domingo, 18 de julho de 2021

 “Não Sei Dizer quem Sou

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer,
porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro,
nos lábios – na língua principalmente –, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo,
eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente.
Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa
certeza de estar vivendo? Não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é que basta silenciar para só enxergar,
abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da existência. E abaixo de todas as dúvidas – o estudo cromático – sei que tudo é
perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo.


*Clarice Lispector*
Em “Perto do coração selvagem”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 9ª Edição, 1980.

Nenhum comentário: