domingo, 31 de janeiro de 2016

Dizem Que Em Cada Coisa Uma Coisa Oculta Mora

Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.

Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo −
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?

O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?

Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?

Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta, impessoal, sem forma,
Já não sente o eu que eu tenho,
Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,
Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.

Cessarei assim? Não sei.
Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,
Não me tomará imortal.


*Alberto Caeiro
(heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “Poemas Inconjuntos, Poemas de Alberto Caeiro/Fernando”, Lisboa, Ática, 10ª Edição, 1993.
Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


*Cora Coralina*
Em “Melhores Poemas, Cora Coralina”, São Paulo, Editora Global, 1ª Edição, 2004.
Cânticos

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o Céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso.
                Sem pensar.”              

*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa de Cecília Meireles”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2001.
Almas Indecisas

Almas ansiosas, trêmulas, inquietas,
Fugitivas abelhas delicadas
Das colméias de luz das alvoradas,
Almas de melancólicos poetas.

Que dor fatal e que emoções secretas
vos tornam sempre assim desconsoladas,
Na pungência de todas as espadas,
Na dolência de todos os ascetas?!

Nessa esfera em que andais, sempre indecisa,
Que tormento cruel vos nirvaniza,
Que agonias titânicas são estas?!

Por que não vindes, Almas imprevistas,
Para a missão das límpidas Conquistas
E das augustas, imortais Promessas?!

        
*Cruz e Sousa*
Em “CRUZ E SOUSA: OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A., 
Reimpressão atualizada da primeira edição, 1995.

A harpa

Prende, arrebata, enleva, atrai, consola
A harpa tangida por convulsos dedos,
Vivem nela mistérios e segredos,
É berceuse, é balada, é barcarola.

Harmonia nervosa que desola,
Vento noturno dentre os arvoredos
A erguer fantasmas e secretos medos,
Nas suas cordas um soluço rola…

Tu’alma é como esta harpa peregrina
Que tem sabor de música divina
E só pelos eleitos é tangida.

Harpa dos céus que pelos céus murmura
E que enche os céus da música mais pura,
como de uma saudade indefinida.


*Cruz e Sousa*
Em “CRUZ E SOUSA: OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A.,
Reimpressão atualizada da primeira edição, 1995.

A Vigília do Silêncio

Apraz-me ouvir, às horas vespertinas,
Quando o ocaso desmaia o azul sidéreo,
O longo cantochão das casuarinas
Na religiosa paz do cemitério.

As árvores, em múrmuras surdinas,
De um rumor elegíaco e funéreo,
Falam de coisas mortas e divinas,
Veladas pelas sombras do mistério.

A perscrutar as vozes do arvoredo,
Na ânsia inquietante e céptica do sábio,
Tento, ó Morte! saber o teu segredo.

Mas vejo, no alvo mármore das urnas,
O Silêncio com o dedo sobre o lábio,
Olhando as vagas solidões noturnas...


*Da Costa e Silva*
Em “Obras completas de Da Costa e Silva”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 3ª edição, 1985.
Vesperal

Hora de bênção, de perdão, de prece...
E que, no entanto, é das que mais afligem...
Entardecer... O azul empalidece
como um rosto na agônica vertigem...

Em breve a noite vai colher a messe
das estrêlas... E da cerúlea origem
a alma do vago sobre as almas desce
e as saudades para elas se dirigem...

Morreu da luz o fulgurante império ...
O poente, como as ilusões perdidas,
os nossos sonhos vãos, se fez cinéreo...

E sobre tantas ruínas, quando é noite,
virão chorar, nas horas esquecidas,
as cristalinas lágrimas da noite...


*José Lannes*
Em “CANDEIA”, São Paulo, Editora Livraria Martins, 2ª Edição, 1948.
Distância

Quando o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve seco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia…)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam…
− que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria…


*Cecília Meireles*

Em “Poesia Completa de Cecília Meireles (Vol. I)”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2001.
Não: já não falo de ti

Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.
Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, pareceu tão terrível.

A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos – é tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...

Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.

Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras
sobre imensos papeis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se da aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa de Cecília Meireles”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2001.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Velha canção

Não penses que não te espero
na aparente indiferença.
Esta fingida descrença
só disfarça desespero.

Se a falsa máscara fria
pudesse quebrar esta ânsia
saberias que a constância
é meu pão de cada dia.

Um pudor duro e severo
esperar desesperado
é o que nutre este pecado
de querer como te quero.

Destarte − tímido louco −
não ouso sondar tua alma
e nesta insofrida calma
dia a dia morro um pouco.


*Menotti del Picchia*

 Extraí daqui: http://www.casamenotti.com.br/poesias_texto.htm

domingo, 24 de janeiro de 2016

Felicidade

Se eu pudesse congelar o tempo,
escolheria este momento
exatamente agora,
nesta pouca hora
de uma quarta-feira.

O gerânio novo
enfeitando a prateleira,
o riso da criança
brilhando lá fora.

O livro aberto
no lugar certo,
que simplesmente diz
‘Eu não tenho nada,
mas rouxinóis gorgoleiam
versos na calçada’

É assim que se começa a ser feliz.


*Flora Figueiredo*
Em “Amor a céu aberto”, São Paulo, Editora Novo Século, 1ª Edição, 2010.
Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada…

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo…
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


*David Mourão-Ferreira*
Em “DAVID MOURÃO-FERREIRA - INFINITO PESSOAL OU A ARTE DE AMAR”, Lisboa, 
GUIMARÃES EDITORES, 2ª Edição, 1963.
Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES - OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.
Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES - OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.
Se há tanta paz...

Se há tanta paz no azul que o céu abriga,
E há tanto azul que tanto bem nos faz,
Se há tanto azul e há tanto céu, me diga
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz no verde-mar da onda
Que faz-se verde e em branco se desfaz,
Se há tanta onda pelo mar, responda:
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz no olor das multicores
Flores: orquídeas, rosas, manacás...
Se há tanta paz em cada flor e há tantas flores
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz nos cânticos suaves
Que entoam na alvorada os sabiás,
Se há paz num canto de ave e há tantas aves,
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz na brisa que desliza
Sobre as folhagens, tímida e fugaz;
Se há tanta paz na brisa e há tanta brisa,
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz nas expressões tão mansas
Que ao vir ao mundo uma criança traz,
E cada dia existem mais crianças,
Por que é que o homem não encontra a paz?

Se há tanta paz nos corações com fé
Que atrai o bem e afasta as coisas más,
Então oremos juntos, todos de pé,
Para que o homem encontre um dia a paz!


*Luna Fernandes*
Extraí daqui:
http://www.omensageiro.com.br/mensagens/mensagem-35.htm

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

QUEM SOU EU...

Ninguém se sabe em saber,
mas tu me sabes quem sou:
sou tua luz da chama acesa
depois que o fogo apagou...

Por encantos de um feitiço
ou por vícios da esperança,
sou uma presa do capricho
de trazer-te na lembrança...

Sou partes não separadas
de nós dois numa unidade
como as rosas num jardim...

Sou o anjo que me seguiu
em busca de todo o amor
que estava dentro de mim.

 
*Julis Calderon d'Estéfan*
(Heterônimo de Afonso Estebanez)

Extraí daqui: http://afonsoestebanez.blogspot.com.br/2013/08/quem-sou-eu.html
A CARNE
  
Exiges. É ciumenta e egoísta. Não admites
qualquer rivalidade, ou que algo te suplante.
És forte e audaz no teu domínio sem limites…
capaz de transformar a vida num instante,
 
És mísera e brutal. Mas, nada obsta que agites
e açambaques o mundo, e que essa alucinante
e estranha sensação que aos humanos transmites,
tenha, como nenhuma, um halo deslumbrante.

Oh, carne que possuis no teu imo maldito
mais lodo que contém num charco pantanoso,
mais esplendor, também, que os astros do Infinito…

Rugindo de volúpia e de sensualidade,
espalhando na terra apoteoses de gozo,
ó, carne, serás tu a única verdade?


*Adelaide Schloenbach Blumenschein*
Em “Inverno em Flôr”, São Paulo, Editôra Cupolo Ltda., 1ª Edição, 1959.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Ubiqüidade

Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.

Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.

Em tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)

Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.


*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA - MANUEL BANDEIRA”, Rio de Janeiro, 
EDITÔRA DO AUTOR, 1ª Edição 1961.
Testamento

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder se lanterna
numa noite sem chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando...
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.


*Cassiano Ricardo*
Em “Antologia poética Cassiano Ricardo (Seleção R. B.)", Rio de Janeiro, 
Editôra do Autor, 2ª Edição, 1964.
A GRAÇA TRISTE

Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.

Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.

Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior − de quem fica −
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.

Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.

É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.

É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde
.”

*Cassiano Ricardo*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA CASSIANO RICARDO (SELEÇÃO R. B.)”, Rio de Janeiro, 
EDITÔRA DO AUTOR, 1ª Edição, 1964.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Salmo do Silêncio

Tão grande é meu silêncio que ouviria
uma hóstia pousar sobre uma nuvem,
a floração de estrelas no abismo
e o murmúrio de Deus amando o mundo.

Neste convulso silêncio escutaria
uma luz caminhando no infinito
e a tristeza de um anjo abandonado.

Tão puro meu silêncio que escuto
o solitário coração de Deus
fluindo angústia. E às vezes sinto
desdobrar-se em silêncio e mais silêncio
a grande voz a murmurar meu nome
na negra solidão inacessível.


*Yttérbio Homem de Siqueira*
Em “Abismo intacto”, Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora 
(convênio com a FUNDARPE/Recife), 1ª Edição, 1983.
Salmo a Melquisedeque

                                                   A Nilo Pereira

Se a essência da luz desabrochasse
e se todos os cristais se dissolvessem,
não teriam a luz e o som daquela prece.

Neblinas, íris,
rosas e cores,
Silfos e Elfos,
flautas de prata,
brisas, sonatas,

nada é tão belo como aquela prece:
túnica de luz, cristal e lua
que as mãos sonoras da música tecem.

Ai, nada existe como a imensa prece
do grande solitário cujo nome
nem mesmo os anjos do senhor conhecem.


*Yttérbio Homem de Siqueira*
Em “Abismo intacto”, Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora 
(convênio com a FUNDARPE/Recife), 1ª Edição, 1983.
Salmo do Instante - III

                                   A Mário Bezerra

O tempo flui, matando o mundo,
deixando atrás as coisas gastas,
infinito desnudo e já vivido.
O tempo flui bebendo o vinho
do céu, do espaço,
e amputando as mãos de Deus.

Gastando o mundo, o tempo flui
enquanto os germes sutis da vida
são triturados à luz do sol.
Vergando de infâncias,
o tempo vai lavando o céu
como uma vidraça, uma mancha
na transparência infinita.

O templo flui,
como uma língua nos carrilhões,
ondas de luz, vozes de morte,
ecos noturnos, vento distante.
Como o momento legado
pelas memórias antigas,
o tempo flui:
a mão amiga que se foi,
a voz ausente, a hora outrora,
a madrugada lenta da alma
− a cor mais íntima que se conhece.

O tempo flui, limpando o mundo
da umidade das criaturas,
desses lugares impregnados
onde os homens se ocultam
da face dura do infinito.
O tempo flui arrasador
sobre as estrelas, sobre os espaços,
deixando apenas a alma de Deus
como a essência sobrevivente.


*Yttérbio Homem de Siqueira*
Em “Abismo intacto”, Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio Editora 
(convênio com a FUNDARPE/Recife), 1ª Edição, 1983.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Vazio

Há certos dias
Que sinto em min’alma
Um vazio infinito,
Um vazio sem sentido,
Um vazio indefinível,
Vazio dos ventos e procelas,
Vazio que vem de longe
Cuja origem desconheço,
Maior,
Muito maior que a solidão...

Há certos momentos
Que sinto dentro de mim
Um vazio talvez originário das vagas,
Dos grandes mares
E que às vezes me inunda,
Quase me faz soçobrar...

Há certas horas
Que sinto dentro de mim
Um vazio que se agiganta,
Diante do qual me sinto pequenino
E comparo este vazio tão grande
Ao vazio da hora do adeus...

Mas existe, sim,
Um vazio,
Muito maior do que todos os vazios,
E que se alojam no âmago dos corações,
O vazio imenso da saudade!...


*Olympiades Guimarães Corrêa*
Em “Neblina do Tempo/Por Quem Choram os Ciprestes”, Distrito Federal, 
Editora Quick Printer, 1ª Edição, 1996.
Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e não saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenúfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E não ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nós Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!


*Florbela Espanca*
Em “TROCANDO OLHARES”, São Paulo, Editora Martin Claret, 2ª Edição, 1985.
Figura jacente

Meu rosto nasce desta condição horizontal
de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço
Deus teve para mim morte mais rasa
do que a morte que o sol encontra entre as águas
Desfez-se a curva última da estrada
nada ficou após meus gastos passos

Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés
E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias:
– Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo nos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola

Deus é perto de mim como uma árvore.


*Ruy Belo*

Em “O problema da habitação – Alguns aspectos”, Rio de Janeiro, Editora 7 Letras, 1ª Edição, 2013.
Exaltação

Olhas nos olhos meus. E eu vejo neste instante
toda a terra subir a um céu que desconheço.
Olho nos olhos teus. E fica tão distante
o mundo: e todo o fel que ele contém, esqueço.

Sorris... e, contemplando o teu lindo semblante,
o ideal de minha vida, enfim, eu reconheço.
Falas... ouço-te a voz, e, impetuosa, radiante,
num gesto de ternura, os lábios te ofereço.

Beijas a minha boca. E neste beijo grande
− como uma flor que ao sol desabrocha e se espande −,
todo o meu ser palpita e freme e vibra e estua.

Tudo é um sonho, no entanto; o teu beijo... o meu crime.
Mentirosa ilusão! Pobre ilusão que exprime
somente o meu desejo imenso de ser tua!


*Adelaide Schloenbach Blumenschein*
Em “Inverno em flor”, São Paulo, Editora Cupolo Ltda., 1ª Edição, 1959.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Sol e chuva

Gosto desses dias molhados, de chuva miúda, de chuva fina
chuva boa,
de névoa, de garoa,
em que a gente não sente a obrigação de ser feliz,
e fica em si mesmo à-toa...

Basta a gente ficar onde está, nada mais, é tudo que se quer,
vendo a chuva cair, a chuva caindo,
ficar sentado, acomodado, num lugar qualquer
ouvindo o rumor da chuva, ouvindo.
ouvindo.

Dias que não pedem nada, que não exigem nada, que não incomodam,
em que a gente fica em casa, sem necessidade
de companhia, de ter alguém,
basta essa sensação que agora é minha...
Oh, a paz, essa felicidade impessoal, perfeita
que consegue ser feliz sozinha...

(Como doem certos dias de sol, de tanta alegria!)
Dias exigentes que gritam por felicidade, que reclamam vida e emoção
e que encontram às vezes a gente tão só
no meio de tanta gente,
tão só e desprevenido
sem saber que fazer − meu Deus! − do coração!

Dias de sol que derrubam a gente,
que maltratam a gente, passam por cima,
da gente
sem piedade,
tontos, deslumbrados,
e se vão a cantar uma felicidade
por todos os lados,
uma felicidade de bola de cristal, inexistente,
sem ver que ficamos no chão, como indigentes
abandonados...

Ah! gosto desses dias assim, de olhos embaciados, cinzentos,
de chuvinha mansa, de chuvinha boa,
que não perturbam o coração
que descansam a vista;
que, no máximo, esperam que a gente se sinta bem,
e nos deixam em paz, sem nada, nem ninguém,
− só isto!

Nesses dias, humilde e só, um pouco egoísta
talvez,
− existo...


*J. G. de Araújo Jorge*
Em “Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou”, São Paulo, Editora Angelotti,  Vol.  IV,  2ª edição , 1970.
DEDICATÓRIA

Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara!

Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara
tanta cousa afinal na nossa história...
E este verso – é a feliz dedicatória...
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração, de amor, rindo e cantando, cantando
e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “Meu Céu Interior”, Rio de Janeiro, Editora Vecchi, 8ª Edição, 1967.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Mãos que os lírios invejam

Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas
Para aliviar de Cristo os sofrimentos,
Cujas veias azuis parecem feitas
Da mesma essência astral dos olhos bentos;

Mãos de sonho e de crença, mãos afeitas
A guiar do moribundo os passos lentos,
E em séculos de fé, rosas desfeitas
Em hinos sobre as torres dos conventos.

Mãos a bordar o santo Escapulário,
Que revelastes para quem padece
O inefável consolo do Rosário;

Mãos ungidas no sangue da Coroa,
Deixai tombar sobre a minha Alma em prece
A bênção que redime e que perdoa!


*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.
Ao Poente

Ficávamos sonhando horas inteiras,
com os olhos cheios de visões piedosas:
éramos duas virginais palmeiras,
abrindo ao céu as palmas silenciosas.
.
As nossas almas, brancas, forasteiras,
no éter sublime alavam-se radiosas,
ao redor de nós dois, quantas roseiras...
O áureo poente coroava-nos de rosas.
.
Era um arpejo de harpa todo o espaço;
mirava-a longamente, traço a traço,
no seu fulgor de arcanjo proibido.
.
Surgia a lua, além, toda de cera...
Ai como suave então me parecera
a voz do amor que eu nunca tinha ouvido.


*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.
Encontrei-te. Era o mês...

Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar, que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.
 
Que saudades de amor na aurora do teu rosto,
Que horizonte de fé no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março.
 
Encontrei-te. Depois... depois tudo se some:
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira...
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol, que importa? ou fosse o luar já morto!


*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.
Rosas

Rosas que já vos fostes, desfolhadas
Por mãos também que já foram, rosas
Suaves e tristes! Rosas que as amadas,
Mortas também, beijaram suspirosas...

Umas rubras e vãs, outras fanadas,
Mas cheias do calor das amorosas...
Sois aroma de almofadas silenciosas,
Onde dormiram tranças destrançadas.

Umas brancas, da cor das pobres freiras,
Outras cheias de viço de frescura,
Rosas primeiras, rosas derradeiras!

Ai! Quem melhor que vós, se a dor perdura,
Para coroar-me, rosas passageiras,
O sonho que se esvai na desventura?


*Alphonsus de Guimaraens*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2001.