domingo, 25 de julho de 2021

 “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo
impuramente, a quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?


*João Cabral de Melo Neto*
Em “João Cabral de Melo Neto - Obra Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, pág. 554, 1994.

 “A ANTÔNIO NOBRE

Tu que penaste tanto e em cujo canto
Há a ingenuidade santa do menino;
Que amaste os choupos, o dobrar do sino,
E cujo pranto faz correr o pranto:
 
Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino,
A esmorecer e desejando tanto...
 
Mas tu dormiste em paz como as crianças.
Sorriu a Glória às tuas esperanças
E beijou-te na boca... O lindo som!
 
Quem me dará o beijo que cobiço?
Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...
Eu, não terei a Glória... nem fui bom.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

 “A CAMÕES

Quando n’alma pesar de tua raça
A névoa da apagada e vil tristeza,
Busque ela sempre a glória que não passa,
Em teu poema de heroísmo e de beleza.
 
Gênio purificado na desgraça,
Tu resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça
O amor da grande pátria portuguesa.
 
E enquanto o fero canto ecoar na mente
Da estirpe que em perigos sublimados
Plantou a cruz em cada continente,
 
Não morrerá, sem poetas nem soldados,
A língua em que cantaste rudemente
As armas e os barões assinalados.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

Espelho cego

Onde a face de prata e cristal puro,
e aquela deslumbrante exatidão
que revela o mais breve aceno obscuro

e o compasso das lágrimas, e a seta
que de repente galga os céus do olhar
e em margens sobre-humanas se projeta?

Onde, as auroras? Onde, os labirintos
– e o frêmito, que rasga o peso ao mar
– e as grutas, de áureos lustres e aéreos plintos?

Ah – que fazes do rosto que te entrego?
– musgos imóveis sobre a sua luz...
Limos... líquens... – Opaco espelho cego?


*Cecília Meireles*
Em “Obra Poética – Volume Único”, Rio de Janeiro, Nova Aguilar Editora, 3ª Edição (6ª Reimpressão), 1987.

 “Serenata

Permite que feche os meus olhos
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora
e contando pus-me a esperar-te.

Permite-me que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio
e a dor é de origem divina

Permite que volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo
e aprende a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.


*Cecília Meireles*
Em “Obra Poética – Volume Único”, Rio de Janeiro, Nova Aguilar Editora, 3ª Edição (6ª Reimpressão), 1987.

[...]

E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo.
Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada
pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas,
meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula
que não fosse uma confissão.


[...]

*Mario Quintana*
Fragmento do texto “A luta amorosa com as palavras”,
publicado na Revista “Isto É”, em 14/11/1984.

[...]

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo, é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

 [...]

O que te escrevo não tem começo: é uma continuação.
Das palavras deste canto, canto que é meu e teu,
evola-se um halo que transcende as frases, você sente? minha experiência
vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas.
O halo é mais importante que as coisas e as palavras.
O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado:
é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra.
E é trombeta que anuncia. O halo é o it.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.

INTELECTUAL? NÃO.

[...]

O que sou eu então? Sou uma pessoa que tem um coração
que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu
pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável.
Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando
consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida
entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia
de ágata no canto do quarto − se tomada com cuidado,
verto água limpa sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas,
se tocada por dedos bruscos
num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.


*Caio Fernando Abreu*
Extraí daqui: https://caiofernandodeabreu.tumblr.com/post/10647015001/n%C3%A3o-ofere%C3%A7o-perigo-algum-sou-quieta-como-folha-de

domingo, 18 de julho de 2021

 “Não Sei Dizer quem Sou

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer,
porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro,
nos lábios – na língua principalmente –, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo,
eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente.
Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa
certeza de estar vivendo? Não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é que basta silenciar para só enxergar,
abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência. E abaixo de todas as dúvidas – o estudo cromático – sei que tudo é
perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo.


*Clarice Lispector*
Em “Perto do coração selvagem”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 9ª Edição, 1980.

 Ao correr da máquina

[...]
 
Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois... Depois eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira,
2ª Edição, 1984 (Publicado no Jornal do Brasil, em 17 de abril de 1971).

 “A elegia do fantasma

Por que eu te quero tanto, tanto,
depois de tanto desencanto,
depois de tanto, tanto pranto?

Oiço-te a voz no lento vento
que anda comigo, sonolento,
pela tormenta num tormento…

E, ouvindo o vento, sinto, sinto
a noite como um labirinto
envolvendo o meu corpo extinto…

Na grande treva que amedronta,
minha alma tonta, tonta, tonta,
os sonhos mortos, mortos, conta…

E faz perguntas, faz perguntas…
Quer saber das vidas defuntas
que antigamente andavam juntas…


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”,  
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

 “Quando eu me for

Quando eu me for, os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!”

*Mario Quintana*
Em “VELÓRIO SEM DEFUNTO”, Rio Grande do Sul, Editora Globo, 1ª Edição, 2009.

 “Noturno

Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca…
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os caminhos…

Em Deus, em ti, de novo…
Tua ternura tão simples…
Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida…
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!


*Mario Quintana*
Em “O aprendiz de feiticeiro”, São Paulo, Editora Globo, 2ª reimpressão, 2005.

RENÚNCIA

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.
 
Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...
 
A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.
 
Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...


*Manuel Bandeira*
Em “Carnaval”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.


Folhas de rosa

Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...
     
*Florbela Espanca*
Em “TROCANDO OLHARES”, São Paulo, Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2009.

Simplesmente Homem
 
Talvez, por admirar a beleza do luar, o fascínio das estrêlas
e ficar horas a fio olhando o azul do céu, fosse o último dos boêmios.
Talvez, por ser alegre como os pássaros, puro como a água das chuvas,
inconseqüente como o vento que alterna o sopro nas folhas, também
fosse o último dos artistas.
Talvez, por acariciar as flores, conversar com os animais e decifrar os
enigmas das formas da natureza, pudesse ser o último dos loucos.
Talvez, por tentar sempre uma palavra de conforto, um apoio
desinteressado e uma chama de esperança, fosse o último dos irmãos.
Talvez, por teimar constantemente em não se render aos interesses
mesquinhos, aos jogos de cartas marcadas, às tentações limitadas
das ambições pessoais imediatas, pudesse ser o último dos rebeldes.
Talvez, por ser fiel aos seus princípios, ao respeito mútuo, aos direitos
universais, porque não, talvez fosse o último dos escravos.
Talvez, por ser ingênuo como o olhar dos loucos, terno como o sopro do
orvalho, meigo como um beijo de mãe, inocente como o assum-preto
que canta para aqueles que lhe furaram os olhos, fosse a última das
crianças.
Talvez, por acreditar na própria vida e sonhar acordado, por entregar
sem medo de perder, por gostar sem nunca cobrar, fosse o último dos
românticos.
Talvez, por rezar sem definir credos e acreditar no bem sem obedecer a deuses tiranos,
ver limpidamente o futuro que todos estão comprometidos em liquidar, fosse o último dos profetas.
Talvez, por acreditar nos outros, por enxergar além do limite físico da
visão, por dar a vida às coisas mortas, fosse o último dos poetas.
Talvez, por insistir em perseguir um mesmo objetivo pacientemente, vê-lo constantemente adiado
justamente por aquelas pessoas que mais gosta e novamente começar tudo, com a mesma esperança
de quem tivesse conseguido uma vitória, fosse o último dos apaixonados.
Talvez, tivesse sido quase tudo; quando, o que ele quis toda a vida, foi
simplesmente ser um homem.
”   

*Autor Desconhecido*
Publicado no jornal “A VANGUARDA Nº 1.895”, do Município de Cássia/MG, em 05 de agosto de 1984.

 “O Beija-flor

Era uma moça franzina,
Bela visão matutina
Daquelas que é raro ver,
Corpo esbelto, colo erguido,
Molhando o branco vestido
No orvalho do amanhecer.

Vede-a lá: tímida, esquiva...
Que boca!... é a flor mais viva,
Que agora está no jardim;
Mordendo a polpa do lábio,
Como quem suga o ressabio
Dos beijos de um querubim!...

Nem viu que as auras gemeram,
E os ramos estremeceram
Quando um pouco ali se ergueu...
Nos alvos dentes, viçosa,
Parte o talo de uma rosa,
Que docemente colheu.

E a fresca rosa orvalhada,
Que contrasta descorada
Do seu rosto a nívea tez,
Beijando as mãozinhas suas,
Parece que diz: nós duas!...
E a brisa emenda: nós três!...

Vai nesse andar descuidoso,
Quando um beija-flor teimoso
Brincar entre os galhos vem,
Sente o aroma da donzela,
Peneira na face dela,
E quer-lhe os lábios também.

Treme a virgem de surpresa;
Leva do braço em defesa,
Vai com o braço a flor da mão,
Nas asas d’ave mimosa
Quebra-se a flor melindrosa,
Que rola esparsa no chão.

Não sei o que a virgem fala,
Que abre o peito e mais trescala,
Do trescalar de uma flor:
Voa em cima o passarinho...
Vai já tocando o biquinho
Nos beiços de rubra cor.

A moça, que se envergonha
De correr, meio risonha
Procura se desviar;
Neste empenho os seios ambos
Deixa ver: inconhos jambos
De algum celeste pomar!...

Forte luta, luta incrível
Por um beijo! É impossível
Dizer tudo o que se deu.
Tanta coisa, que se esquece
Na vida! Mas me parece
Que o passarinho venceu!...

Conheço a moça franzina
Que a fronte cândida inclina
Ao sopro de casto amor:
Seu rosto fica mais lindo,
Quando ela conta sorrindo
A história do beija-flor.


*Tobias Barreto de Menezes*
Em “Dias e Noites”, Organização de Luiz Antônio Barreto; Introdução e notas de Jackson da Silva,
Rio de Janeiro, Editora Record em parceria com INL: Brasília/DF, 7ª Edição Revista e Aumentada, 1989.

 O inacabado que há em mim

Eu me experimento inacabado. Da obra, o rascunho. Do gesto, o que não termina.

Sou como o rio em processo de vir a ser. A confluência de outras águas e o encontro com filhos de outras nascentes o tornam outro. O rio é a mistura de pequenos encontros. Eu sou feito de águas, muitas águas.
[...]

Por vezes o cansaço me faz querer parar. Sensação de que já vivi mais do que meu coração suporta. Os encontros são muitos; as pessoas também. As chegadas e partidas se misturam e confundem o coração. É nesta hora em que me pego alimentando sonhos de cotidianos estreitos, previsíveis.

Mas quando me enxergo na perspectiva de selar o passaporte e cancelar as saídas, eis que me aproximo de uma tristeza infértil.

Melhor mesmo é continuar na esperança confluências futuras.
[...]

Se a mim for concedido o direito de pausas repositoras, então já anuncio que eu continuo na vida. A trama de minha criatividade depende deste contraste, deste inacabado que há em mim. Um dia sou multidão; no outro sou solidão. Não quero ser multidão todo dia. Num dia experimento o frescor da amizade; no outro a febre que me faz querer ser só. Eu sou assim. Sem culpas.

*Pe. Fábio de Melo*
Fragmento extraído daqui: https://fabiodemelo.com.br/o-inacabado-que-ha-em-mim/

quarta-feira, 14 de julho de 2021

 “Que o Deus venha
 
[...]

Mesmo para os descrentes há o instante do desespero que é divino: a ausência do Deus é um ato de religião. Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando.
Precisando mais do que a força humana. Sou forte mas também destrutiva.
O Deus tem que vir a mim já que não tenho ido a Ele.
Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha.
Ou talvez os que menos merecem mais precisem.
Sou inquieta e áspera e desesperançada.
Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor.
Às vezes me arranha como se fossem farpas.
Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha.
Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive.
E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado.
Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida.
Perceberei – assim como se come e se vive o gosto da comida.
Minha voz cai no abismo de teu silêncio. Tu me lês em silêncio.
Mas nesse ilimitado campo mudo desdobro as asas, livre para viver,
então aceito o pior e entro no âmago da morte e para isto estou viva.
O âmago sensível. E vibra-me esse it.
”  

[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.

Da Imparcialidade

O homem − eternamente escravo de suas paixões pessoais −
É absolutamente incapaz de imparcialidade.
Só Deus é imparcial.
Só Ele é que pode, por exemplo,
Abençoar, ao mesmo tempo,
As bandeiras de dois exércitos inimigos que vão entrar em luta..
.”

*Mario Quintana*
Em “VELÓRIO SEM DEFUNTO”, Rio Grande do Sul, Editora Globo, 1ª Edição, 2009.

XIX

                                         Para Moysés Vellinho

Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequena rua em que vivi.

Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave a boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes!


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

Apresentação

Aqui está minha vida – esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz – esta concha vazia,
sombra de som curtindo seu próprio lamento.

Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
 
Aqui está minha herança – este mar solitário,
que de um lado era amor e, de outro, esquecimento
”.
 
*Cecília Meireles*
Em “RETRATO NATURAL”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.

CANÇÃO EXCÊNTRICA

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
– saudosa do que não faço,
– do que faço, arrependida.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

 “NOTURNO DO MORRO DO ENCANTO

Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.

Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade, enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia de seu manto.

Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que nem tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.

Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira − Poesia Completa e Prosa (Estrela da Tarde) − Volume Único”,
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição, 2009.

 “DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo. . .
 
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
 
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
 
O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
 
Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
 
Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspeto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
 
Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...
 
− Ah, como dói viver quando falta a esperança!


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Global Editora, 3ª Edição, 1993.

 “Metade (Poema)

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio...

Que a música que ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade...

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo...

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que eu penso
Mas a outra metade é um vulcão...

Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que me lembro ter dado na infância;
Por que metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço...

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer;
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção...

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade... também.


*Composição e Arranjo: Oswaldo Montenegro*
Em “Trilhas”, Lançado somente em LP/Vinil, Produção e gravação: Frank Justo Acker,
Gravado na Aliança Francesa da Tijuca, Rio de Janeiro, 1977.

Rio Vermelho
 
I

Tenho um rio que fala em murmúrios.
Tenho um rio poluído.
Tenho um rio debaixo das janelas
da Casa Velha da Ponte.
Meu Rio Vermelho.
 
II
 
Águas da minha sede...
Meus longos anos de ausência
identificados no retorno:
Rio Vermelho – Aninha.
Meus sapos cantantes...
Eróticos, chamando, apelando,
cobrindo suas gias.
Seus girinos – pretinhos, pequeninos,
inquietos no tempo do amor.
Sinfonia, coral, cantoria.
Meu Rio Vermelho.
 
III
 
Debaixo das janelas tenho um rio
correndo desde quando?...
Lavando pedras, levando areias.
Desde quando?...
Aninha nascia, crescia, sonhava.
 
IV
 
Água – pedra.
Eternidades irmanadas.
Tumulto – torrente.
Estática – silenciosa.
O paciente deslizar,
O chorinho a lacrimejar
sútil, dúctil
na pedra, na terra.
Duas perenidades –
sobreviventes
no tempo.
Lado a lado – conviventes,
diferentes, juntas, separadas.
Coniventes.
Meu Rio Vermelho.

V
 
Meu Rio Vermelho é longínqua
manhã de agosto.
Rio de uma infância mal-amada.
Meus barquinhos de papel
onde navegavam meus sonhos;
sonhos navegantes de um barco:
Pescadora, sonhadora
do peixe-homem.

VI
 
Um dia caiu na rede
meu peixe-homem...
todos de escamas luzidias,
todo feito de espinhos e espinhas.

VII
 
Rio Vermelho, líquido amniótico
onde cresceu da minha poesia, o feto,
feita de pedras e cascalhos.
Água lustral que batizou de novo meus cabelos brancos.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 Os homens

Em água e vinho se definem os homens.
 
Homem água. É aquele fácil e comunicativo.
Corrente, abordável, servidor e humano.
Aberto a um pedido, a um favor,
ajuda em hora difícil de um amigo, mesmo estranho.
Dá o que tem
− boa vontade constante, mesmo dinheiro, se o tem.
 
Não espera restituição nem recompensa.
É como a água corrente e ofertante,
encontradiça nos descampados de uma viagem.
Despoluída, límpida e mansa.
Serve a animais e vegetais.
Vai levada a engenhos domésticos em regueiras, represas e açudes.
Aproveitada, não diminui seu valor, nem cobra preço.
Conspurcada seja, se alimpa pela graça de Deus
que assim a fez, servindo sempre
e à sua semelhança fez certos homens que encontramos na vida
− os Bons da Terra – Mansos de Coração.
Água pura da humanidade.

Há também, lado-a-lado, o homem vinho.
Fechado nos seus valores inegáveis e nobreza reconhecida.
Arrolhado seu espírito de conteúdo excelente em todos os sentidos.
Resguardados seus méritos indiscutíveis.
Oferecido em pequenos cálices de cristal a amigos
e visitantes excelsos, privilegiados.
Não abordável, nem fácil sua confiança.
Correto. Lacrado.
Tem lugar marcado na sociedade humana.
Rigoroso.
Não se deixe conduzir – conduz.
Não improvisa – estuda, comprova.
Não aceita que o golpeiam,
defende-se antecipadamente.
Metódico, estudioso, ciente.
 
Há de permeio o homem vinagre,
uma réstia deles,
mas com esses não vamos perder espaço.
Há lugar na vida para todos.
Em qual dos grupos se julga situado você, leitor amigo?


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

domingo, 4 de julho de 2021

O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão.
O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo.
É por isso que hoje é tão útil como irreverente rir das idéias do passado:
a multidão não se ocupa de idéias, ocupa-se das fórmulas visíveis,
convencionais das idéias.


[...]
 
*Eça de Queiroz*
Fragmento extraído da Carta enviada a Joaquim de Araújo, em 25 de fevereiro de 1878.


 “Cantiga

Quando passarem os dias
E não mais se avistar
Nosso rosto, e o sereno
Modo nosso de olhar,

E a nossa evaporada
Voz não viver mais no ar,
E as sombras esquecerem
A que era a do nosso andar,

Vai ser doce pensar-se
− em que secreto lugar? −
nos sonhos que inventamos
ternos e devagar

no perfil que tivemos,
tão fino e singular,
e no louro e nas rosas
que o poderiam coroar,

e nos vergéis que sentíamos,
quando íamos a par,
ouvindo o amor que nunca
chegou a sussurrar...


*Cecília Meireles*
(em homenagem a Mario Quintana – enviado ao autor em 1944)
Em “Mario Quintana – Da preguiça como método de Trabalho”, Editora Globo, 3ª Edição, 1987, pág. 122.

À Musa
 
Tu és a relação entre o poeta e Deus.
Tu prefiguras uma imagem do Eterno
Porque a todo o instante organizas o mundo.
Sem ti minha poesia se extinguirá,
Sem ti eu ficaria mirando as construções do tempo.
Tu assistes aos movimentos da minha alma,
E aumentas minha sede do ilimitado.
Um dia, quando o Eterno me der a grande força,
Prenderei a tua cabeça entre as constelações
A fim de orientar os poetas futuros.


*Murilo Mendes*
Em “Murilo Mendes: Poesia Completa e Prosa (Tempo e eternidade)”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994.

 “O velho e a noite

Ó noite negra, noite das noites.
Ó noite fonte da própria fonte,
com o teu silêncio, com a tua sombra,
com a tua ausência, com o teu sono,
com a luz que te peja e que ocultas,
presa ao teu peso que a subjuga.
Ó protetora dos que não acham
a paz senão quando se apagam
no teu refúgio, perdidas faces.
Ó noite, noite, nunca passasses.


*Manoel Caetano Bandeira de Mello*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, São Luís/MA, Edições AML/Gráfica Alcântara/SIOGE, 1994.

Sombra e névoa

Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!

Cai a tarde, muda e calma...
Cai a chuva, fina e fria...
Anda no ar a nostalgia,
Que é névoa e sombra em minh'alma.

Há não sei que afinidade
Entre mim e a natureza:
Cai a tarde... Que tristeza!
Cai a chuva... Que saudade!


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra)”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “Lua-Luar

Escuto leve batida.
Levanto descalça, abro a janela devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.

Entra lua poesia
antes dos astronautas: Gagarin da terra azul, Apolo XI que primeiro passeou solo lunar.
Lua que comanda os mares, a fúria dos vagalhões que vem morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.

Lua dos namorados, das intrigas de amor, dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.

Lua nova, incompleta no seu meio arco.
Lua crescente, velha enorme, fecunda.
Lua de todos os povos de todos os quadrantes.
Lua que enfurece o mar e em chumbo, acovarda barcos pesqueiros.
O barqueiro se recolhe.

O pescado volta às redes.
O jangadeiro trava amarras.
Gaivotas fogem dos rochedos.

Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente, andrógina – lua-luar.
Lua dos becos tristes das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos.

Das velhas plantas sentenciadas.
Do sopro morto
dos bordões, rimas, violinos.

Lua que manda
na semeadura dos campos, na germinação das sementes,
na abundância das colheitas.
Lua boa.
Lua ruim.
Lua de chuva.
Lua de sol.
Lua das gestações do amor.
Do acaso, do passatempo irresistível,
responsável, irresponsável.

Lua grande. Lua genésica que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito –
mal aceito: repudiado, abandonado,
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante deixada em porta alheia.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

Anhanguera

‘... e no terceiro dia da criação o Criador
dividiu as águas, fez os mares e os rios e separou a terra e deu ela ervas e plantas.’
... e quando das águas separadas aflorou Goyaz, há milênios, ficou ali a Serra
Dourada em teorias imprevistas de lava endurecida, e a equação de equilíbrio da
pedra oscilante.
Vieram as chuvas
e o calor acamou o limo na camarinha das grotas.
O vento passou
trazendo na custódia das sementes o pólen fecundante.
Nasceu a árvore.
E o Criador vendo que era boa multiplicou a espécie em sombra para as feras
em fronde para os ninhos e em frutos para os homens.
Só depois de muitas eras foi que chegaram os poetas.  
Evém a Bandeira dos Polistas...
num tropel soturno de muitos pés de muitas patas.
Deflorando a terra.
Rasgando as lavras nos socavões.
Esfarelando cascalho, ensacando ouro,
encadeiam Vila Boa nos morros vestidos de pau-d’arco.
Foi quando a perdida gente no sertão impérvio.
Riscou o roteiro incerto do velho Bandeirante e Bartolomeu Bueno, bruxo feiticeiro,
num passe de magia histórica
tirou Goyaz de um prato de aguardente
e ficou sendo o Anhanguera.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 “Variação

Paráfrase
     
O mar rolou uma onda.
Na onda veio uma alga.
Na alga achei uma concha.
Dentro da concha teu nome.
 
Pisei descalça na areia
toda vestida de algas.
Tomei o mar entre os dedos.
Ondas peguei com as mãos.
O mar me levou com ele.
 
Palácio vi das sereias.
Cavalo-marinho montei, crinas brancas de seda, cascos ferrados de prata,
Escumas de maresia.
Na garupa do meu cavalo, levo meu peixe de ouro.
Comando a rosa dos ventos e não me chamo Maria.
Na serenata do sonho
ouvi um sonido de estrelas.
Discos de ouro rolando trazendo impresso teu nome.
Você passava, eu sorria escondida na janela,
cortinas me disfarçando.
Num tempo era menina.
Num instante virei mulher.
Queria ver sem ser vista.
Ser vista fingindo não ver.

Fugi tanto que o encontrei no relance de um olhar.
Pelos caminhos andamos no tempo de semear.
A vida é uma flor dourada tem raiz na minha mão.
Quando semeio meus versos, não sinto o mundo rolando
Perdida no meu sonhar
Nos caminhos que tracei.
 
Meus riscos verdes de luz, caminhos dentro de mim.
Estradas verdes do mar, abertas largas sem-fim.
Por esses caminhos caminho levando feixes nas mãos.
Trigo, joio – não pergunto o fim do meu caminhar.
Cirandinha vou cirandando, marinheiro de marinhar, o mar é longo sem-fim.
Meu barqueiro, meu amor, bandeiras do meu roteiro.
Meu barco de espuma do mar.
Onda verde leva e traz, cantigas de marinhagem.
Vou rodando. Vou dançando, tecendo meu Pau de Fita.
Sementes vou semeando
nos campos da fantasia.
Vou girando. Vou cantando e... não me chamo Maria.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

A Flor
 
Na haste
hierática e vertical pompéia.
Sobre para a luz e para o alto a flor...
Ainda não.
 
Veio de longe.
Muda viajeira
dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei
à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.

‘Cebola-brava’ na botânica sapiente de seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas ‘f’lores’: ‘De que val’isso?’
Displicente, exato, irredutível.

E eu, meu Deus,
extasiada,
vendo, sentindo e acompanhando, fremente,
aquela inesperada gestação.
 
− Um bulbo, tubérculo, célula de vida rejeitada, levada na hora certa
à maternidade da terra.
 A Flor...
Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético, inviolado
no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes
montando guarda.

Da Flor...

A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverência gosmenta de um verme rastejante.
O imprevisto atentado de alheia mão
consciente ou não.

Alerta. Insone.
Madrugadora.

Na manhã mal nascida, toda em rendas cor-de-rosa, túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite eu, partejando o nascer da flor, que ali vem na
clausura uterina de um botão.
Romboide.

Para a Flor...

Chamei a tantos...
Indiferentes, alheios, ninguém sentiu comigo o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão, ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial para o esplendor de sua efêmera vida vegetal.
Na minha aflita vigília pergunto:
– De que cor será a flor?

Chamo e conclamo de alheias distâncias alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo aquele ministério oculto Aquele sortilégio a se quebrar.
Afinal a Flor...
 
Do conúbio místico da terra e do sol − a eclosão. Quatro lírios semi-abertos,
apontando os pontos cardeais no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Cetro heráldico. Emblema litúrgico de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas do ‘Livro dos Reis’ ou do ‘Habacuco’.
E foi assim que eu vi a flor.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 “JABUTICABAL (I)
 
O Criador, vendo que  a terra era boa,
plantou um jardim
de jabuticabeiras
nas terras roxas
de São Paulo
da banda Oeste.
 
e mandou que viessem o homem e a mulher, tomassem da terra
e gerassem filhos.
 
E vieram:
Pinto Ferreira e sua mulher.

Os Pintos...
Avenida Pintos,
a dádiva da Posteridade do velho fundador
que doou o Patrimônio nos idos do passado.
Antiga Fábrica de Nossa Senhora do Carmo de Jabuticabal, A igreja, o Vigário
sendo o Fabriqueiro.
Antigo administrador dos Bens Patrimoniais da Capela levantada.
Vieram os homens escuros e derrubaram a mata, espantaram as feras.
Depois chegaram os colonos de olhos claros e cabelos cor de palha, suas
mulheres sacudidas de ancas fecundas,
e largas maternidades e deram-se à nova terra determinados,
 de um labor fecundo.
 
Semearam filhos
 e semearam a gleba
e cresceu o cafezal com suas floradas de esperança e seus frutos vermelhos.
Uma nova floresta ordenada e ritmada se estendeu, e cobriu Jabuticabal.
Através do tempo e das gerações a terra teve donos.
Comprada, requerida, apossada.
Multiplicada de heranças Inventários
Partilhas subpartilhas.
Medições, demarcações.
Fazendas, fazendeiros Sítios, sitiantes
Lavouras que se estendiam na grande comarca que ia até as extremas de Minas e Goiás.
Através do tempo desmembrada em novos segmentos de novas jurisdições.
E o café enegreceu os terreiros, atulhou as máquinas, armazéns e depósitos.
derramou-se das tulhas.
As Estradas de Ferro avançaram e as rodagens se estenderam transportando o
granel para os portos e terminais.
Era o Rei Café, opulento ou rastejante, dando demais ou tirando tudo num
passe de sua magia negra.
Foi e voltou.
Queimado e arrancado.
Plantado de novo.
Extravasou seus limites.
Paraná, Mato Grosso,
Minas, Goiás, Amazonas.
Derrubado e plantado numa gestação  de riqueza fácil,
continua ele a grande vertente da prosperidade nacional.

Jabuticabal (II)

Cafezal.
Canavial.
Algodoal.
Laranjal.
Rosal. Roseiral.
Cidade das Rosas.
Terra de meus filhos
onde fiz meu duro
aprendizado de vida
e relembro sempre
amigos e vizinhos
incomparáveis.

Para eles esta página
de humilde gratidão.


*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.