domingo, 29 de agosto de 2021

O vento fresco da tarde

[...]

Mas dentro de nós existe um outro mundo que está fora do tempo.
Na memória ficam guardadas as coisas que amamos e perdemos.
Não existem mais, no mundo de fora. Mas são reais, no mundo de dentro.
Como disse a Adélia Prado, ‘aquilo que a memória ama fica eterno’.
Na alma, as coisas ficam eternas porque ela, a memória, é o lugar do amor.
E o amor não suporta que as coisas amadas sejam engolidas pelo tempo.


[...]

*Rubem Alves*
Em “A música da NATUREZA”, Campinas/São Paulo, Papirus Editora, 2ª Edição, 2004.

Se eu fosse apenas...

Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!

Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!

Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
– de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...


*Cecília Meireles*
Em “RETRATO NATURAL”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.

 “Casas

A casa de Herédia, com grandes sonetos dependurados como panóplias
E escadarias de terceiro ato,
A casa de Rimbaud, com portas súbitas e enganosos corredores, casa-
diligência-navio-aeronave-pano, onde só não se perdem os
sonâmbulos e os copos de dados,
A casa de Apollinaire, cheia de reis de França e valetes e damas dos
quatro naipes e onde a gente quebra admiráveis vasos barrocos
correndo atrás de pastorinhas do século XVIII,
A casa de William Blake, onde é perigoso a gente entrar, porque pode
nunca mais sair de lá,
A casa de Cecília, que fica sempre noutra parte...
E a casa de João-José, que fica no fundo de um poço, e que não é
propriamente casa, mas uma sala de espera no fundo do poço.


*Mario Quintana*
Em “O aprendiz de feiticeiro”, São Paulo, Editora Globo, 2ª reimpressão, 2005.

 “As crianças chatas

Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real.
O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe.
Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma.
Ele diz: não posso, estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste.
Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis.
Será que ele está dormindo? − pensa ela toda acordada.
E ele está amedrontado demais para se queixar.
Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço,
ambos cochilam, no ninho da resignação.
E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Que nome dar à esperança?

Mas se através de tudo corre a esperança, então a coisa é atingida.
No entanto a esperança não é para amanhã. A esperança é este instante.
Precisa-se dar outro nome a certo tipo de esperança porque esta palavra
significa sobretudo espera. E a esperança é já. Deve haver uma palavra
que signifique o que quero dizer.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 “Daqui a vinte e cinco anos

Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos.
Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais daqui a vinte e cinco anos.
Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos
que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e
orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher,
de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior
maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia
terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo
terá falado muito mais. Mas, se não sei prever, posso pelo menos desejar.
Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva:
o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos,
porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças
são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados
em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser
decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública.
Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma.
E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais
de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos,
morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica
do problema da comida serão tão abençoados por nós como,
em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.
”  

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Rústica
 
Eu q’ria ser camponesa;
Ir esperar-te à tardinha
Quando é doce a Natureza
No silêncio da devesa,
E só voltar à noitinha...
 
Levar o cântaro à fonte
Deixá-lo devagarinho,
E correndo pela ponte
Que fica detrás do monte
Ir encontrar-te sozinho...

E depois quando o luar
Andasse pelas estradas,
D'olhos cheios do teu olhar
Eu voltaria a sonhar,
P’los caminhos de mãos dadas.

E depois se toda a gente
Perguntasse: ‘Que encarnada,
Rapariga! Estás doente?’
Eu diria: ‘É do poente,
Que assim me fez encarnada!’

E fitando ao longe a ponte,
Com meu olhar cheio do teu,
Diria a sorrir pro monte:
O cant’ro ficou na fonte
Mas os beijos trouxe-os eu...


*Florbela Espanca*
Em “O Livro D’Ele”, São Paulo, Globus Editora, 1ª Edição, 2011.

 Estas Mãos

Olha para estas mãos de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.

Pesadas, de falanges curtas, sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.

Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heroico emocionante: – Dei Ouro para o Bem de São Paulo.
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.

Íntimas da economia, do arroz e do feijão da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro e faziam sabão.
Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar, ajudar, unir e abençoar.
Mãos de semeador...

Afeitas à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
Procurando a terra.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.

Mãos tenazes e obtusas, feridas na remoção de pedras e tropeços, quebrando as
arestas da vida.
Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.

Mãos pequenas e curtas de mulher que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar,
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 Pão-Paz

O Pão chega pela manhã em nossa casa.
Traz um resto de madrugada.
Cheiro de forno aquecido, de lêvedo e de lenha queimada.
Traz as mãos rudes do trabalhador e a Paz dos campos cheios.
Vem numa veste pobre de papel. Por que não o receber numa toalha de linho
puro e com as mãos juntas em prece e gratidão?
Para fazê-lo assim tão fácil e de fácil entrega, homens laboriosos de países
distantes e de fala diferente trabalharam a terra, reviraram, sulcaram, gradearam,
revolveram, oxigenaram e lançaram a semente.
A semente levava o seu núcleo de vida. O sol, a umidade o sereno, o calor e a
noite tomaram dela, e fez-se o milagre da germinação.
O campo se tornou verde em flor, e veio junto o joio, convivente, excrescente,
já vigente nas parábolas do Evangelho.
O trigal amadureceu e entoou seu cântico de vida num coral de vozes vegetais.
Venham... venham... venham...
E vieram os ceifeiros e cortaram o trigo, e arrancaram e queimaram o joio.
Cortaram e ajuntaram os feixes.
Malharam e ensacaram o grão.
E os grandes barcos graneleiros o levaram por caminhos oceânicos a países
diferentes e a gentes de fala estranha.
Foi transportado aos moinhos.
As engrenagens moeram, desintegraram.
Separaram o glúten escuro, o próprio e pequenino coração do trigo até as
alvuras do amido
de que se faz o pão alvo universal.
Transformaram a semente dourada
num polvilhamento branco de leite, que é levado às masseiras e cilindros
onde os padeiros de batas e gorros brancos ensejam, elaboram e levedam a
massa.
Cortam, recortam, enformam, desenformam e distribuem pelas casas,
enquanto a cidade dorme.

O Padeiro é o ponteiro das horas, é o vigia do forno quando a cidade se aquieta
e ressona.
É o operário modesto, tranquilo e consciente da noite silenciosa e da cidade
adormecida.
É mestre e dá uma lição
de trabalho confiante e generoso.

Pela manhã a padaria aberta, recendente, é a festa alegre das ruas e dos bairros.
Devia ter feixes de trigo enfeitando suas portas.

É por esse caminho tão largo, tão longo, tão distante e deslembrado que o pão
vem à nossa casa.
Ele chega cantando, ele chega rezando e traz consigo uma bandeira branca de
seis letras: Pão-Paz.
Haverá sempre esperança de paz na Terra enquanto houver um semeador
semeando trigo e um padeiro amassando e cozendo o pão, enquanto houver a
terra lavrada e o eterno e obscuro labor pacífico do homem, numa contínua
permuta amistosa dos campos e das cidades.
Para chegar a nossa casa em ritmo de rotina, o Pão fez sua longa caminhada na
terra e nos mares.
Passou de mão em mão
como uma grande bênção de gerações pretéritas.
Pela sua presença fácil em todas as mesas, eu vos dou graças, meu Deus.
Graças pela hóstia consagrada
que é Pão e Vida.
Pão de reconciliação do Criador com o pecador recebido na hora extrema.
Fazei, Senhor, com que as sobras das mesas fartas sejam levadas em Vosso
nome àqueles que nada têm e que a códea largada na abundância nunca seja
lançada com desprezo.
Haverá sempre uma boca faminta a sua espera.
Graças, Senhor, pelo primeiro semeador que lançou a primeira semente na terra
e pelo homem que amassou, levedou e cozeu o primeiro pão.
Graças, meu Deus, por essa bandeira branca de Paz que traz a certeza do pão.
Graças pelas mil vezes que os Livros Santos escrevem e confirmam
a palavra generosa e suave: Pão.

‘Havia um partir de pão em casa de Onesíforo quando Paulo ali entrou com
seus amigos’ (Epístola).


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

Obra épica inacabada sobre a temática indianista...

Os Filhos de Tupã  

I

Ao deserto, minh'alma! Sôbre os píncaros
Da branca penedia, e enquanto o vento
Nos antros da montanha ulula e brame,
Solte a rude pocema o canto fero
Dos filhos de Tupã. E ruja a inúbia
Troando pela várzea os sons bravios.

II

Salve, Amazonas! Rei dos reis das águas,
Iumuí dos rios, filhos do dilúvio!
Mar, que do bôjo golfas tantos mares,
Fonte do abismo que sorveu a América,
E mais tarde, – quem sabe? – há de sumi-la.
Salve, Amazonas! Como o sol és único,
Gigante, que o maior dos oceanos
Gerou nos flancos da maior montanha!
Monstro vorace, o mundo tragarias
Se Deus, te sofreando a fúria indômita,
Não curvara em princípio o vasto Atlântico,
E só para contar-te a imensidade.
És origem do líquido elemento
Que circunda o universo? Es tu que pejas
Do pélago sem fim as profundezas,
Onde matam a sêde o céu e a terra?
És pai das ondas, ou tirano delas?
Colosso ingente, que fundiu em águas
O verbo de um artista onipotente,
A cabeça reclina sôbre os Andes
Ao céu rasgando as largas cataratas;
O dorso enorme ressupino estendes
Pela terra que verga com teu pêso;
Os mil braços, que alongas pelas serras,
Abrangem tanto espaço que outros mundos
Couberam inda neste mundo nôvo,
Feito para teu berço. Com desprêzo
Aos pés o colo esmagas do oceano,
Que mugindo se roja pelas praias;
Mas prostrado e vencido, não vassalo,
O mar soberano às vêzes se revolta.
Alçada a fronte, a juba desgrenhada,
S'eriça e raia e ruge e ronca e troa;
E a longa, imensa cauda destorcendo,
Te enlaça o corpo no impotente esfôrço.


*José de Alencar*
(José Martiniano de Alencar)
Em “IRACEMA – Cartas sobre A Confederação dos Tamoios”,
Coimbra/Portugal, Edições Almedina Brasil, 1ª Edição, 1994.

sábado, 21 de agosto de 2021

“A educação é não somente a base da democracia, mas a própria justiça social.” *Anísio Teixeira*

 “Sinto vergonha de mim

Sinto vergonha de mim
por ter sido educador de parte desse povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.

Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
 e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligência com a família,
célula-mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o ‘eu’ feliz a qualquer custo,
buscando a tal ‘felicidade’
em caminhos eivados de desrespeito
para com o seu próximo.

Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos ‘floreios’ para justificar
atos criminosos,
a tanta relutância
em esquecer a antiga posição
de sempre ‘contestar’,
voltar atrás
e mudar o futuro.

Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo
que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer...

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.
Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir meu Hino
e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.

Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti, povo brasileiro!


*Cleide Canton*
(Cleide Maria Canton Garcia)
Extraí daqui: http://www.paginapoeticadecleidecanton.com/


O homem que volta...

Quando fui, com o meu sonho ingênuo e lindo,
Pelas estradas amplas, luminosas,
Vinham as Graças desfolhando rosas.

Ergui os olhos para os céus, sorrindo,
A beleza da vida pressentindo...

Quando vim, com o meu tédio miserando,
Pelos estreitos e áridos caminhos,
Iam as Parcas espelhando espinhos...

Baixei os olhos para o chão, chorando,
E fiquei para sempre meditando...

*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren,
Pandora, Verônica e Alhambra)”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “À Florbela
(em sua memória)

Sou eu, Florbela! Aquele que buscaste.
Falam de mim Teus versos de Menina.
Tua boca p’ra mim se abriu, divina,
mas foi só o Luar que Tu beijaste.

Hás-de voltar, Florbela!… Em débil haste,
por entre os trigos cresce, purpurina,
a mais fresca papoila da campina
que, só por me veres, não cortaste.

Eu tenho três mil anos: sou Poeta.
Surgi dos lábios secos dum asceta,
de uma oração que Deus deixou de parte.

Redimi tantos corpos, tantas vidas
neles vivi, que sinto já nascidas
asas com que subir para alcançar-Te.


*Sebastião da Gama*
(Sebastião Artur Cardoso da Gama)
Em “OBRAS COMPLETAS DE SEBASTIÃO DA GAMA – DIÁRIO”,
Barcarena/Portugal, Editorial PRESENÇA, 14ª Edição, 2011.

Astrologia

Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além...

– Meu Deus, o que é que esse menino tem? –
Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!

E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...

Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.


*Mario Quintana*
Em “Baú de espantos”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 “Cidadezinha cheia de graça

Cidadezinha cheia de graça…
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça…
Sua igrejinha de uma torre só.

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca, nem um segundo…
E fica a torre sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!…

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (que triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha… Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar...

*Mario Quintana*
Em “Mario Quintana, Prosa & Verso – Coleção Paradidática”,
Porto Alegre/RS, Editora Globo, 3ª Edição, 1983.

Obsessão do Mar Oceano

Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su’alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios da beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontraremos sobre o Mar Oceano,
Quando eu já não tiver mais nome.

 
*Mario Quintana*
Em “O aprendiz de feiticeiro”, São Paulo, Editora Globo, 2ª reimpressão, 2005.

MAR BRAVO

Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz das minhas melancolias:

Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré cheia de novilúnio,
Mar rumoroso!

Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amarugem!

As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!

Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.

Mar que arremetes, mar que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!...


*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

 “Sabedoria

Tu que vives e passas, sem saber
O que é a vida nem porque é, que ignoras
Todos os fins e que, pensando, choras
Sobre o mistério do teu próprio Ser,

Não sofras mais à espera das auroras
Da suprema verdade a aparecer:
A verdade das cousas é o prazer
Que elas nos possam dar à flor das horas...

Essa outra que desejas, se ela existe,
Deve ser muito fria e quase triste,
Sem a graça encantada da incerteza

Vê que a Vida afinal, – sombras, vaidades –
É bela, é louca e bela, e que a Beleza
É a mais generosa das verdades.


*Raul de Leoni*
Em “Luz Mediterrânea”, Rio de Janeiro, Editora Viana & Mosley, 1ª Edição, 2002.

Alvorada do Amor

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:

‘Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degredo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da boca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,
Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!

Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,
– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!’.


*Olavo Bilac*
(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac)
Em “Poesias (Alma Inquieta)”, Rio de Janeiro, Editôra Paulo de Azevedo Ltda., 27ª Edição, 1961.

Do Beco de Vila Rica

No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.

No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar, terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem – um gato morto.
No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.
Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos ‘polistas’,
de botas, trabuco, gibão de couro.

Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta, pulando o muro dos
quintais, correndo pra o jeguedê e o batuque.
A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada, em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
vai para o ano dois mil.
Vila Rica não é sonho, inventação, imaginária, retórica, abstrata,
convencional.
É real, positiva, concreta e simbólica.
Involuída, estática.
Conservada, conservadora.
E catinguda.

Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai, entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.) Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar de vez em quando.
E esconjuram quando se fala em vender o fundo do quintal, fazer casa
nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias os descendentes
também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
– muros retelhados. Portões fechados.

Na velhice dos muros de Goiás o tempo planta avencas.
Monturo:
Espólio da economia da cidade.
Badulaques:
Sapatos velhos. Velhas bacias.
Velhos potes, panelas, balaios, gamelas, e outras furadas serventias
vêm dar ali.
Não há nada que dure mais do que um sapato velho jogado fora.
Fica sempre carcomido,
ressecado, embodocado,
saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol, que de esforço, constante, invisível,
material, atuante,
silencioso, dia e noite,
precisará de um calçado, no lixo, para se decompor absolutamente, se
desintegrar quimicamente em transformações de humo criador?...
Às vezes, um vadio,
malvado ou caridoso,
põe fogo no monturo.
Fogo vagaroso, rastejante.
Marcado pela fumaceira conhecida.
Fumaça de monturo:
Agressiva. Ardida.
Cheiro de alergia.
Nervosia, dor de cabeça.
Enjoo de estômago.
Monturo:
tem coisa impossível de queimar, vai ardendo devagar,
no rasto da cinza, na mortalha da fumaça.

Monturo...
Faz lembrar a Bíblia:
Jó, raspando suas úlceras.
Jó, ouvindo a exortação dos amigos.
Jó, clamando e reclamando do seu Deus.
As mulheres de Jó,
as filhas de Jó,
gandaiam coisinhas, pobrezas, nos monturos do beco da Vila Rica.
Eu era menina pobrezinha, como tantas do meu tempo.
Me enfeitava de colares,
de grinaldas,
de pulseiras,
das boninas dos monturos.

Vila Rica da minha infância, do fundo dos quintais...
Sentinelas imutáveis dos becos, os portões.
Rígidos. Velhíssimos. Carunchados.
Trancados à chave.
Escorados por dentro.
Chavões enormes (turistas morrem por elas).
Fechaduras de broca, pesadas, quadradas.
Lingueta desconforme, desusada.
Portões que se abriam,
antigamente,
em tardes de folga,
com licença dos mais velhos.

Aonde a gente ia – combinada com a vizinha, conversar, espairecer...
passar a tarde...
Tarde divertida, de primeiro, em Goiás, passada no beco da Vila Rica, –
a dos monturos bíblicos.
Dos portões fechados.
De mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos.
E o lixo pobre da cidade, extravasando dos quintais.
E aquela cheiração ardida.
E a ervinha anônima,
sempre a mesma,
estendendo seu tapete
por toda a Vila Rica.
Coisinha rasteirinha, sem valia.
Pisada, cativa, maltratada.
Vigorosa.
Casco de burro de lenha.
Pisadas de quem sobe e desce.
Daninheza de menino vadio nunca dão atraso a fedegoso, federação,
manjiroba, caruru-de-espinho, guanxuma, são-caetano.
Resistência vegetal... Plantas que vieram donde?
Do princípio de todos os princípios.
Nascem à toa. Vingam conviventes.
Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém.
E só morrem depois de cumprida a obrigação: amadurecer...
sementear,
garantir sobrevivência.
E flores... migalhas de pétalas, de cores.
Amarelas, brancas, roxas, solferinas.
Umas tais de andaca... boninas...
Flor de brinquedo de menina antiga.
Flor de beco, flor de pouco caso.
Vagabundas, desprezadas.

Becos da minha terra...
Válvulas coronárias da minha velha cidade.

Além do mais, Vila Rica tem um cano horroroso.
Começa no começo.
Abre ali sua bocarra de lobo e vai até o Rio Vermelho.
Coitado do Rio Vermelho!...
O cano é um prodígio de sabedoria, engenharia, urbanismo colonial, do
tempo do ouro.
Conservado e confirmado.
Utilíssimo ainda hoje.
Recebe e transfere.
Às vezes caem lajes da coberta.
A gente corre os olhos sem querer.
Meninos debruçam para ver melhor o que há lá dentro.
É horroroso o cano no seu arrastar de espurcícias, vagaroso.
Deus afinal se amerceia de Vila Rica e um dia manda chuvas.
Chuvas pesadas, grossas, poderosas.
Dilúvio delas. Chuvas goianas.

A enxurrada da Rua da Abadia lava o cano.
O fiscal manda repor as lajes.
E a vida da cidade continua, tão tranquila, sem transtornos.
Diz a crônica viva de Vila Boa que, debaixo do cano da Vila Rica,
passa um filão de ouro.
Vem da Rua Monsenhor Azevedo.
Rico filão. Grosso filão.
Veia pura, confirmada.
Atravessa o beco – daí o nome de Vila Rica.
E vai engolido pelo Rio Vermelho.

Para defender esse veeiro e dirimir contendas no passado que deram
causa a mortes, brigas, danos e facadas, o Senhor Ouvidor de Vila Boa,
por bem entender e ser de sua alçada, mandou por cima do filão de ouro
estender o cano.
Medida salomônica e salutar.
Bem por isso um ilustre causídico, de sobrado beiradão colonial,
costuma recolher num vidro de boca larga palhetas de ouro,
encontradas na moela das galinhas do quintal.
Além de tudo,
Goiás tinha seus costumes familiares.
Normas sociais interessantes conservadas através de gerações.
Hábitos familiares que se diluíram com o tempo, ligados aos becos e
aos portões.
Família amiga de alta consideração e pouca intimidade.
De grande conceito e rígida etiqueta, certo dia,
mandava na casa amiga portador de confiança: Sá Liduvina, negra
forra.
Gente da casa, integrada na família.
Viu nascer Ioiô.
Viu nascer Iaiá.
Viu nascer filhos de Ioiô.
Viu nascer filhos de Iaiá...
Madrinha, de carregar, de um bando de meninos.
Contas redondas de ouro no pescoço.
Brinco de cabacinha nas orelhas.
Conceição maciça, pendurada.
Bentinhos escondidos no seio.
Saia escura, rodada, se arrastando.
Paletó branco de morim, muito engomado.
Chinelas cara-de-gato, nos pés, largos, pranchados, reumáticos.
Bate na porta do meio...
– ‘Dá licença, Nhãnhã?...’ – ‘Vai entrando...’
– ‘Suscristo...’ – Entrega as flores.
– ‘Nhã, D. Breginata mandou essas fulô do quintar dela,
mandou falá
se vassuncê cunsente qui Nhanhá Sinhaninha vai passá o dia santo
damenhã cum Sinhá Lili...’
– ‘Que vassuncê num sincomode.
Que au de noite, au depois da purcissão ela vem trazê...’
– ‘É pra passá o dia inteirinho...
Inhá Lili mandou pidi’.

Lá dentro, consultas demoradas, Depois: – ‘Sim... Pois não...
Sinhazinha vai com muito gosto.
Fala pra D. Breginata pra abri o portão que Sinhazinha vai ao depois
da missa da madrugada’.
Estas e outras visitas se faziam passando pelo portão.
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos, as moças daquele tempo
eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de ‘todo o mundo’...

‘Todo o mundo...’
Expressão pejorativa muito expressiva.
Muito goiana. Muito Brasil colonial, imperial, republicano.
Era comum portador com este recado: – ‘Vai lá na prima Iaiá, fala pra
ela mandar abrir o portão, depois do almoço, que vou fazer visita pra
ela...’
Costume estabelecido:
Levar buquê de flores.
Dar lembrança, dar recado.
Visitas com aviso prévio.
Mulheres entrarem pelo portão.
Saírem pelo portão.
Darem voltas, passarem por detrás.
Evitarem as ruas do centro, serem vistas de todo o mundo.
Em colaboração com tais hábitos havia o xaile.
Indumentária lusitana,
incorporada ao estatuto da família.
Xaile escuro, de preferência.
Liso, florado, barrado, de listras.
Quadrado. Franjas torcidas. Tecido fofo de lã.
De casimira, de sarja, baetilha, seda, lã e seda, alpaca, baeta.
Dobrado em triângulo. Passado pela cabeça.
Bico puxado na testa.
Pontas certas, caídas na cacunda.
Pontas cruzadas na frente, enrolando, dissimulando o busto, as
formas, a idade, a mulher.
Durante um século prevaleceu o xaile.
Substituiu o mantéu e o bioco.
Contava minha bisavó, do primeiro xaile – novidade – aparecido em
Goiás e bem-aceito.
Depois, não havia loja que não tivesse xaile.
Xaile preto. Xaile branco.

Azul-escuro, avinhado, havana, cinzento.
Xaile verde.
Era ótimo presente de aniversário.
Muito estimado e de longa duração.
Ajudava o velho estatuto
das mulheres se resguardarem, embuçadas, disfarçadas.
Olharem na tabuleta.
Entrarem pelo portão.
Passarem por detrás.
Justificando o antigo brocardo português: ‘Mulheres, querem-nas
resguardadas e a sete chaves...’
A moça, quando casava, já sabia: levava no enxoval um xaile, de
preferência escuro.
E quando a cegonha dava sinal, era de decência e compostura – bata
ancha. Anágua de baeta.
Saia comprida se arrastando, e ritual – o xaile,
embonando tudo.

E o primeiro agasalho do nascituro era um xaile encarnado de baeta.
Felpas vermelhas de baeta, arrancadas do cueiro, molhadas no cuspo,
coladas na testa, era porrete pra soluço.
Não havia espasmo de criança que resistisse à velha pajelança.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

domingo, 15 de agosto de 2021

 “Falai de Deus

Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza:
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não O entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (1918-1964), Volume 1”,
Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

POEMA DIDÁTICO

Já tive um país pequeno,
tão pequeno
que andava descalço dentro de mim.
Um país tão magro
que no seu firmamento
não cabia senão uma estrela menina,
tão tímida e delicada
que só por dentro brilhava.

Eu tive um país
escrito sem maiúscula.
Não tinha fundos
para pagar a um herói.
Não tinha panos
para costurar bandeira.
Nem solenidade
para entoar um hino.

Mas tinha pão e esperança
para os viventes
e sonhos para os nascentes.

Eu tive um país pequeno,
tão pequeno
que não cabia no mundo.


*Mia Couto*
Em “poesia TRADUTOR DE CHUVAS”, Alfragide/Portugal, Editorial Caminho S.A., 2011.

 [...]

Será essa história um dia meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela
– é claro que a história é verdadeira embora inventada –
que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não
tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar
coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.


[...]

*Clarice Lispector*
Fragmento extraído da narrativa desenvolvida
em sua obra “A hora da Estrela”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1977.

Noturno do Morro do Encanto

Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.

Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade, enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia de seu manto.

Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que nem tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.

Falta a morte chegar… Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2008.

 “Estrada
 
Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo mundo é igual. Todo mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2008.

 “Flamboyant

Todo ano ele se encosta largo e plácido
no canto esquerdo da janela;
todo ano ele me acena com seus flocos
gordos, vermelhos e inócuos
e, a seu modo manso, me interpela.
Invariavelmente, o Flamboyant me encanta e me intimida.
Vem chegando novembro
e já o percebo adornando-me a vidraça.
Repete-se o cenário, a história passa.
Mas o que foi que eu fiz com minha vida?


*Flora Figueiredo*
Em “Estações”, São Paulo, Editora Novo Século, 2ª Edição, 2010.

 ARTE POÉTICA
 
Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.
 
Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.

 
*José Saramago*
Em “Poesia completa”, Lisboa, Editora Alfaguara, 3ª Edição, 2005.

 “Agonia da Crença
 
Meu Deus!… é já bem tarde… ah! não traz eco a prece
Que rola de minh’alma à funda solidão…
É tarde… e já me abala o temporal das dúvidas
Aos dous pólos da vida – o cér’bro e o coração!…

Jaz tudo morto em mim!… minh’alma habita um túmulo.
Envolta da descrença em a clâmide atroz!…
P’lo prisma da desgraça é que eu diviso a vida –
Pela da dor – a Morte – e p’lo da morte – a Vós!…

Embalde – a delirar tateio no futuro
Um sonho, uma ilusão! misérrimo que eu sou
Tudo é deserto e mudo – e a minha mente chora
As lágrimas que outrora o coração chorou!…

Entretanto sou moço… – e a senda do existir
De mil Auroras veste o intérmino fulgor…
Intérmino fulgor que eu atravesso mudo
Embuçado na noute atroz de minha Dor!…

Embalde eu me procuro… eu perco-me em mim mesmo…
E se à fria solidão da alma ouso descer
Deus! um mundo de luz e de magmas – a lágrima
Arrebenta fetal das trevas do meu ser!…

– Meu Deus!… A consciência, eu sei, é o vosso olhar! –
Não posso mentir pois! os arcanos fatais
De meu agro viver – desvendam-se ante vós…
Sabei pois – é bem tarde… é tarde até demais!

   
*Euclides da Cunha*
Em “Euclides da Cunha: Poesia Reunida”, São Paulo, Editora UNESP, 1ª Edição, 2009.

 “AMAR

Amar é fazer o ninho,
Que duas almas contém,
Ter medo de estar sozinho,
Dizer com lágrimas: vem,
Flor, querida, noiva, esposa…
Cabemos na mesma lousa…
Julieta, eu seu Romeu:
Correr, gritar: onde vamos?
Que luz! que cheiro! onde estamos?
E ouvir uma voz: no céu!
Vagar em campos floridos
Que a terra mesma não tem;
Chegamos loucos, perdidos
Onde não chega ninguém…
E, ao pé de correntes calmas,
Que espelham virentes palmas,
Dizer-te: senta-te aqui;
E além, na margem sombria,
Ver uma corça bravia,
Pasmada olhando pra ti!


*Tobias Barreto de Menezes*
Em “Dias e Noites”, Organização de Luiz Antônio Barreto; Introdução e notas de Jackson da Silva,
Rio de Janeiro: Editora Record, 7ª Edição Revista e Aumentada; Brasília, DF: INL, 1989.

 “MARIA
 
Nome que as almas sacia,
Que adoça os lábios da flor,
Mística, eterna harmonia
Dos querubins do Senhor...
Grande, profundo mistério
Das crenças da nova lei;
Visão que ao som do saltério
Cantava o profeta rei...
Aroma que o céu aberto
Por toda parte expandiu;
Voz de Deus, que perto, perto,
Miquéias de longe ouviu.
Inspiração de Isaías,
Que disse a Jerusalém:
– Levanta-te, as melodias
Dos anjos caindo veem...
De tudo nada existia,
O caos ponderava a sós;
E disse Deus: – Ó Maria!
E tudo ouviu esta voz.

     
*Tobias Barreto de Menezes*
Em “Dias e Noites”, Organização de Luiz Antônio Barreto; Introdução e notas de Jackson da Silva,
Rio de Janeiro: Editora Record, 7ª Edição Revista e Aumentada; Brasília, DF: INL, 1989.

domingo, 8 de agosto de 2021

O Impossível Carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura...
Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
– Eu soubesse repor –
No coração despedaçado
As mais puras alegrias da tua infância!
”       

*Manuel Bandeira*

Em “Estrela da Vida Inteira”, Rio de Janeiro,
Livraria José Olympio Editora, 8ª Edição, 1980.

Chico buarque de holanda

Eu poderia dizer isso pessoalmente mas tive medo de me emocionar.
Você sabe que não me seria difícil convidar o que se chama de
personalidades para a minha casa. Mas não foi por você ser uma
personalidade que chamei. Convidei porque, além de ser altamente
gostável, você tem a coisa mais preciosa que existe: a candura.
Meus filhos têm. E eu, apesar de não parecer, tenho candura dentro de mim.
Escondo-a porque ela foi ferida. Peço a Deus que a sua candura
nunca seja ferida e que se mantenha sempre.


*Clarice Lispector*

Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Que me ensinem

Meu Deus, e eu que não sei rezar? Como viver então? Não é só para pedir por
mim e por outros, mas para sentir, para agradecer, para de algum modo entrar
num convento, logo eu que sou tão colérica e feroz.
Existe uma cartomante que me conheceu mocinha. E agora é ela quem
me chama e não me cobra nada. Apesar de cartomante é profundamente católica.
E tem ido à missa por mim. Obrigada por rezar o que eu não sei.
Oh Deus, eu já fui muito ferida. Mas a quanta gente tenho pelo que agradecer.
Só não cito os nomes para não ferir o pudor de quem eu citasse.
Tenho recebido olhares que valem por uma reza. E há quem já tenha feito
promessa por mim. E eu? Vou tentar rezar agora mesmo, despudoradamente
em público. É assim: Meu Deus − não, é inútil, não consigo.
Mas talvez dizer ‘Meu Deus’ já seja uma reza. Há, porém um pedido
que posso fazer e farei agora mesmo: Deus, fazei com que os que eu amo
não me sobrevivam, eu não toleraria a ausência. Pelo menos isso eu peço.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Um telefonema

O telefone tocou, eu atendi, chamaram por mim.
Em geral pergunto quem é porque nem sempre estou disposta
a ser chateada. Mas dessa vez alguma coisa na voz, doce
e tímida, me fez dizer que era eu mesma que estava ao telefone.
Então a voz disse: sou uma leitora sua e quero que você seja feliz.
Perguntei: como é seu nome?
Respondeu: uma leitora. Eu disse: mas eu quero saber seu nome para
poder dizê-lo ao desejar que você seja feliz.
Mas foi inútil, ela não tinha sequer diante de mim a vontade de aparecer
como pessoa que é.
Era o anonimato completo. Mas para você, de quem nem ao menos sei
o nome, quero que tenha alegrias e que, se já não é casada,
que encontre o homem de sua vida. Peço também que não leia tudo
o que escrevo porque muitas vezes sou áspera e não
quero que você receba minha aspereza.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Adeus, vou-me embora!

[...]

E escrever é um divinizador do ser humano.
Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles
eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar
por mim e pela minha voz que sai através da palavra
escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre
eu soube usar a palavra − embora às vezes gaguejando − então sou uma criminosa
se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim.
O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não
sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem?
Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto:
amor pelos outros? Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo:
eu vos amo. Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras.
E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa,
fui ao terraço e vi a lua cheia − sou muito mais lunar que solar.
E uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão
me toma se eu não escrever: eu vos amo.
Como explicar que me sinto mãe do mundo?
Mas dizer ‘eu vos amo’ é quase mais do que posso suportar! Dói.
Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar.


*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 “Aceitação
 
É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
E sentir passar as estrelas
Do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.
 
É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
E assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
Que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
O sinal de uma eterna esperança.
 
Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
Nem tu.
 
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
Não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.


*Cecília Meireles*
Em “CANÇÕES”, Rio de Janeiro, Editora Livros de Portugal, 1ª edição, 1956.

 “Soneto XXVIII

Sobre a coberta o lívido marfim
Dos meus dedos compridos, amarelos...
Fora, um realejo toca pra mim
Valsas antigas, velhos ritornelos.

E esquecido que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
Tão altos sempre... cada vez mais belos!...
Nem D. Quixote teve morte assim...

Mas que ouço? Quem será que está chorando?
Se soubésseis o quanto isso me enfada!
...E eu fico a olhar o céu pela janela...

Minh’alma louca há de sair cantando
Naquela nuvem que lá está parada
E mais parece um lindo barco a vela!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

 “Aula inaugural

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis
como na guerra do Paraguai…
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança como David diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas…
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.
(Sabem todas as almas perdidas…)
O solene canto é um archote nas trevas.
(Sabem todas as almas perdidas…)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges.
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa rugir o Caos atônito…


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre,  
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.

“Misticismos

I

A terra é templo.
O lavrador é semeador.
A lavoura é altar.
O grão é oferta.
 
II
 
O lavrador e sua fala econômica: – Se Deus quisé.
– A Deus querê.
– Graças a Deus.
Repostando tudo a Deus – quando lucra.
Quando perde:
– Seja feita a vontade de Deus.

III
 
Assim atravessa a vida, gera filhos sem restrições.
Nada sabe de explosão demográfica.
Pobres, disse Jesus: Sempre os tereis entre vós.”

*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

Prece Árabe

Deus, não consintas que eu seja
O carrasco que sangra as ovelhas,
Nem uma ovelha nas mãos dos algozes.

Ajuda-me a dizer sempre a verdade
Na presença dos fortes,
E jamais dizer mentiras para ganhar os aplausos dos fracos.

Meu Deus,
Se me deres a fortuna,
Não me tires a felicidade;
Se me deres a força, não me tires a sensatez;
Se me for dado prosperar,
Não permita que eu perca a modéstia,
Conservando apenas o orgulho da dignidade.

Ajuda-me a apreciar o outro lado das coisas,
Para não enxergar a traição dos adversários,
Nem acusá-los com maior severidade do que a mim mesmo.

Não me deixes ser atingido pela ilusão da glória, quando bem sucedido
E nem desesperado quando sentir insucesso.
Lembra-me que a experiência de um fracasso
Poderá proporcionar um progresso maior.

Ó Deus!
Faze-me sentir que o perdão é maior índice da força,
E que a vingança é prova de fraqueza.
Se me tirares a fortuna,
Deixe-me a esperança.
Se me faltar a beleza da saúde,
Conforta-me com a graça da fé.
E quando me ferir a ingratidão e a
incompreensão dos meus semelhantes,
Cria em minha alma a força da desculpa e do perdão.

E, finalmente, Senhor,
Se eu Te esquecer, na minha imperfeição,
No meu processo evolutivo,
Te rogo, mesmo assim,
nunca Te esqueças de mim!


*Desconheço a autoria*
Extraí daqui:  http://discipulosdemaria.com.br/?p=1033

domingo, 1 de agosto de 2021

[...]

Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim:
vivo me perdendo de vista.
Preciso de paciência porque sou vários caminhos,
inclusive o fatal beco-sem-saída.
Sou um homem que escolheu o silêncio grande.
Criar um ser que me contraponha é dentro do silêncio.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Um Sopro de Vida”,  Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1978.

Clarice Lispector... deixa-me muda...

 “TRECHOS

[...]

Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente
– como em dores de parto – e vi que a menina em mim estava morrendo.
Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui.
Dura, silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim.

 
[...]

*Clarice Lispector*
Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.