sábado, 21 de agosto de 2021

Do Beco de Vila Rica

No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.

No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar, terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem – um gato morto.
No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.
Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos ‘polistas’,
de botas, trabuco, gibão de couro.

Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta, pulando o muro dos
quintais, correndo pra o jeguedê e o batuque.
A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada, em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
vai para o ano dois mil.
Vila Rica não é sonho, inventação, imaginária, retórica, abstrata,
convencional.
É real, positiva, concreta e simbólica.
Involuída, estática.
Conservada, conservadora.
E catinguda.

Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai, entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.) Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar de vez em quando.
E esconjuram quando se fala em vender o fundo do quintal, fazer casa
nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem centenárias os descendentes
também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
– muros retelhados. Portões fechados.

Na velhice dos muros de Goiás o tempo planta avencas.
Monturo:
Espólio da economia da cidade.
Badulaques:
Sapatos velhos. Velhas bacias.
Velhos potes, panelas, balaios, gamelas, e outras furadas serventias
vêm dar ali.
Não há nada que dure mais do que um sapato velho jogado fora.
Fica sempre carcomido,
ressecado, embodocado,
saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol, que de esforço, constante, invisível,
material, atuante,
silencioso, dia e noite,
precisará de um calçado, no lixo, para se decompor absolutamente, se
desintegrar quimicamente em transformações de humo criador?...
Às vezes, um vadio,
malvado ou caridoso,
põe fogo no monturo.
Fogo vagaroso, rastejante.
Marcado pela fumaceira conhecida.
Fumaça de monturo:
Agressiva. Ardida.
Cheiro de alergia.
Nervosia, dor de cabeça.
Enjoo de estômago.
Monturo:
tem coisa impossível de queimar, vai ardendo devagar,
no rasto da cinza, na mortalha da fumaça.

Monturo...
Faz lembrar a Bíblia:
Jó, raspando suas úlceras.
Jó, ouvindo a exortação dos amigos.
Jó, clamando e reclamando do seu Deus.
As mulheres de Jó,
as filhas de Jó,
gandaiam coisinhas, pobrezas, nos monturos do beco da Vila Rica.
Eu era menina pobrezinha, como tantas do meu tempo.
Me enfeitava de colares,
de grinaldas,
de pulseiras,
das boninas dos monturos.

Vila Rica da minha infância, do fundo dos quintais...
Sentinelas imutáveis dos becos, os portões.
Rígidos. Velhíssimos. Carunchados.
Trancados à chave.
Escorados por dentro.
Chavões enormes (turistas morrem por elas).
Fechaduras de broca, pesadas, quadradas.
Lingueta desconforme, desusada.
Portões que se abriam,
antigamente,
em tardes de folga,
com licença dos mais velhos.

Aonde a gente ia – combinada com a vizinha, conversar, espairecer...
passar a tarde...
Tarde divertida, de primeiro, em Goiás, passada no beco da Vila Rica, –
a dos monturos bíblicos.
Dos portões fechados.
De mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos.
E o lixo pobre da cidade, extravasando dos quintais.
E aquela cheiração ardida.
E a ervinha anônima,
sempre a mesma,
estendendo seu tapete
por toda a Vila Rica.
Coisinha rasteirinha, sem valia.
Pisada, cativa, maltratada.
Vigorosa.
Casco de burro de lenha.
Pisadas de quem sobe e desce.
Daninheza de menino vadio nunca dão atraso a fedegoso, federação,
manjiroba, caruru-de-espinho, guanxuma, são-caetano.
Resistência vegetal... Plantas que vieram donde?
Do princípio de todos os princípios.
Nascem à toa. Vingam conviventes.
Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém.
E só morrem depois de cumprida a obrigação: amadurecer...
sementear,
garantir sobrevivência.
E flores... migalhas de pétalas, de cores.
Amarelas, brancas, roxas, solferinas.
Umas tais de andaca... boninas...
Flor de brinquedo de menina antiga.
Flor de beco, flor de pouco caso.
Vagabundas, desprezadas.

Becos da minha terra...
Válvulas coronárias da minha velha cidade.

Além do mais, Vila Rica tem um cano horroroso.
Começa no começo.
Abre ali sua bocarra de lobo e vai até o Rio Vermelho.
Coitado do Rio Vermelho!...
O cano é um prodígio de sabedoria, engenharia, urbanismo colonial, do
tempo do ouro.
Conservado e confirmado.
Utilíssimo ainda hoje.
Recebe e transfere.
Às vezes caem lajes da coberta.
A gente corre os olhos sem querer.
Meninos debruçam para ver melhor o que há lá dentro.
É horroroso o cano no seu arrastar de espurcícias, vagaroso.
Deus afinal se amerceia de Vila Rica e um dia manda chuvas.
Chuvas pesadas, grossas, poderosas.
Dilúvio delas. Chuvas goianas.

A enxurrada da Rua da Abadia lava o cano.
O fiscal manda repor as lajes.
E a vida da cidade continua, tão tranquila, sem transtornos.
Diz a crônica viva de Vila Boa que, debaixo do cano da Vila Rica,
passa um filão de ouro.
Vem da Rua Monsenhor Azevedo.
Rico filão. Grosso filão.
Veia pura, confirmada.
Atravessa o beco – daí o nome de Vila Rica.
E vai engolido pelo Rio Vermelho.

Para defender esse veeiro e dirimir contendas no passado que deram
causa a mortes, brigas, danos e facadas, o Senhor Ouvidor de Vila Boa,
por bem entender e ser de sua alçada, mandou por cima do filão de ouro
estender o cano.
Medida salomônica e salutar.
Bem por isso um ilustre causídico, de sobrado beiradão colonial,
costuma recolher num vidro de boca larga palhetas de ouro,
encontradas na moela das galinhas do quintal.
Além de tudo,
Goiás tinha seus costumes familiares.
Normas sociais interessantes conservadas através de gerações.
Hábitos familiares que se diluíram com o tempo, ligados aos becos e
aos portões.
Família amiga de alta consideração e pouca intimidade.
De grande conceito e rígida etiqueta, certo dia,
mandava na casa amiga portador de confiança: Sá Liduvina, negra
forra.
Gente da casa, integrada na família.
Viu nascer Ioiô.
Viu nascer Iaiá.
Viu nascer filhos de Ioiô.
Viu nascer filhos de Iaiá...
Madrinha, de carregar, de um bando de meninos.
Contas redondas de ouro no pescoço.
Brinco de cabacinha nas orelhas.
Conceição maciça, pendurada.
Bentinhos escondidos no seio.
Saia escura, rodada, se arrastando.
Paletó branco de morim, muito engomado.
Chinelas cara-de-gato, nos pés, largos, pranchados, reumáticos.
Bate na porta do meio...
– ‘Dá licença, Nhãnhã?...’ – ‘Vai entrando...’
– ‘Suscristo...’ – Entrega as flores.
– ‘Nhã, D. Breginata mandou essas fulô do quintar dela,
mandou falá
se vassuncê cunsente qui Nhanhá Sinhaninha vai passá o dia santo
damenhã cum Sinhá Lili...’
– ‘Que vassuncê num sincomode.
Que au de noite, au depois da purcissão ela vem trazê...’
– ‘É pra passá o dia inteirinho...
Inhá Lili mandou pidi’.

Lá dentro, consultas demoradas, Depois: – ‘Sim... Pois não...
Sinhazinha vai com muito gosto.
Fala pra D. Breginata pra abri o portão que Sinhazinha vai ao depois
da missa da madrugada’.
Estas e outras visitas se faziam passando pelo portão.
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos, as moças daquele tempo
eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de ‘todo o mundo’...

‘Todo o mundo...’
Expressão pejorativa muito expressiva.
Muito goiana. Muito Brasil colonial, imperial, republicano.
Era comum portador com este recado: – ‘Vai lá na prima Iaiá, fala pra
ela mandar abrir o portão, depois do almoço, que vou fazer visita pra
ela...’
Costume estabelecido:
Levar buquê de flores.
Dar lembrança, dar recado.
Visitas com aviso prévio.
Mulheres entrarem pelo portão.
Saírem pelo portão.
Darem voltas, passarem por detrás.
Evitarem as ruas do centro, serem vistas de todo o mundo.
Em colaboração com tais hábitos havia o xaile.
Indumentária lusitana,
incorporada ao estatuto da família.
Xaile escuro, de preferência.
Liso, florado, barrado, de listras.
Quadrado. Franjas torcidas. Tecido fofo de lã.
De casimira, de sarja, baetilha, seda, lã e seda, alpaca, baeta.
Dobrado em triângulo. Passado pela cabeça.
Bico puxado na testa.
Pontas certas, caídas na cacunda.
Pontas cruzadas na frente, enrolando, dissimulando o busto, as
formas, a idade, a mulher.
Durante um século prevaleceu o xaile.
Substituiu o mantéu e o bioco.
Contava minha bisavó, do primeiro xaile – novidade – aparecido em
Goiás e bem-aceito.
Depois, não havia loja que não tivesse xaile.
Xaile preto. Xaile branco.

Azul-escuro, avinhado, havana, cinzento.
Xaile verde.
Era ótimo presente de aniversário.
Muito estimado e de longa duração.
Ajudava o velho estatuto
das mulheres se resguardarem, embuçadas, disfarçadas.
Olharem na tabuleta.
Entrarem pelo portão.
Passarem por detrás.
Justificando o antigo brocardo português: ‘Mulheres, querem-nas
resguardadas e a sete chaves...’
A moça, quando casava, já sabia: levava no enxoval um xaile, de
preferência escuro.
E quando a cegonha dava sinal, era de decência e compostura – bata
ancha. Anágua de baeta.
Saia comprida se arrastando, e ritual – o xaile,
embonando tudo.

E o primeiro agasalho do nascituro era um xaile encarnado de baeta.
Felpas vermelhas de baeta, arrancadas do cueiro, molhadas no cuspo,
coladas na testa, era porrete pra soluço.
Não havia espasmo de criança que resistisse à velha pajelança.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

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