domingo, 29 de maio de 2016

Renúncia

Fui nova, mas fui triste; só eu sei
como passou por mim a mocidade!
Cantar era o dever da minha edade…
Devia ter cantado, e não cantei!

Fui bella. Fui amada. E desprezei…
Não quis beber o philtro da anciedade.
Amar era o destino, a claridade…
Devia ter amado, e não amei!

Ai de mim! Nem saudades, nem desejos;
nem cinzas mortas, nem calor de beijos…
− Eu nada soube, nada quis prender!

E o que me resta? Uma amargura infinda:
ver que é, para morrer, tão cedo ainda,
e que é tão tarde já para viver!


*Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino*
Em “RENÚNCIA”, Lisboa, Imprensa Lucas & Cia., 3ª Edição, 1926.
(grafia da época)
Quando Te Vi

A manhã era clara, refulgente.
Uma manhã doirada. Tu passaste.
Abriu mais uma flôr em cada haste.
Teve mais brilho o sol, fez-se mais quente.

E eu innundei-me d’essa luz ardente.
Depois não sei mais nada. Olhei... olhaste...
E nunca mais te vi. − Extranho contraste! −
A madrugada transformou-se em poente.

Luz que nasceu e apenas scintillou!
Deixou-me triste assim que se apagou,
A’s vezes fecho os olhos; vejo-a ainda...

E ha tanto sol doirando esses trigaes!
Olhaste, olhei, fugiste... Ai, nunca mais,
nunca mais tive outra manhã tão linda!


*Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino*
Em “NAMORADOS”, Rio de Janeiro, Editora Livraria H. Antunes, 14ª edição, 1943.
(grafia da época)
Horas

Tem cada hora uma decifração.
As horas fallam e teem gestos, côres.
Na hora da manhã − vê que esplendores! −
é diferente a sua vibração.

Repara bem na hora dos amores.
E’ um coração com outro coração.
Tem a hora maior palpitação.
Tem vida, movimentos e langores.

E’ cada hora um livro, e cada qual
da sua forma o lê: ou bem ou mal.
Horas que vão e que não voltam mais!

Para mim há só duas. Males... bens...
E’ a hora doirada em que tu vens,
e a hora dolorosa em que te vaes.


*Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino*
Em “NAMORADOS”, Rio de Janeiro, Editora Livraria H. Antunes, 14ª edição, 1943.
(grafia da época)

domingo, 22 de maio de 2016

Súplica

Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d’astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente…
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente!…

Vem para mim, amor… Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!…


*Florbela Espanca*
Em “TROCANDO OLHARES”, São Paulo, Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2009. 
De ti só quero o cheiro dos lilases

De ti só quero o cheiro dos lilases
e a sedução das coisas que não dizes
De ti só quero os gestos que não fazes
e a tua voz de sombras e matizes

De ti só quero o riso que não ouço
quando não digo os versos que compus
De ti só quero a veia do pescoço
vampira que já sou da tua luz

De ti só quero as rosas amarelas
que há nos teus olhos cor das ventanias
De ti só quero um sopro nas janelas
da casa abandonada dos meus dias

De ti só quero o eco do teu nome
e um gosto que não sei de mar e mel
De ti só quero o pão da minha fome
mendiga que já sou da tua pele.


*Rosa Lobato de Faria*
Em “A Noite Inteira Já Não Chega: 1983-2010”, Lisboa, Guimarães Editora, 1ª Edição, 2012.
Depois do Sol...

Fez-se noite com tal mistério,
Tão sem rumor, tão devagar,
Que o crepúsculo é como um luar
Iluminando um cemitério...

Tudo imóvel... Serenidades...
Que tristeza, nos sonhos meus!
E quanto choro e quanto adeus
Neste mar de infelicidades!

Oh! Paisagens minhas de antanho...
Velhas, velhas... Nem vivem mais...
− As nuvens passam desiguais,
Com sonolência de rebanho...

Seres e coisas vão-se embora...
E, na auréola triste do luar,
Anda a lua, tão devagar,
Que parece Nossa Senhora

Pelos silêncios a sonhar...
”   

*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
O teu olhar

Passam no teu olhar nobres cortejos,
frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,

Mares onde não cabem teus desejos;
passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!

E ao sentir-te tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!


*Florbela Espanca*
Em “A MENSAGEIRA DAS VIOLETAS – ANTOLOGIA”, 
Porto Alegre, Edições L&PM POCKET, 1ª Edição, 1997.
Drama eterno

Caminheira do Ideal, em vão busquei
O que tantos em vão têm buscado.
Sonhadora do Bem, nunca encontrei
Os sonhos que a sorrir tinha sonhado.

Sedenta de Beleza, os passos dei
Que, antes de mim, já outros tinham dado.
E errassem os caminhos que eu errei!
Viram também seu sonho naufragado!

Há-de ser sempre assim, eternamente!
Querer partir as grades, loucamente,
E esbracejar numa impotência triste…

Desde que o mundo é mundo − o mesmo drama!
O mesmo procurar de sóis na lama!
E o mesmo anseio do que não existe!


*Florbela Espanca*
Em “Poemas Inéditos Os Últimos Poemas de Florbela Espanca”,
Lisboa, Edições Nova Acrópole, 1ª Edição, 2014.
Velhinha e moça

O tempo, mansamente, há de espalhar
Flocos de neve sobre os meus cabelos,
Numa carícia deixará os selos,
No meu corpo gentil, o seu sabor…

Ao meu sangue fremente, a palpitar,
Hão de esfriá-lo sucessivos gelos,
E aos meus seios graciosos hei de vê-los
Mirrados como lírios a fechar…

Mas mesmo quando for assim velhinha
O teu amor fará um alvoroço
Na minh’alma e graça de menina

E até morrer, o meu olhar cansado,
Fitando o teu há de julgar-se moço,
Num enlevo de eterno enamorado.


*Florbela Espanca*
Em “Poemas Inéditos Os Últimos Poemas de Florbela Espanca”,
Lisboa, Edições Nova Acrópole, 1ª Edição, 2014.
Exilada

Quem pôs dentro de mim esta ânsia ardente
De quanto é belo e puro e luminoso
− se eu tinha de viver, humanamente,
Prisioneira d'um mundo tormentoso?

Quem me formou um coração fremente,
Torturado, exigente, cobiçoso
D’Altura, d’Infinito − se, impotente,
Queria limitar meu voo ansioso?

Ah! Não sou deste mundo! O meu país
Não é este, onde o sonho contradiz
A realidade! Eu sou uma exilada,

Que um duro engano fez nascer aqui!
Tirem-me da prisão onde caí!
Arranquem-me as algemas de forçada!


*Florbela Espanca*
Em “Poemas Inéditos Os Últimos Poemas de Florbela Espanca”, 
Lisboa, Edições Nova Acrópole, 1ª Edição, 2014.
Riso amargo

Num desafio temerário e forte,
Eu quero rir da vida, altivamente,
Da vida que é combate, luta ingente,
Nesta comédia dum viver sem norte.

Quero rir da desgraça e da má-sorte
Que nos fere e persegue tenazmente.
Rir do que é baixo e vil, amargamente,
Do que é soluço e dor… E até da morte!

De tudo rir! Que mais posso fazer?...
Se a podridão de charco jamais volta
À limpidez das fontes a correr…

Quero rir!... E o meu riso é um esgar,
Um grito de impotência e de revolta!
Rir! Quero rir!

…E apenas sei chorar!


*Florbela Espanca*
Em “Poemas Inéditos Os Últimos Poemas de Florbela Espanca”, 
Lisboa, Edições Nova Acrópole, 1ª Edição, 2014.
Afrodite

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro…
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas…
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divagadores,
ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo…
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão provocante
de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono…
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...


*Irene Lisboa*
Em “OBRAS DE IRENE LISBOA: um dia e outro dia...  outono havias de vir – poesia I”, 
Lisboa, Editorial Presença, Volume I, 2ª Edição, 1991.
Outro dia

Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
estender
o delgado, estiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
Vestidos do verão, leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também o que receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos,
fala-me do corpo,
engana-me…

Mas também me diz, tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos, que podem os espelhos? Tempo!
Tu é que tens a última palavra! Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas. Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todos o pior,
é esperar,
sempre esperar.


*Irene Lisboa*

Em “OBRAS DE IRENE LISBOA: um dia e outro dia...  outono havias de vir – poesia I”, 
Lisboa, Editorial Presença, Volume I, 2ª Edição, 1991.

domingo, 15 de maio de 2016

Escrever

Se eu pudesse havia de… de…
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não… ou sim.
E, como isto, continuando…
E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a bravez do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava…
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse…
fino e sem cor… medroso…
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito.
Amor que se não tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos…
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente…
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?


*Irene Lisboa (com o pseudônimo de João Falco)*
Em “OBRAS DE IRENE LISBOA: um dia e outro dia...  outono havias de vir – poesia I”,
 Lisboa, Editorial Presença, Volume I, 2ª Edição, 1991.
Nova, Nova, Nova, Nova!

Não era a minha alma que eu queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
E de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida, capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva,
torturada, de trazer por casa.
A alma que eu queria ter e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!
” 
   
*Irene Lisboa (com o pseudônimo de João Falco)*
Em “OBRAS DE IRENE LISBOA: um dia e outro dia...  outono havias de vir – poesia I”,
 Lisboa, Editorial Presença, Volume I, 2ª Edição, 1991.
Aviso

Não te abandones um só momento
sou inconstante como a nuvem
sou mutável como o vento.

Não te dês inteiro um só momento
porque um dia te quererás de volta
e levarás somente um fragmento.

*Olga Savary*
Em “Repertório Selvagem - Obra Reunida”, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional; 
MultiMais Editorial; Universidade de Mogi das Cruzes, 1ª Edição, 1998.
“Auto despedida

Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.
Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.
Tão pouco tempo − e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.
Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim.”

*Olga Savary*
Em “Repertório Selvagem - Obra Reunida”, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional;
MultiMais Editorial; Universidade de Mogi das Cruzes, 1ª Edição, 1998.
Gazel

De amor, criei (incriado)
este jardim secreto
de rosas fechadas em seu tédio
e espero
aquele que virá e há de decifrar
hieróglifos de ternura desenhados
pela lua em meu corpo − seu legado.

O amado pedirá em minha boca
o segredo desvendado a todas as perguntas.
Eu lhe responderei sem palavras
mas com o perigoso silêncio parecido
ao rumor da água caindo
sem cessar.


*Olga Savary*
Em “ESPELHO PROVISÓRIO - POESIA”, Rio de Janeiro, 
Livraria José Olympio Editôra, 1ª Edição, 1970.
Pedido

                                                 A Manuel Bandeira

Quando eu estiver mais triste
mas triste de não ter jeito,
quando atormentados morcegos
– um no cérebro outro no peito –
me apunhalarem de asas
e me cobrirem de cinza,
vem ensaiando de leve
leve linguagem de flores.
Traze-me a cor arroxeada
daquela montanha – lembra?
que cantaste num poema.
Traze-me um pouco de mar
ensaiando-se em acalanto
na líquida ternura
que tanto já me embalou.
Meu velho poeta canta
um canto que me adormeça
nem que seja de mentira.


*Olga Savary*
Em “ESPELHO PROVISÓRIO - POESIA”, Rio de Janeiro, 
Livraria José Olympio Editôra, 1ª Edição, 1970.
Quero apenas

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
− e entre mim e meu deserto −
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.


*Olga Savary*
Em “Repertório Selvagem - Obra Reunida”, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional; 
MultiMais Editorial; Universidade de Mogi das Cruzes, 1ª Edição, 1998.
Pontuação

Adormeci nas reticências da vida,
enquanto meditava tempos.
Aconcheguei-me nas dobras do vento,
onde a sombra tricota interrogação.
Não sei se me quedei assim vencido
por obra do cansaço, ou covardia,
recém-saído que vinha
da galeria do herói arrependido.
Às vezes despertando
para olhar na fresta da suspeita,
quando a visão se esforça,
(mas somente estreita),
tentando vislumbrar um movimento.
Hoje parece que vem um sol boiando lento,
querendo aportar em minha lassidão.
A vida reticente que me dê licença,
mas o brilho é forte, a tentação imensa,
desvisto o escuro,
descasco o vazio,
abraço o futuro.
Embarco num ponto de exclamação!


*Flora Figueiredo*
Em “Amor a céu aberto”, São Paulo, Editora Novo Século, 1ª Edição, 2010.
Amor adormecido

Em uma cruzada de olhar
foi que um imenso amor nasceu.
Não houve tempo pr’a pensar
só sei que tudo escureceu.

Teu sorriso me enterneceu
conseguiste me emocionar.
Em uma cruzada de olhar
foi que um imenso amor nasceu.

Hoje do passado a lembrar
sinto que algo ainda não morreu.
Há vontade de te encontrar,
logo nem tudo esmoreceu
em uma cruzada de olhar.


*Mardilê Friedrich Fabre*

 Extraí daqui: http://www.recantodasletras.com.br/rondel/598857
Meados de maio

Chuvoso maio!

Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda

que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!

Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...


*Irene Lisboa (com o pseudônimo de João Falco)*
Em “Solidão – Notas do Punho de uma Mulher”, Volume II, Lisboa, 
Editorial Presença, 4ª Edição, 1992.

sábado, 7 de maio de 2016

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha − queres ouvir-me? −
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
‘Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...’

Mas − tu sabes − a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


*Eugénio de Andrade*
Em “OS AMANTES SEM DINHEIRO – POEMAS”, Lisboa, 
CANCIONEIRO GERAL - CENTRO BIBLIOGRÁFICO”, 1ª Edição, 1950.
De joelhos

‘Bendita seja a Mãe que te gerou.’
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer...
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver...

Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade, 
Charneca em Flor, Reliquiae”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 6ª Edição, 1944.
Mãezinha

Andam em mim fantasmas, sombras, ais...
Coisas que eu sinto em mim, que eu sinto agora;
Névoas de dantes, dum longínquo outrora;
Castelos d'oiro em mundos irreais...

Gotas d'água tombando... Roseirais
A desfolhar-se em mim como quem chora...
− E um ano vale um dia ou uma hora,
Se tu me vais fugindo mais e mais!...

Ó meu Amor, meu seio é como um berço
Ondula brandamente... Brandamente...
Num ritmo escultural d'onda ou de verso!

No mundo quem te vê?! Ele é enorme!...
Amor, sou tua mãe! Vá... docemente
Poisa a cabeça... fecha os olhos... dorme...


*Florbela Espanca*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA − Florbela Espanca”, São Paulo,
Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2015.

domingo, 1 de maio de 2016

DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO
   
                                              Love, love, my season. 
                                           Sylvia Plath

  
I
 
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
 
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento. 

II 

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.  

III 

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
 
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de Poesia Te tomava.
Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga 
E amavio contente o amor teria sido. 

IV 

Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida. 

Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
 
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
 
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença 
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
 
Ilustrada de revista
Editoria; de jornal
Teia cindida. 

Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.  

V

Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta

E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido

Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro

Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.  

VI 

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes

Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?  

VII 

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
NA minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?

Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça? 

Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?  

VIII 

De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura

Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
 
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me dixar amar
Sem amargura. E que me dêem

Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando

− Fazedor de desgosto –
Que eu te esqueça.  

IX 

Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas

Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
 
E porisso, quem sabe, tão amado.  



Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
 
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinqüenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E porisso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença.


*Hilda Hilst*
 
Em “JÚBILO, MEMÓRIA, NOVICIADO DA PAIXÃO”, São Paulo, 
MASSAO OHNO - M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1974.