quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Cadê você

Me dê notícia de você,
Eu gosto um pouco de chorar,
A gente quase não se vê,
Me deu vontade de lembrar.

Me leve um pouco com você,
Eu gosto de qualquer lugar,
A gente pode se entender
E não saber o que falar.
 


[...]

A gente quase não se vê,
Eu só queria me lembrar,
Me dê notícia de você,
Me deu vontade de voltar.


Composição: *Chico Buarque/João Donato*

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Inscrição na areia

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.


*Cecília Meireles*

Em "Poesia completa", Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Na balada da chuva...

A flor mais humilde

Voltarei.
À tarde, quando os sinos percutem no aço das calçadas
e o vento sul carrega seus ocos cilindros

os cavos ecos dum passado de armadilhas, de esporas e de espadas. 
Voltarei, ao crepúsculo.
Entrarei no templo e

deixarei
nos claustros da noite uma rosa tecida de orvalho e de sangue. 

Uma rosa de cinza e esquecimento. 
Ou talvez um lírio, a flor mais humilde 
adormecida numa tela de Grão Vasco.

*Albano Martins*

Em “As Escarpas do Dia”, Edições Afrontamento, Porto/Portugal, 2010.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Oração

ᅳ Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade onipotente
Nem me ouvia.
ᅳ Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
ᅳ Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


*Miguel Torga*

Em “Poesia Completa”, Publicações Dom Quixote, Lisboa,  2ª Edição, 2002.
O chamado das pedras

A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.

Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...

Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.

Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.

Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:

Volta... Volta... Volta...
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou... Porque não voltou...
E a água do rio que corria
Chamava...chamava...

Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.
”   

*Cora Coralina*

 Em “Meu Livro de Cordel”, Global Editora, 18ª Edição, 2013.
Da realidade

Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.

  
*Miguel Torga* 

Em “Nihil sibi Poesia”, Coimbra, Coimbra Editora, 3ª Edição, 1948.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Coroai-me de rosas 
 
[1]

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas

– Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!

Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.” 


“Coroai-me de rosas. 
 
[2]

Coroai-me em verdade
De rosas.
Quero ter a hora
Nas mãos pagãmente
E leve,

Mal sentir a vida,
Mal sentir o sol
Sob ramos.

Coroai-me de rosas
E de folhas de hera
E basta.”


“Coroai-me de rosas! 
 
[3]

Coroai-me em verdade
De rosas!

Quero toda a vida
Feita desta hora
Breve.

Coroai-me de rosas
E de folhas de hera,
E basta!


*Ricardo Reis (Heterônimo de Fernando Pessoa)
*
 Em “Poesia completa de Ricardo Reis”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2010.