (Seleção de Francisco De Assis Barbosa),
São Paulo, Editora Global, 16ª Edição, 2003.

 “Ilha

Não sei por que tanto mar em minha vida.
Ele que fala sempre em despedida,
que canta distância e solidão.
Por vezes parece até que ele vaza,
derruba minha porta,
invade minha casa,
ocupa minha cama,
lava meu chão.

Ele é que faz do leva-e-traz de cada onda
o mensageiro dos afetos separados
e que conserva segredos bem guardados
lá no horizonte, onde a terra se arredonda.

São tantos anos de tamanha intimidade,
que carrego a forte sensação
de que o mar alterou-me a identidade:
metade água, metade coração.


*Flora Figueiredo*
Em “Chão de Vento – Poesia”, São Paulo, Geração Editorial, 1ª Edição, 2005.

 “O verbo no infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa – volume único”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A, 4ª Edição, 2004.

 Estranhas aventuras da infância

Era um caminho tão pequenino
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas...

Enquanto a tarde, lenta, caía,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia...

Perdido e só, nós o deixamos!

E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas más...
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada...

E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra...

E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!


*Mario Quintana*
Em “Baú de espantos”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 “Poema de Circunstância
 
Onde estão os meus verdes?
Os meus azuis?
O arranha-céu comeu!
E ainda falam nos mastodontes, nos brotossauros, nos tiranossauros,
Que mais sei eu…
Os verdadeiros monstros, os papões, são eles, os arranha-céus!
Daqui

Do fundo
Das suas goelas,
Só vemos o céu, estreitamente, através de suas
Empinadas gargantas ressecas.
Para que lhes serviu beberem tanta luz?
De fronte
À janela aonde trabalho…
Há uma grande árvore…
Mas já estão gestando um monstro de permeio!
Sim, uma grande árvore muito verde…
Ah, todos os meus olhares são de adeus
Como o último olhar de um condenado!


*Mário Quintana*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora Alfaguara, 1ª Edição, 2015.

as três experiências

Há três coisas para as quais nasci e para as quais dou minha vida.
Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos.
O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até o perdão de mim mesma, com o que sobra.
As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto.
Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida.
Amar os outros é a única salvação individual que conheço:
ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Jornal do Brasil”, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1968 e
em “crônicas para jovens: de escrita e vida”, Rio de Janeiro,
Editora Rocco Jovens Leitores; 1ª Edição, 2010.

 “Barco sem rumo

Há muitos anos,
no fim da última guerra,
mais para o ano de 1945,
diziam os jornais de um navio fantasma
percorrendo os mares e procurando um porto.

Sua única identificação:
– drapejava no alto mastro uma bandeira branca.
Levava sua carga humana.
Salvados de guerra e de uma só raça.
Incerto e sem destino,
todos os portos se negaram a recebê-lo.

Acompanhando pelo noticiário do tempo
o drama daquele barco,
mentalmente e emocionalmente
eu arvorava em cada porto do meu País
uma bandeira de Paz
e escrevia em letras de diamantes:
Desce aqui.
Aceita esta bandeira que te acolhe fraterna e amiga.
Convive com o meu povo pobre.
Compreende e procura ser compreendido.
Come com ele o pão da fraternidade
e bebe a água pura da esperança.
Aguarda tempos novos para todos.

Não subestimes nossa ignorância e pobreza.
Aceita com humildade o que te oferecemos:
terra generosa e trabalho fácil.

Reparte com quem te recebe
teu saber milenar,
Judeu, meu irmão.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 “Cigarra cantadeira e formiga diligente

Que tenho sido, senão cigarra cantadeira e formiga diligente
desse longo estio que se chama vida…
Meus doces, meus tachos de cobre…
Meus Anjos da Guarda, veladores e certos.
Radarzinho… Meus fantasmas familiares, meus romanceados
de permeio à venda dos doces.
Antes, lá longe, no passado, parindo filhos e criando filhos
e plantando roseiras, lírios e palmas, avencas e palmeiras,
em Jaboticabal, terra do meu aprendizado de viver,
terra de meus filhos.
Minha gente de Jaboticabal. Meus Anjo da Guarda, Radarzinho,
atento ao tacho, tangendo as abelhas que se danavam nos meus doces,
dando aviso certo na hora certa. De outas me apagando o fogo,
um modo de ajudar que só Radarzinho sabia. Em outros tempos, muito antes
tinha já plantado um vintém de cobre que regava com amor
na esperança de haver crias. Porção de vinténs
correndo para Aninha.

Meus fantasmas familiares do porão da Casa Velha da Ponte.
A todos, tantos, agradeço neste livro de vintém o auxílio, a alegria
que me deram o prazer daqueles que me ouviam contas estas estorinhas,
romances de uma menininha que plantou num canteiro sombreado,
milho, arroz, e alpiste.
E o irmão pequeno tinha um caminhãozinho de brinquedo,
e enquanto a roça crescia, o menino crescia
e ele enchia o caminhão daquela lavoura crescida no sonho da menina
que ia descarregar na máquina de seu Pinho, ali mesmo,
e volta cheio de moedas e notas de cinco mil réis.
Aonde anda a menina Célia, minha neta, que gostava de ouvir contar estórias repetidas com repetição sem fim?
Célia, a vida, você no passado, no presente e no futuro,
ela será sempre pra mim aquela que um dia ofereceu suas economias de criança para me ajudar na publicação de um livro…


*Cora Coralina*
Em “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Global Editora, 6ª Edição, 1997.

 “Dia de Santo António

Nasci exactamente no teu dia –
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!
 
Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Catholico, apostólico e romano.
 
(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)
 
Adeante... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
 
És o santo do povo.
Tens uma aureola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração –
Está sempre aberto lá o vinho novo.
 
Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e anciosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vae tomar isso à lettra?
Que de hoje em deante quem o diz se digne
Dexar de dizer isso ou qualquer outra cousa.
 
Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.
 
Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.
 
Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instincto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.
 
Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro titulo de gloria,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido taes quando aqui andámos,
Bons, justos, naturaes em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que ha na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
 
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.
 
(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm belleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a mangerico.
 
És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real, por mal ou bem,
Que coisas, ou não coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nullidade, a que se chama historia,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.
 
És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retraio, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até que já te vi.
 
És este, e este és tu, e o povo é teu –
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vae alta a lua
Num plácido e legitimo recorte,
Atira risos naturaes à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.
 
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António –
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?

 
*Fernando Pessoa*
Em “Os Santos Populares” (apresentação de Yvette Kace Centeno – ilustrações de Almada Negreiros
e Eduardo Viana), Lisboa, Edições Salamandra & Casa Fernando Pessoa, 1994.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

 Lira

                     Coeur sans amour est un jardin sans fleur.
                     L. HALEVY


Se me queres a teus pés ajoelhado,
Ufano de me ver por ti rendido,
Ou já em mudas lágrimas banhado;
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos;
Basta uma vez!

Se me queres de rojo sobre a terra,
Beijando a fímbria dos vestidos teus,
Calando as queixas que meu peito encerra,
Dize-me, ingrata,
Dize-me: eu quero!
Basta uma vez!

Mas se antes folgas de me ouvir na lira
Louvor singelo dos amores meus,
Por que minha alma há tanto em vão suspira;
Dize-me, ó bela
Dize-me: eu te amo!
Basta uma vez!


*Gonçalves Dias*
Em “GONÇALVES DIAS – POESIA E PROSA COMPLETAS em um volume (Segundos cantos)”,
Organização Alexei Bueno e Ensaio Biográfico Manuel Bandeira,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A, 1ª Edição, 1998.

Diz tu por mim, silêncio
Não era hoje um dia de palavras,
Intenções de poemas ou discursos,
Nem qualquer dos caminhos era nosso.
A definir-nos bastava um acto só,
E já que nas palavras me não salvo,
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso.

 
*José Saramago*
Em “Os poemas possíveis”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.

Soneto da soledade, ou da soidade

Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.

Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura,
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.

Vi-te, e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade,
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!

Mas ai! cedo fugiste!... da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo,
Uma idéia, uma queixa, uma saudade!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela (Vozes da América, Noturnas, Pendão Auriverde,
Cantos Religiosos, Avulsas, Cantos e Fantasias, Cantos Meridionais, Canto do Ermo e da Cidade, Etc.)
”,
Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1ª Edição, 1965.

Oh homérica palavra alada
que no balbuciar
do primeiro instante de cada coisa
se evola

Palavra corpo aéreo
que se dissolve no fluir da voz
nuvem
bola de sabão
forma sem conteúdo
a tua bondade reluz
no prodígio da língua

Sem ti perdemos o pé
sem ti perdemos a fé
a promessa da perfeição
a memória de uma fome antiga
que a usura do tempo
não consegue senão multiplicar
”.

*Ana Hatherly*
Em “A idade da escrita E OUTROS POEMAS”, São Paulo,
Editora Escrituras – Coleção Ponte Velha, 1ª Edição, 2005.

 “Castelos na areia

– Que iluminura é aquela, fugidia,
Que o poente à beira-mar beija e incendeia?
– É apenas a criação da fantasia: –
São castelos na areia.

Andam, tontas de sol, brincando as crianças
Como abelhas que voaram da colmeia.
Erguem torreões fictícios de esperanças...
São castelos na areia.

Ao canto de um jardim adormecido:
‘Por que não crês no afeto que me enleia?
E as palavras que eu disse ao teu ouvido?’
– São castelos na areia.

E o tempo vai tecendo, da desgraça,
Na roca do destino, a eterna teia.
– ‘E os beijos que trocamos?’ – Tudo passa,
São castelos na areia.

Coração! Por que bates com ansiedade?
Que dor é a grande dor que te golpeia?
Ouve as palavras da Fatalidade:
Ventura, Amor, Sonho, Felicidade,
São castelos na areia.


*Olegário Mariano*
Em “Toda uma vida de poesia: poesias completas (Castelos na Areia) Olegário Mariano em dois volumes”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1957.

Destino

Eu quero seguir
teus passos
palmilhados
entre espinhos
colhendo as rosas
que deixas
como pedras
em meus caminhos...


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: https://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com/2008/11/destino.html

 Velut umbra

Vivo sempre a seguir-te em toda a parte,
A todo o tempo, a todo o transe e em tudo;
E tanto mais me esforço em procurar-te
Mais de te conseguir me desiludo.

Busca-te o meu ideal num sonho de arte;
E sem te ouvir, nem te falar, contudo
Eu não me canso em vão de desejar-te,
Cego para te ver e, ao ver-te, mudo...

Vento-te ou não, o meu olhar divaga
Sempre a seguir-te; e as vezes que te vejo,
Como que te diluis, visão pressaga!

Quando te encontro, num fortuito ensejo,
Sinto que és uma sombra que se apaga
Ao sol crepuscular do meu desejo.


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora,
Verônica e Alhambra)
”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “Velha interrogação

Passa a vida? Continua...
Porque o tempo é que flutua,
como um rio de veludo,
sobre todos, sobre tudo...

À sua margem sonhamos:
de onde viemos? aonde vamos?

E o destino indiferente
vai impelindo a torrente...

Passa a vida? Continua...
Com o tempo quem passa é a gente.
Mas, vida, se nós passamos,
de onde viemos? aonde vamos?


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra)”,  Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “Retrospectiva

Porque a vida é feita de proibições,
eu não compus todas as canções,
não percebi a brisa suspirar,
eu esqueci cantigas de ninar,
dei chances demais à voz dos credos,
não rompi de vez todos os medos,
roubei do tempo um tanto de carinho,
não vi a flor amar o passarinho,
perdi o trem na curva da vertente
e não deixei o mel melar completamente.
Porque a vida é feita de proibições,
larguei o fio, soltaram-se os balões,
deixei que o pião revirasse sozinho,
mandei que o zangão se zangasse baixinho,
desprezei a bruma que baixou o véu,
permiti à palavra dormir no papel,
evitei o desvio que atravessa a estrada,
Não quis o desafio da ronda embriagada,
não li o poema do poeta maldito
e não tive o dilema do beijo infinito.
Porque ainda há tempo para o encantamento,
quebre-se o vidro do sermão absoluto,
rompa-se a teia, reveja-se o estatuto,
que a primavera quer amar o chão de vento.


*Flora Figueiredo*
Em “Chão de Vento – Poesia”, São Paulo, Geração Editorial, 1ª Edição, 2005.

UMA IRA

‘Esta’ – se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra – ‘esta’ é a minha prece de possesso.
Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma,
ou ao que estou com voracidade tomando, senão o de paixão.
O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo?
É a vontade de destruir, como se para este momento de destruir eu tivesse nascido.
Momento que virá ou não, a minha escolha depende de eu poder ou não me ouvir.
Deus ouve, mas eu me ouvirei?
A força da destruição ainda se contém um instante em mim.
Não posso destruir ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira;
então eu quero destruir a mim, que sou fonte dessa paixão.
Não quero pedir a Deus que me aplaque, amo tanto a Deus que tenho
medo de tocar nele com meu pedido, meu pedido queima,
minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia destruir
em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Para não esquecer”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1999.

domingo, 11 de abril de 2021

 “A levíssima brisa

A levíssima brisa
Que sai da tarde morna
Na minha alma imprecisa –
Imprecisão entorna.

Nada conduz a nada,
Nada serve de ser
No sossego da estrada
Nada vejo viver.

Meu conhecer é triste
O que é que tem razão?
Nada, e o nada persiste
Na estrada e no verão.


*Fernando Pessoa*
Em “FERNANDO PESSOA – POESIA (1918 – 1930)”, Lisboa, Editora Assírio & Alvim,
Coleção OBRAS DE FERNANDO PESSOA – Volume 21, 1ª Edição, 2005.

Amor, etc.
 
[...]
 
Mas o grande milagre que ainda acontece é o amor. No meio da vida cheia de 
tanta encrenca,
tanta coisa triste, e sofrimento e doença e lutas mesquinhas, ele aparece
de repente e não se sabe como. Aparece como um pássaro
que pousa em nossa janela e começa a cantar. Nasce da sombra e da luz,
de tudo e de nada,
e é sempre novo, trêmulo como flor na brisa, virgem como a espuma perdida
no mar oceano.
Honremos o amor. Sejamos humildes perante o amor.

Ele é o grande milagre verdadeiro da vida,
o grande mistério e o grande consolo.


*Rubem Braga*
Publicado no “Jornal Correio da Manhã”, Rio de Janeiro, de 08 de janeiro de 1955.

 “Vamos

Deus:
Meu respeito.
Sei que não é direito escrever
só pra fazer reclamação.
E por isso então
que desta vez
venho propor ajuda.
Está tudo conturbado
em tudo quanto é canto,
pra tudo quanto é lado.
Ou é o canto que dá errado,
ou é o lado que não muda.
Decidi fazer a minha parte:
colorir a vida
com as cores que tenho.
Uma dose de empenho,
mais um tanto de arte.
Eu estendo a cor
sobre o tablado da desilusão.
Amarro a ponta
para que, esticada,
seja como um bordão
de uma dança improvisada.
Quero homenagear a esperança que resta,
convidar o mundo todo a vir à festa.
Se seu regulamento permitir bailar,
venha conosco.
Teremos muito gosto em receber
o autor de todas essas fitas
que me propus combinar
para tornar a sorte mais bonita.
Busquei-as naquele arco colorido
com que Você pinta o céu,
saído das tintas da paleta.
Desculpe se meu ato é atrevido,
mas, se não for assim,
essa vida vai ficando branca e preta.


*Flora Figueiredo*
Em “Amor a céu aberto”, São Paulo, Editora Novo Século, 1ª Edição, 2010.

                                                  “Contos de fadas                                                    

Quantas histórias lindas me contavas,
avozinha querida! antigamente.
Nesses contos de fadas me embalavas,
com tua doce voz de água-corrente.

–‘Era uma vez…’ Contavas, recontavas
histórias que eu ouvia atentamente
e às vezes, por acaso me falavas
de bruxas que enfeitiçam toda gente.

Nunca mais me esqueci daqueles contos
e à fantasia imensa das histórias
dando, quem sabe? Todos os descontos –

avozinha querida! penso a esmo
que as fadas eram coisas ilusórias
e que as bruxas, porém, existem mesmo.


*Affonso Montenegro Louzada*
Em “SONETOS, Affonso Louzada”, Rio de Janeiro,
Editora IBGE Serviço Gráfico, 2ª edição-aumentada, 1956.

O reino do céu

Depois da morte
eu quero tudo o que seu vácuo abrupto
fixou na minha alma.
Quero os contornos
desta matéria imóvel de lembrança,
desencantados deste espaço rígido.
Como antes, o jeito próprio
de puxar a camisa pela manga
e limpar o nariz.
A camisa engrossada de limalha de ferro mais
o suor, os dois cheiros impregnados,
a camisa personalíssima atrás da porta.
Eu quero depois, quando viver de novo,
a ressurreição e a vida escamoteando
o tempo dividido, eu quero o tempo inteiro.
Sem acabar nunca mais, a mão socando o joelho,
a unha a canivete − a coisa mais viril que eu conheci.
Eu vou querer o prato e a fome,
um dia sem tomar banho,
a gravata pro domingo de manhã,
a homilia repetida antes do almoço:
‘conforme diz o Evangelho, meus filhos, se
tivermos fé, a montanha mudará de lugar’.
Quando eu ressuscitar, o que quero é
a vida repetida sem o perigo da morte,
os riscos todos, a garantia:
à noite estaremos juntos, a camisa no portal.
Descansaremos porque a sirene apita
e temos que trabalhar, comer, casar,
passar dificuldades, com o temor de Deus,
para ganhar o céu.


*Adélia Prado*
Em “Poesia reunida”, São Paulo, Editora Siciliano, 10ª Edição, 2001.

Harpa

Olha, Senhor!,
o indigno cantor que Tu fadaste...
e se não pode erguer
à sua própria altura!...

– Virgem das minhas mãos, a Harpa acende
novos brilhos no Sol, traduz em cor
a saudade dos sons que não desprende...
Tu a fizeste, Deus!, para os meus dedos;
a glória do Teu gesto criador
Tu a quiseste partilhar
na glória quase igual de o entender.

E foi com Teu amor que retesaste as cordas,
com Teu amor as afinaste
e me chamaste
à tarefa sublime de tangê-las.

E eu sinto o Frémito, Senhor!
Sinto o sopro que Tu me inoculaste
ao dar-me a Tua bênção.
Dentro de mim é Som: o eco longo
de uma nota sem fim e sem começo.

Mas só cá dentro o Frémito ressoa...
Que não consegue minha mão,
que o lodo fez e o lodo maculou,
passar à Harpa a Grande Vibração.

– Vem lavar-me, Senhor!, no azul do Mar.
Filtra a minha impureza na limpidez do Teu olhar,
a luz clara que entornas pelos montes da minha Serra verde.

Deixa outro cantar meu próprio Canto,
e seja eu somente, assim purificado
e liberto do corpo, enfim, mais uma corda
na Harpa que me tinhas destinado.

Ai o cantor indigno que fadaste!...
Ai que a Grande Vibração,
se o não redimes,
estéril morrerá...

– Que eu seja apenas Som que um outro cante
e, na renúncia de mim,
igual a mim um dia me alevante!...


*Sebastião da Gama (Sebastião Artur Cardoso da Gama)*
Em “Serra-Mãe Poemas”, Lisboa, Edições Ática, 2ª Edição, 1957.

 “Encontrei um verso fraturado,
caído na esquina da rua do lado,
Tinha se perdido de um coração saudoso
que passava por ali, desiludido.
Coloquei-o de pé,
emendei seus pedaços,
refiz suas linhas,
retoquei seus traços.
Afaguei suas dores como se fossem minhas.
Agora, novamente estruturado,
espero que ele não olhe para trás
e não misture sonhos
com amargas falências do passado;
que saiba enfeitar a estrela lá na frente
com fartos laços de rima colorida.
pois é para o futuro que caminham
todos os passos apressados desta vida.


*Desconheço a autoria*

Meus versos

Guardo com zelo e com carinho terno,
Como se guarda a imagem de algum sonho,
Num desfolhado, mísero caderno
Todos os pobres versos que componho.

Neles, as mágoas de minha alma externo,
Em tudo há um tom nostálgico, tristonho.
Lembram manhãs friíssimas de inverno,
Onde não brilham um sol belo e risonho.

Algum dia, mais tarde irei relê-los,
Quando cair-me neve nos cabelos
E a vida me sorrir em doce paz.

E então perguntarei cheia de espanto:
– que dor foi essa que feriu-me tanto,
E que não sinto nem lembro mais?


*Maria Carolina Wanderley*
Em “Alma em versos”, Rio Grande do Norte, Editora Azymuth, 2ª Edição, 2013.

Tuas cartas

Relembro as tuas cartas uma a uma,
Em minha mente todas se gravaram
Não encontro uma só que não resuma
Tudo o que nossos lábios já trocaram.

Tu me escrevias sempre; vez nenhuma
A sua falta os olhos meus choraram.
Morria o sol do estio... vinha a bruma,
– E as tuas cartas nunca me faltaram.

Hoje os dias se passam lentamente
Que me escrevas espero ansiosamente,
Mas com que mágoa vejo que emudeces...

Termina esse silêncio que crucia,
É que me vai trazendo dia a dia
A certeza cruel de que me esqueces!

*Maria Carolina Wanderley*
Publicado no periódico “A República”, 16 de fevereiro de 1917.
Em “Alma em versos”, Rio Grande do Norte, Editora Azymuth, 2ª Edição, 2013.

SONETO

Às suas Patrícias,
por D. B. F. A. Brandão, tendo de idade 18 anos.


1

Estas, que o meu Amor vos oferece,
Não tardas produções de fraco engenho,
Amadas Nacionais, sirvam de empenho
A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece
Em que brilheis nos traços, que desenho:
De excessivo louvor glória não tenho,
E se algum merecer de vós comece.

Raros dotes talvez vivem ocultos,
Que o receio de expor faz ignorados;
Sirvam de guia meus humildes cultos.

Mandei ao Pindo os vôos elevados,
E tantos sejam vossos versos cultos,
Que os meus nas trevas fiquem sepultados.

2

Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira.

3
 
Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?
 
Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?
 
Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.
 
Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

[...]
 
7

Meu coração palpita acelerado,
Exulta de prazer, de amor delira,
Novo alento meu peito já respira,
É mil vezes feliz o meu cuidado.
 
O meu Tirce de mim vive lembrado,
Saudoso, como eu, por mim suspira;
Que seleto prazer a esta alma inspira
A amorosa expressão do bem amado!
 
Doce prenda dos meus ternos amores,
Amada, suavíssima escritura,
Que em meu peito desterras vãos temores;
 
Em ígneos caracteres na alma pura
Grava, Amor, com os farpões abrasadores
Estes doces penhores da ternura.


*Beatriz Francisca de Assis Brandão*
Em “Parnaso Brasileiro ou Coleção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas,
como já impressas, do Cônego Januário da Cunha Barbosa
”,
editado no Rio de Janeiro, Tipografia Imperial e Nacional, Tomo II, Caderno 5º, 1831.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Encantamento

Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua dôce e angélica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlêvo perfeito e graça pura!

E á força de sorrir, de me encantar,
Deante de ti, mimosa Creatura,
Suavemente sentia-me apagar…
E eu era sombra apenas e ternura.

Que inocência! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,

E até meu próprio espírito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!


*Teixeira de Pascoaes*
Em “OBRAS COMPLETAS (Cantos Indecisos – Vida Etérea – Elegias), III Volume”,
Lisboa, Livraria Bertrand, 2ª Edição, 1973.

*************

Meus desejos para a sua Páscoa:
Boa saúde,
paz,
alegria,
esperança,
e vida longa!
Tenha uma feliz Páscoa!
Com cordialidade fraterna, Elaine.

...UM DIA...

[...]

– O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.
– Repita a pergunta…?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
– Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
– Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? – repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a com surpresa.
– Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
– Ser feliz é para se conseguir o quê?

 
[...]

– Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo.
Quando você for grande leia-a de novo.
– Olhou-a. – Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo...”


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Perto do Coração Selvagem”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1998.

Leinha, querida,

[…] 

Me lembro bem da carta que eu lhe escrevi, sobre deixar os outros em paz. Realmente o tom geral devia estar pessimista.
O pessimismo passou, mas o bom propósito não: farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas.
Às vezes o amor que se dá pesa, quase como responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar,
e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz… Também é bom porque em geral se pode ajudar muito mais
as pessoas quando não se está cega pelo amor.


[…]

*Clarice Lispector*
(Fragmento da carta escrita à sua irmã – Berna, 19 outubro 1948)
Em “Minhas Queridas”, Org. e introd. Teresa Montero,
Rio de Janeiro, Editora Rocco Ltda., 1ª Edição, 2007.
(reunião de cartas escritas, entre 1940 e 1957, para as suas irmãs,
Elisa e Tania, no período em que a escritora viveu fora do Brasil)

 “Biografia

Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas
− e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste
o que leste de mim e mostrarás meu retrato
− e nada disso serei eu.

Dirás coisas imaginárias,
Invenções sutis, engenhosas teorias,
− e continuarei ausente.

Somos uma difícil unidade,
De muitos instantes mínimos,
− isso serei eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
− como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias
transparentes e opacos, segundo o giro da luz
− nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
Leves e livres como a cascata pelas pedras.
− Que mortal nos poderia prender?


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (Volume 1)”, Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

O Rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.

E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira – Poesia Completa e Prosa – Volume Único”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2009.

Inquietude

Esse olhar inquisitivo que me dirige às vezes nosso próprio cão...
Que quer ele saber que eu não sei responder?
Sou desse jeito... Vivo cercado de interrogações.
Dinheiro que eu tenha, como vou gastá-lo?
E como fazer para que não me esqueças?
(ou eu não te esqueça...)
Sinto-me assim, sem motivo algum,
Como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem
camarões
Num velório sem defunto...


*Mario Quintana*
Em “VELÓRIO SEM DEFUNTO”, Rio Grande do Sul, Editora Globo, 1ª Edição, 2009.

Era uma vez...

Quem passa? É o Rei, é o Rei que vai à caça!
Mal filtra o luar a sombra do arvoredo.
Joãozinho, a um restolhar, treme de medo,
Maria escuta, se uma folha esvoaça...

Era uma vez um rei... jogou a taça
Ao mar, e o amargo mar guarda o segredo...
E a princesinha que cortou o dedo?
Faz muito tempo... Como a vida passa!

Era uma vez a minha infância linda
E o sonho, o susto, o vago encanto alado...
Vem a saudade e conta-me baixinho

Velhas histórias... E eu já velho ainda
Sou um Pequeno Polegar cansado
Que pára e hesita, em busca do caminho...


*Augusto Meyer*
Em “Poesias 1922-1955”, Rio de Janeiro, Editora Livraria São José, 1957.

A voz amiga

– ‘Tu que passaste a vida sem roseiras
que dessem flores para perfumá-la;
tu que tiveste sombras agoureiras
que emudeceram sempre a tua fala;

tu que desceste mudo as cordilheiras
de teu sonho – gigante cor de opala;
que sozinho choraste horas inteiras
por entre a pompa, a graça, o brilho, a gala;

toma o meu braço carinhoso e amigo
e caminhemos com tranqüilidade,
toma o meu braço e eu morrerei contigo...’

– Parei diante da sombra triste e esguia...
Era a voz compassiva da Saudade
que estas palavras mansas me dizia...


*Nilo Bruzzi*

Em “O Mundo Maravilhoso do Soneto” – Vasco de Castro Lima (Coletânea de 232 Poetas Sonetistas fiéis ao Soneto),
Rio de Janeiro, Editora Livraria Freitas Bastos, 1987.

Procissão de vagalumes

Quando o sol adormece na distância
e no silêncio a tarde se esvazia,
cintila o vagalume em rutilância,
resplendendo de luz a ramaria.

Colhe da flor a cálida fragrância
e se incandesce em singular magia...
Lanterna acesa em doce vigilância,
até que acorde a aurora de outro dia.

Depois se esconde pela mata agreste
e, apagando a candeia azul celeste,
vai sonhar entre flores e perfumes.

Chegando a noite, a tarde empalidece,
e nascem luzes acendendo a prece
na procissão azul dos vagalumes...


*Luiz Almeida Teixeira*

Em “O Mundo Maravilhoso do Soneto” – Vasco de Castro Lima (Coletânea de 232 Poetas Sonetistas fiéis ao Soneto),
Rio de Janeiro, Editora Livraria Freitas Bastos, 1987.


Ser mulher

Ser mulher não é ter nas formas de escultura,
no traço do perfil, no corpo fascinante,
a beleza que, um dia, o tempo transfigura
e um olhar deslumbrado atrai a cada instante.

Ser mulher não é só ter a graça empolgante,
o feitiço absorvente, a lascívia e a ternura;
ser mulher não é ter na carne provocante
a volúpia infernal que arrasta e desfigura...

Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza
de quem sabe pensar com toda a sutileza
e no próprio ideal rara virtude alcança...

É ter, simples e pura, os sentimentos francos,
E, ainda no fulgor dos seus cabelos brancos,
sonhar como mulher, sentir como criança!

*Carmen Cinira*
Em “O Mundo Maravilhoso do Soneto” – Vasco de Castro Lima (Coletânea de 232 Poetas Sonetistas fiéis ao Soneto),
Rio de Janeiro, Editora Livraria Freitas Bastos, 1987.