domingo, 27 de março de 2016

Todas as vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
− Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida −
a vida mera das obscuras.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, São Paulo, 
Global Editora, 1ª Edição, 1983.
Chuva

II

A chuva canta. Que tristeza imensa
num fio tênue de água se condensa!
E as fontes choram no jardim, lá fora.
Porque a água sempre, quando canta, chora?

Se ela estivesse aqui... Se ela viesse
escutar o seu nome
que meus lábios toma a forma de uma prece...

Se ela soubesse quanto me consome
a sua ausência, que é uma tarde fria,
ela, decerto, voltaria...

E se ela aqui voltasse,
eu não diria que essa chuva é pranto,
nem que esse pranto me põe rugas pela face...

Porque se ela voltasse, eu cantaria tanto,
que as lágrimas da chuva cessariam
e as fontes no jardim se calariam
para ouvir a alegria do meu canto!


*Onestaldo de Pennafort*
Em “Poesia”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1987.
Chuva

A chuva entorna na paisagem calma
Uma indolência de abandono e sono
Paisagem triste como a de minha alma...
A chuva é um longo sono de abandono...

Olho através do espelho da vidraça.
Dorme o jardim sob soluços d'água.
Na rua, alguém cantarolando passa,
Cantarolando a minha própria mágoa.

Quem será êsse vulto que se apossa
Da firme dor que em minha vida existe,
Para cantá-la assim num ar de troça,
De uma maneira que me põe mais triste?

E olho através do espelho da vidraça:
Dorme o jardim sob os soluços d'água.
Na rua adormecida ninguém passa.
A chuva canta a minha própria mágoa.


*Onestaldo de Pennafort*

Em “Poesia”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 1987.

SONETO DO MANTO

Braços abertos, uma cruz... Basta isto,
Meu Deus, na cova abandonada e estreita
Onde repouse quem te for benquisto,
Corpo duma alma que te seja afeita.

É o Justo. As chagas celestiais de Cristo
Beijam-lhe mãos e pés: purpúreo deita
O pobre lado traspassado o misto
De água e de sangue. É o Justo. Eis a alma eleita.

A coroa de espinhos irrisória
Magoa-lhe a cabeça, e pelas costas
Cai-lhe o manto dos reis em plena glória...

Glória de escárnio o manto extraordinário:
Mas quem me dera um dia, de mãos postas,
Nele envolver-me como num sudário!


*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.
SETENÁRIO DAS DORES DE NOSSA SENHORA

[...]

SEXTA DOR

IV

E recebeste-O nos teus braços. Vinha
Do alto do Lenho onde estivera exposto
Ao ímpio olhar, tão ímpio! da mesquinha
Multidão que insultava o santo Rosto…

Sangue o peito suavíssimo continha,
Num resplandor de raios de sol posto…
Oh Vinha do Senhor, excelsa Vinha
Em cachos siderais de etéreo mosto!

Sangue que se derrama em ondas, sangue
Que, para a salvação dos homens, corre
Purpureamente brando, e O deixa exangue…

E que correndo como então corria,
Por toda a eternidade nos socorre
No mistério eternal da Eucaristia…

[...]

*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Redenção

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.
”   

*Antero de Quental*
Em “Sonetos, (antologia), org. José Lino Grunewald”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1991.
Deus

Eu me lembro! Eu me lembro! − Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:
‘− Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?’

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E respondeu: ‘− Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,
Mais forte que o tufão, meu filho, é – Deus’.


*Casimiro de Abreu*

Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

domingo, 20 de março de 2016

Chuva de estrêlas

Li uma vez em páginas antigas
Que se uma estrêla cai do céu clemente,
Concede tudo o que lhe pede a gente.
Como as estrêlas são nossas amigas!

Por isso agora, insone e sem fadigas,
Fito os céus tôda a noite atentamente.
Chovem estrêlas... E eu: − ‘Astro fulgente,
Que eterno o nosso amor predigas!

− Faze-me bom! Conserva-lhe a doçura!
− Estrêla, dá-nos paz! serenidade!
− Que a nossa filha seja linda e pura!’

Doiradas ambições! Como dizê-las,
Se elas são tantas?! Deus, por piedade,
Manda que caiam tôdas as estrêlas!


*Marcelo Gama*
Em “VIA SACRA E OUTROS POEMAS”, Rio de Janeiro, 
Edição da SOCIEDADE FELIPPE D'OLIVEIRA, 1ª Edição, 1944.
Não sei ser triste a valer

Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.


*Fernando Pessoa*
Em “POESIAS INÉDITAS (1930-1935) de FERNANDO PESSOA”, 
Lisboa, Editora Ática, 1ª Edição, Volume 7, 1990.
Lenda

‘Não colhas essas rosas.
As rosas,
Irmãs na terra das estrêlas,
São mais lindas nos olhos que na mão.

Contenta-te em vê-las.
Deixa-as na haste,
Côr de púrpura e ouro.
Se as colheres, as rosas morrerão.’

Não quis ouvir o teu agouro.
Colhi tôdas as rosas que nasceram
Nos caminhos por onde me levaste
E as rosas não morreram....
”      

*Álvaro Moreyra*
Em “Lenda das Rosas (Os mais belos poemas de amor)”, São Paulo, 
Companhia Editora Nacional, 1ª Edição, 1928.
Natureza morta

E se eu te oferecesse uma rosa vermelha,
da cor do sangue, para que o dia se alegrasse?
Há dias assim, penso nas rosas vermelhas
como se elas tivessem a magia
de tudo transformar.
Talvez me olhasses de outro modo
talvez me oferecesses
plantas do teu jardim
e os frutos maduros do teu pomar.
Talvez o chilrear dos pássaros
nos seduzisse
e eu deixasse de ser uma natureza morta!...
”  

*Desconheço a autoria*
[Texto supostamente atribuído a Alexandre de Castro]
Extraí daqui:
https://barcosflores.blogspot.com/2010/10/poemas-com-rosas-dentro-88.html
Acordando

Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o Céu a minha'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao Mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das coisas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento húmido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. − A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como d'antes, ao meu lado...
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!
”  

*Antero de Quental*
Em “Sonetos, (antologia), org. José Lino Grunewald”, 
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1991.

domingo, 13 de março de 2016

No claustro de celas

Eis quanto resta do idílio acabado,
− Primavera que durou um momento...
Como vão longe as manhãs do convento!
− Do alegre conventinho abandonado...

Tudo acabou...  Anémonas, hidrângeas,
Silindras, − flores tão nossas amigas!
No claustro agora viçam as ortigas.
Rojam-se cobras pelas velhas lájeas.

Sobre a inscrição do teu nome delido!
− Que os meus olhos mal podem soletrar,
Cansados... E o aroma fenecido

Que se evola do teu nome vulgar!
Enobreceu-o a quietação do olvido,
Ó doce, ingénua, inscrição tumular.

 
*Camilo Pessanha*
Em “Gramática do Português Contemporâneo (Celso Cunha)”, Rio de Janeiro, 
Editora Saraiva, 8ª edição, 1980, pág. 474.
Crepuscular

Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d’ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias d’ave.
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
− Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas d’anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
− É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.
”         

*Camilo Pessanha*
Em “CLEPSIDRA”, São Paulo, Editora Ateliê Editorial, 1ª Edição, 2009.

segunda-feira, 7 de março de 2016

VIDA ETÉREA

Quando passeio ao longo dos caminhos,
Batem asas de medo os passarinhos;
Escondem-se os reptis no tojo em flor,
Minha presença espalha um trágico pavor
Nas pobres criaturas
Que vivem neste mundo, assim como às escuras!

Avezinha fugindo ao ruido dos meus passos,
Se o que eu sinto por ti, acaso, pressentisses,
Tu virias fazer o ninho nos meus braços...
Virias ter comigo, ó pedra, se me ouvisses!


*Teixeira de Pascoaes*
Em “OBRAS COMPLETAS (Cantos Indecisos - Vida Etérea - Elegias),
III Volume ”, 
Lisboa, Livraria Bertrand, 2ª Edição, 1973.
POEMA INÉDITO

Feita de sol é a carne que nos veste
Os ossos, que são feitos de luar.
E a nossa alma é sombra
A sonhar e a pensar, conforme é dia
Ou noite, pois em nosso pensamento
Esplende o sol.
Mas ao luar é que se expande
O nosso dom fantástico, esse voo
Sem fim do nosso ser
Que ultrapassa as estrelas

E alcança além do espaço a eternidade.
E o infinito, além do espaço,
E Deus, além dos deuses.


*Teixeira de Pascoaes*
Em “OBRAS COMPLETAS, VI Volume (Dispersos), Lisboa, Editora Livraria Bertrand, 2ª edição, 1973.

domingo, 6 de março de 2016

Naquele Tempo

Sob o caramachão de glicínia lilás
As abelhas e eu
Tontas de perfume

Lá no alto as abelhas
Doiradas e pequenas
Não se ocupavam de mim
Iam de flor em flor
E cá em baixo eu
Sentada no banco de azulejos
Entre penumbra e luz
Flor e perfume
Tão ávida como as abelhas


*Sophia de Mello Breyner Andresen*
Em “OBRA POÉTICA”, Lisboa, Assírio & Alvim Editora, 1ª Edição, 2015.
Tempo perdido

Havia um tempo de cadeiras na calçada.
Era um tempo em que havia mais estrelas.
Tempo em que as crianças brincavam sob
a claraboia da lua. E o cachorro da casa era
um grande personagem. E também o relógio de parede!
Ele não media o tempo,
simplesmente:
ele meditava o tempo.


*Mario Quintana*

Em “Caderno H”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, pág. 112, 2006.
Olhas o Amanhecer

Olhas o amanhecer,
vives o amanhecer como o único instante
em que o céu é entreaberto segredo de um deus mudo.

Espera: algo vai se revelar e deves estar pronto
para mergulhar teu sonho num poço de luz casta.

O intocado te espera. E amanhece. E te iluminas
como se trincasses com os dentes a polpa do absoluto.
”  

*Alphonsus de Guimaraens Filho*
Em “Luz de Agora”, Rio de Janeiro, Livraria Editora Cátedra, 1ª Edição, 1991.