quinta-feira, 24 de setembro de 2015

SILÊNCIO

                                              Il s'en plaignit, il en parla:
                                                               J'en connais de plus misérables!
                                                             JOB, Benserade.


Cala. Qualquer que seja esse tormento
que te lacera o coração transido,
guarda-o dentro de ti, sem um gemido,
sem um gemido, sem um só lamento!

Por mais que doa e sangre o ferimento,
não mostres a ninguém, compadecido,
a tua dor, o teu amor traído:
não prostituas o teu sofrimento!

Pranto ou Palavra − em nada disso cabe
todo o amargor de um coração enfermo
profundamente vilipendiado.

Nada é tão nobre como ver quem sabe,
trancado dentro de uma dor sem termo,
mágoas terríveis suportar calado!


*Medeiros e Albuquerque*
Em “CANÇÕES DA DECADÊNCIA e outros poemas”, São Paulo, 
Editora WMF Martins Fontes, 1ª Edição, 2003, pág. 153.
Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas,
Ao longe, no horizonte, amontoadas;

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão, e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.


*Antero de Quental*
Em “Poemas de Amor – Antologia de Poesia Portuguesa”, Lisboa, 
Editora Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2001.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Argila

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...


*Raul de Leoni*

Em “Luz Mediterrânea”, Rio de Janeiro, Editora Viana & Mosley, 1ª Edição, 2002.
Oblíquo Setembro de equinócio tarde
Que se alonga e depara e vê e mira
Tarde que habita o estar do seu parado
Sol de Sul pelo sal detido

Assim o estar aqui e o haver sido
Quase a mesma que sou no tão perdido
Morar aberto de um Setembro antigo
Com o mar desse morar em meu ouvido

Pura paixão que não conhece olvido


*Sophia de Mello Breyner Andresen*
Em “Antologia MAR”, Lisboa, Editorial Caminho, 4ª Edição, 2002.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.


*Fernando Pessoa*
Em “Cancioneiro – Obra Poética V”, São Paulo, L&PM POCKET Editores, 1ª Edição, 2007.

domingo, 13 de setembro de 2015

NÓS

Eu e tu: a existência repartida
por duas almas; duas almas numa
só existência. Tu e eu: a vida
de duas vidas que uma só resuma.

Vida de dois, em cada uma vivida,
vida de um só vivida em dois, em suma:
a essência unida à essência, sem que alguma
perca o ser una, sendo à outra unida.

Duplo egoísmo altruísta, a cujo enleio
no próprio coração cada qual sente
a chama que em si nutre o incêndio alheio.

O mistério do amor onipotente,
que eternamente eu viva no teu seio,
e vivas no meu seio eternamente.


*Silva Ramos*
Em “Livro dos Poemas - uma antologia de poetas brasileiros e portugueses”, 
Porto Alegre, Editora L&PM Editores, 1ª Edição, 2009.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Vesperal

E, contudo, é bonito
O entardecer.
A luz poente cai do céu vazio
Sobre o tecto macio
Da ramagem
E fica derramada em cada folha.
Imóvel, a paisagem
Parece adormecida
Nos olhos de quem olha.
A brisa leva o tempo
Sem destino.
E o rumor citadino
Ondula nos ouvidos
Distraídos
Dos que vão pelas ruas caminhando
Devagar
E como que sonhando,
Sem sonhar…


*Miguel Torga*
Em “Diário XIV”, Coimbra, Coimbra Editora, 1ª Edição, 1987.
Silenciosamente

Seguimos assim, juntos, felizes,
Juntos, felizes, pela vida a fora...
− Tu, no silêncio em que mais coisas dizes!
− Eu, no silêncio em que me encontro agora!

Meu passo há de seguir por onde pises!
E a tua mão, que em minha mão demora,
há de, com o tempo, até criar raízes,
unindo vida a vida, hora por hora...

Seguiremos assim, como bem poucos,
bendizendo na nossa trajetória
os que souberam como nós ser loucos...

Loucos de amor, ébrios de amor - seguindo
para um mundo de sonhos, para a glória
do silêncio que vamos repartindo!


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “Os mais belos poemas que o amor inspirou”, São Paulo, 

Editora Theor S/A.,  1ª Edição, Vol. I, 1965.
Vesperal

Tardes de ouro para harpas dedilhadas
Por sacras solenidades
De catedrais em pompa, iluminadas
Com rituais majestades.

Tardes para quebrantos e surdinas
E salmos virgens e cantos
De vozes celestiais, de vozes finas
De surdinas e quebrantos...

Quando através de altas vidraçarias
De estilos góticos, graves,
O sol, no poente, abre tapeçarias,
Resplandecendo nas naves...

Tardes augustas, bíblicas, serenas,
Com silêncio de ascetérios
E aromas leves, castos, de açucenas
Nos claros ares sidéreos...

Tardes de campos repousados, quietos,
Nos longes emocionantes...
De rebanhos saudosos, de secretos
Desejos vagos, errantes...

Ó Tardes de Beethoven, de sonatas,
De um sentimento aéreo e velho...
Tardes da antiga limpidez das pratas,
De Epístolas do Evangelho!...


*Cruz e Sousa*
Em “CRUZ E SOUSA: OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A., 
Reimpressão atualizada da primeira edição, 1995, págs. 80/81.

domingo, 6 de setembro de 2015

A Canção de Maria

Que é de ti, melancolia?...
Onde estais, cuidados meus?...
Sabeis que a minha alegria
É tôda vinda de Deus...

Deitei-me triste e sombria,
E amanheci como estou...
Tão contente! Todavia
Minha vida não mudou.
Acaso enquanto dormia
Esquecida de meus ais,

Um sonho bom me envolvia?
Se foi, não me lembro mais...
Mas se foi sonho, devia
Ser bom demais para mim...
Senão, não me sentiria
Tão maravilhada assim.

Ó minha linda alegria,
Trégua dos cuidados meus,
Por que não vens todo dia,
Se é toda vinda de Deus?


*Manuel Bandeira*
Em “ESTRÊLA DA VIDA INTEIRA - POESIAS REUNIDAS”, Rio de Janeiro, 
Livraria José Olympio Editora, 7ª Edição, 1979.
FANTASMAS DO AMOR

Se perceberes que há alguns fantasmas
no véu do quarto escuro de teu coração
não grita e não acende a luz nem chora.

Sustenta essa frieza que é da tua calma
porque os vultos são teus pensamentos
procurando no escuro pela minha alma.

E se sentires de manhã os passarinhos
em larga evolução de cânticos de amor
no ouvido das anêmonas de teu jardim,

não os espantes e não perde tua calma
eis pois sou eu cantando para tua alma
que a saudade deixou dentro de mim...


*Afonso Estebanez*

 Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2009/05/fantasmas-do-amor.html
Δάφνη

Ah, se tu não podes ser amante
e de mim não podes ser mulher
nem o eterno cântico da amada,
sejas tu ao menos meu instante
de viver do encanto se eu puder
não viver sem precisar de nada.

Ai de mim, essa árvore sagrada
carregada de meus desenganos
sonhos falsos que eu até desejo
com a alma tão só desobrigada:
viver só o amor de muitos anos
vividos do veneno de teu beijo!

Ah, do amor ferido com doçura
feliz sensação é um não ter fim
a demência em fase de ternura
que dói e me cura e fica assim.
Ai de mim!...


*Afonso Estebanez*

Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2009_03_18_archive.html
SÉTIMA ROSA DE SAROM

Minha sétima rosa é a última que a vida
fez a memória do deserto deslembrada
que neste mundo toda flor é concebida
para lembrar de uma verdade revelada.

A verdade da rosa é a aurora resumida
em primavera do deserto sem ter nada
eis que do nada cada rosa é presumida
como uma dádiva profana consagrada.

E Deus é pompa pela tua circunstância
de ser amada por candura e tolerância
por esse meu amor oculto de aprendiz.

Mas a sétima rosa induz-me o coração
a reduzir todo esse amor numa paixão
que faz de mim o teu amado mais feliz.


*Afonso Estebanez*

 Extrai daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/2010/09/setima-rosa-de-sarom.html
Espera…

Se tivesse mandado uma palavra: – ‘espera!’
Sem mais nada, nem mesmo explicar até quando,
eu teria ficado até hoje esperando…
– era a eterna ilusão de que fosses sincera…

Que importa a vida, o Sol, a primavera,
se eras a vida, o Sol, a flor desabrochando?
Se tivesses mandado uma palavra: – ‘espera!’
eu teria ficado até hoje esperando…

Não mandaste, tu nada disseste, e eu segui
sem saber que fazer da vida que era tua
procurando com o mundo esquecer-me de ti…

E afinal o destino, irônico e mordaz,
ontem, fez-me cruzar com o teu olhar na rua,
ouvir dizer-te: – ‘espera!…’ E ser tarde demais…


*J. G. de Araújo Jorge*
Em “Festa de Imagens”, Rio de Janeiro, Editora Vecchi Ltda., 2ª Edição, 1954.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Debaixo das Oliveiras

Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.

O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.

Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.

O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.

Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.

Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas. Palavras
e folhas
de uma vida.

O mês em que a mulher
tocou meus ombros com sua graça
e me deu a beber
a água pura do seu poço.
Este foi o mês em que o filho
derramou dentro de mim
o orvalho e o sol
de sua manhã.

O mês em que cantei
como quem de si se perde e reencontra
nas coisas novamente nomeadas.

Este foi o mês em que atravessei montanhas
e cheguei a um lugar onde as palavras
escorriam leite e mel.
MILAGRE MILAGRE gritaram dentro de mim
as aves todas da floresta.

Então reparei que era o lugar do poema
o lugar santo onde cantei
entre mulher e o filho
como quem dá graças.

Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.


*Manuel Alegre*
Em “Manuel Alegre – Poesia” (2 Volumes, Obra Poética Completa), 
Coimbra, Editora Publicações Dom Quixote, 1ª Edição, 2009.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Sol poente

Tardinha... ‘Ave-Maria, Mãe de Deus...’
E reza a voz dos sinos e das noras...
O sol que morre tem clarões d'auroras,
Águia que bate as azas pelos céus!

Horas que tem a côr dos olhos teus...
Horas evocadoras d’outras horas...
Lembranças de fantásticos outroras,
De sonhos que não tenho e que eram meus!

Horas em que as saudades, p'las estradas,
Inclinam as cabeças mart'risadas
E ficam pensativas... meditando...

Morrem verbenas silenciosamente...
E o rubro sol da tua bôca ardente
Vai-me a pálida bôca desfolhando...”


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade, Charneca em Flor, Reliquiae”, 
Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 6ª Edição, 1944.