domingo, 30 de julho de 2017

Voei, cansei, mas cheguei...
Pega estas flores do campo, leitor. 
Eu as trouxe para ti!...
Mensagem a um desconhecido

Teu bom pensamento longínquo me emociona.
Tu, que apenas me leste,
acreditaste em mim, e me entendeste profundamente.

Isso me consola dos que me viram,
a quem mostrei toda a minha alma,
e continuaram ignorantes de tudo que sou,
como se nunca me tivessem encontrado.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª edição, 1993.
Soneto IX

Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, e eu sei que esse canto te consola.

E, lá na rua, o povo tumultuário
ouvindo o canto que daqui se evola
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.

Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.

E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.


*Guilherme de Almeida*
Em LIVRO DE HORAS DE SOROR DOLOROSA “A que morreu de amor”
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2ª edição, 1928.

domingo, 23 de julho de 2017

Filosofia de Emília...

O pôr-do-sol de hoje é de trombeta – disse Emília, com as mãos na cintura,
depezinha sobre o batente da porteira onde, naquela tarde, depois do passeio pela floresta, o pessoal de Dona Benta havia parado.
 
[...] 

O pôr-do-sol daquele dia estava realmente lindo. Era um pôr-do-sol de trombeta.
Por quê?
Porque Emília tinha inventado que em certos dias
o Sol ‘tocava trombeta a fim de reunir todos os vermelhos e ouros
do mundo para a festa do ocaso’.

 
[...]

*Monteiro Lobato*
Fragmento do conto “Pôr do sol de trombeta”,
Em “A Chave do Tamanho”, Editora Globo, São Paulo, 1ª Edição, 2008.
Saudação da saudade

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vida
só é possível
noutra vida.

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz.

Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento.

Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim.


*Alice Ruiz*
 

Extraí daqui: http://aliceruiz1001poets.blogspot.com.br/2010/11/saudacao-da-saudade.html
Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento
que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e
contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares
contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...


*Cecília Meireles*

Em “CECÍLIA DE BOLSO: UMA ANTOLOGIA POÉTICA”,
Porto Alegre, Editora L&PM, 1ª Edição, 2008.
Sinfonia cotidiana

A manhã surge
aos sons do Concerto n° 1 de Grieg
no rádio madrugador do meu vizinho.

A tarde chega
acompanhada pelo Prelúdio n° 24 de Chopin,
num piano sem lugar.

A madrugada se embala
com a música do mar.


*J. G. de Araújo Jorge*
Em “A Outra”, Rio de Janeiro, CASA EDITÔRA VECCHI LTDA., 1ª Edição, 1957.
Triunfo Supremo

Quem anda pelas lágrimas perdido,
Sonâmbulo dos trágicos flagelos,
É quem deixou para sempre esquecido
O mundo e os fúteis ouropéis mais belos!

É quem ficou do mundo redimido,
Expurgado dos vícios mais singelos,
E disse a tudo o adeus indefinido
E desprendeu-se dos carnais anelos!

É quem entrou por todas as batalhas
As mãos e os pés e o flanco ensangüentado,
Amortalhado em todas as mortalhas.

Quem florestas e mares foi rasgando
E entre raios, pedradas e metralhas,
Ficou gemendo mas ficou sonhando!


*Cruz e Sousa*
Em “Últimos Sonetos de Cruz e Sousa”, Forianópolis-Rio de Janeiro, 
Editora da UFSC/Co-edição Fundação Casa de Rui Barbosa, 3ª Edição Revista, 1997.

domingo, 16 de julho de 2017

PARA MANUEL BANDEIRA

Penso-te
como quem sonha uma estrela
que inventou na madrugada
e no desejo de guardá-la
viva.

Penso-te
como o claro silêncio permanente
da neve,
como a branca surpresa
de uma flor nascente.

Meu pensamento ama-te.


*Zila Mamede*
Em “Navegos (Poesia reunida, 1953-1978)”, Belo Horizonte, Editora Vega S.A, 1ª Edição, 1978.
Quintanares

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares,
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.


*Manuel Bandeira*
Em “MÁRIO QUINTANA 80 ANOS DE POESIA”, Organizada por Tânia Carvalhal, 
 Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 1986.
Deixa-me seguir para o mar

Tenta esquecer-me… Ser lembrado é como
evocar Um fantasma… Deixa-me ser
o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo…

Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão a mim as crianças banhar-se…

Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir… é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho…
Deixa-me fluir, passar, cantar…

Toda a tristeza dos rios
é não poder parar!


*Mario Quintana*
Em “Baú de espantos”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

sábado, 15 de julho de 2017

Por entre os sons da música

Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.


*Vergílio Ferreira*
Em “Conta-Corrente 1”, Lisboa, Bertrand Editora, 1ª Edição, 1982.
Trajetória Poética do Ser

Passeio 15

De delicadezas me construo. Trabalho umas rendas
Uma casa de seda para uns olhos duros.
Pudesse livrar-me da maior espiral
Que me circunda e onde sem querer me reconstruo!
Livrar-me de todo olhar que quando espreita, sofre
O grande desconforto de ver além dos outros.
Tenho tido esse olhar. E uma treva de dor
Perpetuamente.
Do êxodo dos pássaros, do mais triste dos cães,
De uns rios pequenos morrendo sobre um leito exausto.

Livrar-me de mim mesma. E que para mim construam
Aquelas delicadezas, umas rendas, uma casa de seda
Para meus olhos duros.


*Hilda Hilst*
Em “Uma superfície de gelo ancorada no riso: antologia de Hilda Hilst”,
 São Paulo, Editora Globo, 1ª Edição, 2012.
Beber toda a ternura

Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces.


*Mia Couto*
Em “Raiz de Orvalho e outros poemas”, Lisboa, Editorial Caminho, 1ª Edição, 1999.
Amei-te sem saberes

No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas

a espera do silêncio.


*Mia Couto*
Em “Raiz de Orvalho e outros poemas”, Lisboa, Editorial Caminho, 1ª Edição, 1999.
Poema de despedida

Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
Escrevo.


*Mia Couto*
Em “Raiz de Orvalho e outros poemas”, Lisboa, Editorial Caminho, 1ª Edição, 1999.
Epitáfio da Navegadora

                                    A Gastón Figueira

Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;

e que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,

ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;

essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa

em sua face iluminada,
dize: ‘Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,

mas seu nome, de barca e estrela,
foi: SERENA DESESPERADA’.


*Cecília Meireles*
Em “VIAGEM - VAGA MÚSICA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.
Solilóquio

Talvez os imensos limites da pátria me lembrem os puros
E amargue em meu coração a descrença.
Sinto-me tão cansado de sofrer, tão cansado! - algum dia, em alguma parte
Hei de lançar também as âncoras das promessas
Mas no meu coração intranqüilo não há senão fome e sede
De lembranças inexistentes.

O que resta da grande paisagem de pensamentos vividos
Dize, minha alma, senão o vazio?
São verdades as lágrimas, os estremecimentos, os tédios longos
As caminhadas infinitas no oco da eterna voz que te obriga?
E no entanto o que crê em ti não tem o teu amor aprisionado
Escravo de fruições efêmeras...

Ah, será para sempre assim... o beijo pouco do tempo
Na face presa da eternidade
E em todos os momentos a sensação pobre de estar vivendo
E ter em si somente o que não pode ser vivido
E em todos os momentos a beleza, e apenas
Num só momento a prece...

Nunca me sorrirão vozes infantis no corpo, e quem sabe por tê-las
Muito ardentemente desejado...
Talvez os limites da pátria me lembrem os puros e enlouqueça
Em mim o que não foi da carne conquistado.
Muitas vezes hei de me dizer que não sou senão juventude
No seio do pântano triste.

Quero-te, porém, vida, súplica! o medo de mim mesmo
Não há na minha saudade.
É que dói não viver em amor e em renúncia
Quando o amor e a renúncia são terras dentro de mim
E uma vez mais me deitarei no frio, guia de luz perdido
Sem mistérios e sem sombra.

Bem viram os que temeram a minha angústia e as que se disseram:
- Ele perdeu-se no mar!
No mar estou perdido, sem céu e sem terra e sem sede de água
E nada senão minha carne resiste aos apelos do ermo...
O que restará de ti, homem triste, que não seja a tua tristeza
Fruto sobre a terra morta...

Não pensar, talvez... Caminhar ciliciando a carne
Sobre o corpo macerado da vida
Ser um milhão na mesma cidade desabitada
E sendo apenas um, ir acordando o amor e a angústia
E da inquietação vinda e multiplicada, arrancar um riso sem força
Sobre as paisagens inúteis.

Mas, oh, saber... - saber até o fundo do conhecimento
Sobre as aves e os lírios!
Saber a pureza bailando o pensamento como um gênio perfeito
E na alma os cantos límpidos e os vôos de uma poesia!
E nada poder, nada, senão ir e vir como a sombra do condenado
Pelo silêncio em escuta...

E não sou um covarde... - sofro pelas manhãs e pelas tardes
E pelas noites desvaneço...
No entanto, é covarde que me sinto no olhar dos que me amam
E no prazer que arranco cem vezes da carne ou do espírito que quero
Ai de mim, tão grande, tão pequeno... - e quando o digo intimamente!
E em ambos, sem pânico...

E me pergunto: Serei vazio de amor como os ciprestes
No seio da ventania?
Serei vazio de serenidade como as águas no seio do abismo
Ou como as parasitas no seio da mata serei vazio de humildade?
Ou serei o amor eu mesmo e a calma e a humildade eu mesmo
No seio do infinito vazio?

E me pergunto: O que é o perigo, onde a sua fascinação profunda
E o gosto ardente de morrer?
Não é a morte o meu voto murmurante
Que caminha comigo pelas estradas e adormece no meu leito?
O que é morrer senão viver placidamente
Na imutável espera?

Nada respondo - nada responde o desespero
Solidão sem desvario.
Mas resta, resta a ânsia das palavras murmuradas ao vento
E a emoção das visões vividas no seu melhor momento
Resta a posse longínqua e em eterna lembrança
Da imagem única.

Resta?... Já me disse blasfêmias no âmago do prazer sentido
Sobre o corpo nu da mulher
Já arranquei de mim mesmo o sumo da sabedoria
Para fazê-lo vibrar dolorosamente à minha vontade
E no entanto... posso me glorificar de ter sido forte
Contra o que sempre foi?

Hão de ir todos, todos, para as celebrações e para os ritos
Ficarei em casa, sem lar
Hei de ouvir as vozes dos amantes que não se entediam
E dos amigos que não se amam e não lutam
As portas abertas, à espera dos passos do retardatário
Não receberei ninguém.

Talvez nos imensos limites da pátria estejam os puros
E apenas em mim o ilimitado...
Mas oh, cerrar os olhos, dormir, dormir longe de tudo
Longe mesmo do amor longe de mim!
E enquanto se vão todos, heróicos, santos, sem mentira ou sem verdade
Ficar, sem perseverança...


*Vinicius de Moraes*
 

Em “NOVOS POEMAS”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1ª Edição, 1938.