sábado, 31 de dezembro de 2016

Aos que visitaram este espaço ao longo de 2016, desejo que o ano de 2017 traga a todos o melhor da humanidade, muita fraternidade, saúde, paz, amor, amizade, prosperidade, alegrias e verdade! Tintim!...
No Breve Número

No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
O moribundo passo.


*Ricardo Reis (pseudônimo de Fernando Pessoa)*
Em “ODES de RICARDO REIS”, Lisboa, Edições Ática, 1ª Edição, 1946.
POR ESTE ANOITECER… 

Por este anoitecer, o ano acaba.
Cinzento e azul no céu por entre as árvores,
acaba o calendário. Muitos crimes dele
serão futuras efemérides nos outros
que, folha a folha, acabarão também.

Como anoitece igual este ano às noites
com que, dia por dia, o ano foi passando
gregorianamente. O mundo ocidental,
cesáreo, atlântico, ex-mediterrânico,
conta do Cristo. Mas os outros mundos

também contarão dele, quando este ocidente
deixar de fingir dele − os deuses morrem −
para funções de calendário laico.
O tempo passa, os calendários mudam,
na vida e morte as horas se sepultam.

E, no entanto, o tempo vai conosco;
é desta Terra só, e só por haver outros
que de outros astros são por haver este
diverso tanto a cada movimento.
Por este anoitecer, o ano acaba.


*Jorge de Sena*
Em “40 ANOS DE SERVIDÃO”, Lisboa, 
(Círculo de Poesia) Moraes Editores, 2ª Edição Revista, 1978.
Tempo

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano
se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,
com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui para adiante vai ser diferente.

Para você, desejo o sonho realizado.
O amor esperado. A esperança renovada.
Para você, desejo todas as cores desta vida.
Todas as alegrias que puderem sorrir.
Todas as músicas que puderem emocionar.

Para você, neste novo ano,
desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
que sua família seja mais unida,
que sua vida seja mais bem vivida.

Gostaria de lhe desejar tantas coisas...
Mas nada seria suficiente…
Então, desejo apenas que você tenha muitos desejos.
Desejos grandes...
E que eles possam movê-lo a cada minuto,
no rumo da sua felicidade!


*Desconheço a autoria*
[Texto erroneamente atribuído a Mario Quintana e/ou Carlos Drummond de Andrade]

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Quatro anos de derramamentos líricos!...

Que este espaço possa ter muitos outros anos 
de belos poemas e inspirações da mais sublime lira!

domingo, 25 de dezembro de 2016

Poema De Natal

− Sino, claro sino,
tocas para quem?
− Para o Deus menino
que de longe vem.

− Pois se o encontrares
traze-o ao meu amor.
− E que lhe ofereces,
velho pecador?

− Minha fé cansada,
meu vinho, meu pão,
meu silêncio limpo,
minha solidão.


*Carlos Pena Filho*
Em “Livro Geral”, Recife, Gráfica e Editora Liceu, 1ª Edição, 1999.
Sinos de Natal

Sinos que bimbalhais dentro da noite, ó sinos
Que a vossa voz de bronze erguestes, em louvor
Desse amigo Jesus, que amou os pequeninos,
Que aos humanos legou o Evangelho do Amor!

Sinos que simbalhais! Olhai os desatinos
Deste mundo infeliz! Escutai o clamor
Dos que têm fome e frio e os seus tristes destinos
Açambarcados vêem pela miséria e a dor.

Sinos que badalais na noite que devia
Ser de ternura e paz, de encantamento e luz,
Calai-vos ou plangei, perante essa agonia.

Como plangeste quando aos braços de uma cruz
De espinhos coroado e ultrajado morria
O maior semeador do bem, que foi Jesus!


*Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein*
Poeta parnasiana brasileira, conhecida como “Colombina
Em “Versos em Lá menor”, São Paulo, São Editora Ltda., 1ª Edição, 1930.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Nota Introdutória
 
As fábulas constituem um alimento espiritual correspondente ao leite na primeira infância.
Por intermédio delas a moral, que não é outra coisa mais que a própria sabedoria da vida acumulada na consciência da humanidade, penetra na alma infante, conduzida pela loquacidade inventiva da imaginação.
Esta boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores, às águas e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde resulte a ‘moralidade’, isto é, a lição da vida.
O maravilhoso é o açúcar que disfarça o medicamento amargo e torna agradável a sua ingestão.


*Monteiro Lobato*
Em “Fábulas”, São Paulo, Editora Brasiliense, 50ª Edição, 1994.
Diálogo de D. Benta com os seus netos logo após a leitura da fábula “O Cão e o Lobo”:
 
[...]

Fez muito bem! – berrou Emília. Isso de coleira o diabo queira...
Narizinho bateu palmas.
– E não é que ela fez um versinho, vovó? ‘Isso de coleira, o diabo queira...’ Bonito, hein?...
– Bonito e certo – continuou Emília. Eu sou como esse lobo. Ninguém me segura. Ninguém me bota coleira. Ninguém me governa. Ninguém me...
– Chega de
mes, Emília. Vovó está com cara de querer falar sobre a liberdade.
– Talvez não preciso, minha filha. Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso.
– Nada mais  certo, vovó!  –  gritou Pedrinho. Este seu sítio é o suco da liberdade; e se eu fosse refazer a natureza, igualava o mundo a isto aqui.
Vida boa, vida certa, só no Picapau Amarelo.
– Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo!


*Monteiro Lobato*
Em “Fábulas”, São Paulo, Editora Brasiliense, 50ª Edição, 1994.
Senhor, eu não sou digno

Para que cantarei nas montanhas sem eco
As minhas louvações?
A tristeza de não poder atingir o infinito
Embargará de lágrimas a minha voz.
Para que entoarei o salmo harmonioso
Se tenho na alma um de-profundis?
Minha voz jamais será clara como a voz das crianças
Minha voz tem as inflexões dos brados de martírio
Minha voz enrouqueceu no desespero...
Para que cantarei
Se em vez de belos cânticos serenos
A solidão escutará gemidos?
Antes ir. Ir pelas montanhas sem eco
Pelas montanhas sem caminho
Onde a voz fraca não irá.
Antes ir - e abafar as louvações no peito
Ir vazio de cantos pela vida
Ir pelas montanhas sem eco e sem caminho, pelo silêncio
Como o silêncio que caminha...


*Vinicius de Moraes*
Em “O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA”, Rio de Janeiro, 
Editora Companhia Das Letras, 1ª Edição, 2008.

domingo, 4 de dezembro de 2016

O que se foi

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?


*Ferreira Gullar*

Em “Poesia Completa, Teatro e Prosa (Volume Único)”, São Paulo, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2008.
Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
− que é uma questão
de vida ou morte −
será arte?


*Ferreira Gullar*

Em “Poesia Completa, Teatro e Prosa (Volume Único)”, São Paulo, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2008.
Neste leito de ausência

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho − o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.


*Ferreira Gullar*

Em “Poesia Completa, Teatro e Prosa (Volume Único)”, São Paulo, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2008.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Ao Luar

Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira,
41ª Edição, 1997.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Amigo

Vamos conversar
Como dois velhos que se encontraram
no fim da caminhada.
Foi o mesmo nosso marco de partida.
Palmilhamos juntos a mesma estrada.

Eu era moça.
Sentia sem saber
seu cheiro de terra,
seu cheiro de mato,
seu cheiro de pastagens.

É que havia dentro de mim,
no fundo obscuro de meu ser
vivências e atavismo ancestrais:
fazendas, latifúndios,
engenhos e currais.

Mas... ai de mim!
Era moça da cidade.
Escrevia versos e era sofisticada.
Você teve medo. O medo que todo homem sente
da mulher letrada.

Não pressentiu, não adivinhou
aquela que o esperava
mesmo antes de nascer.

Indiferente
tomaste teu caminho
por estrada diferente.
Longo tempo o esperei
na encruzilhada,
depois... depois...
carreguei sozinha
a pedra do meu destino.

Hoje, no tarde da vida,
apenas,
uma suave e perdida relembrança.


*Cora Coralina*
Em “Meu Livro de Cordel”, São Paulo, Editora Global, 5ª Edição, 1987.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Um mover d’olhos brando e piadoso

Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um desejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo gracioso;

Um escolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES - OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.

domingo, 20 de novembro de 2016

Noite de saudade

A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão esscura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!


*Florbela Espanca*
Em “POESIA DE FLORBELA ESPANCA: TROCANDO OLHARES, LIVRO DELE E
LIVRO DAS MÁGOAS
”, São Paulo, Editora L&Pm Editores, 1ª Edição, 2002.
Viração

Voa um par de andorinhas, fazendo verão.
E vem uma vontade de rasgar velhas cartas,
velhos poemas, velhas contas recebidas.
Vontade de mudar de camisa,
por fora e por dentro... vontade...
Para quê esse pudor de certas palavras?...
Vontade de amar, simplesmente.


*Mario Quintana*
Em “Sapato Florido”, São Paulo, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.
Retrato em luar

Meus olhos ficam neste parque,
minhas mãos no musgo dos muros,
para o que um dia vier buscar-me,
entre pensamentos futuros.

Não quero pronunciar teu nome,
que a voz é o apelido do vento,
e os graus da esfera me consomem
toda, no mais simples momento.

São mais duráveis a hera, as malvas,
que a minha face deste instante.
Mas posso deixá-la em palavras,
gravada num tempo constante.

Nunca tive os olhos tão claros
e o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às arvores:
solitária, perfeita e pura.

Aqui estão meus olhos nas flores,
meus braços ao longo dos ramos:
e, no vago rumor das fontes,
uma voz de amor que sonhamos.


*Cecília Meireles*
Em “Retrato natural”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.
Cartas de meu avô

A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.

A paixão, medrosa dantes
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme…
A dor… a visão da morte…
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu…
Do meu – fruto sem cuidado
Que, ainda verde, apodreceu.

O meu semblante está enxuto
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças…

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.


*Manuel Bandeira*
Em “A Cinza das Horas”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2010.
Milagre

É nestas noites sossegadas,
Em que o luar aponta, e a fina,
Móbil e trêmula cortina
Rompe das nuvens espalhadas;

Em que no azul espaço, vago,
Cindindo o céu, o alado bando,
Vai das estrelas caminhando
Aves de prata à flor de um lago;

E nestas noites − que, perdida,
Louca de amor, minh'alma voa
Para teu lado, e te abençoa,
Ó minha aurora! ó minha vida!

No horrendo pântano profundo
Em que vivemos, és o cisne
Que o cruza, sem que a alvura tisne
Da asa no limo infecto e imundo.

Anjo exilado das risonhas
Regiões sagradas das alturas,
Que passas puro, entre as impuras
Humanas cóleras medonhas!

Estrela de ouro calma e bela,
Que, abrindo a lúcida pupila,
Brilhas assim clara e tranqüila
Nas torvas nuvens da procela!

Raio de sol dourando a esfera
Entre as neblinas deste inverno,
E nas regiões do gelo eterno
Fazendo rir a primavera!

Lírio de pétalas formosas,
Erguendo à luz o níveo seio,
Entre estes cardos, e no meio
Destas eufórbias venenosas!

Oásis verde no deserto!
Pássaro voando descuidado
Por sobre um solo ensangüentado
E de cadáveres coberto!

Eu que homem sou, eu que a miséria
Dos homens tenho, − eu, verme obscuro,
Amei-te, flor! e, lodo impuro,
Tentei roubar-te a luz sidérea...

Vaidade insana! Amar ao dia
A treva horrenda que negreja!
Pedir a serpe, que rasteja,
Amor à nuvem fugidia!

Insano amor! vaidade insana!
Unir num beijo o aroma à peste!
Vazar, num jorro, a luz celeste
Na escuridão da noite humana!

Mas, ah! quiseste a ponta da asa,
Da pluma trêmula de neve
Descer a mim, roçar de leve
A superfície desta vasa...

E tanto pôde essa piedade,
E tanto pôde o amor, que o lodo
Agora é céu, é flores todo,
E a noite escura é claridade!


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Sarças de Fogo)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

domingo, 6 de novembro de 2016

Soneto II

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


*Mário Faustino*
Em “Poesia Completa/Poesia Traduzida (Organização, introdução e notas de Benedito Nunes)”, 
São Paulo, Editora Max Limonad, 1ª Edição, 1985.
Soneto do desmantelo azul

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir de nós o azul ausente
e aprisionar o azul nas coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos no azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul: azul.


*Carlos Pena Filho*
Em “Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho”, São Paulo, 
Editora Global, 4ª Edição, 2000.

sábado, 5 de novembro de 2016

Fragmentos...

LXVII

Vida da minha alma:
Um dia nossas sombras
Serão lagos, águas
Beirando antiqüíssimos telhados.
De argila e luz
Fosforescentes, magos,
Um tempo no depois
Seremos um só corpo adolescente.
Eu estarei em ti
Transfixiada. Em mim
Teu corpo. Duas almas
Nômades, perenes
Texturadas de mútua sedução.


*Hilda Hilst*
Em “CANTARES DE PERDA E PREDILEÇÃO”, São Paulo, MASSAO OHNO - 
M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1983.
Cantares

I

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.


[...]

IX

[...]

Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.


*Hilda Hilst*
Em “CANTARES DO SEM NOME E DE PARTIDAS”, São Paulo, MASSAO OHNO -
 M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1995.
O coração

O coração é o colibri dourado
das veigas puras do jardim do céu.
Um − tem o mel da granadilha agreste,
bebe os perfumes, que a bonina deu.

O outro – voa em mais virentes balças,
pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel − a que se chama − crenças −,
Vive do aroma − que se diz − amor.


*Castro Alves*
Em “ESPUMAS FLUTUANTES”, São Paulo, Editora Melhoramentos, 1ª Edição, 2012.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A morte

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro, 

Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

“Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!”

Pátria

Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde
Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho!
E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde,
E subo do teu cerne ao céu de galho em galho!

Dos teus líquens, dos teus cipós, da tua fronde,
Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,
Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,
De ti, − rebento em luz e em cânticos me espalho!

Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias felizes,
No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto!
E eu, morto, − sendo tu cheia de cicatrizes,

Tu golpeada e insultada, − eu tremerei sepulto:
E os meus ossos no chão, como as tuas raízes,
Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!


*Olavo Bilac*
Em “Poesias”, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 27ª Edição, 1961.

domingo, 7 de agosto de 2016

Oração da Noite

Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, − embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...

Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!

Que o sonho deite bênçãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.

Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!...


*Cecília Meireles*
Em “Nunca Mais... e Poemas dos Poemas”, São Paulo, Editora Global, 2ª Edição, 2015.
Fio

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

− Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?


*Cecília Meireles*
Em “Viagem – Vaga Música”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.
Os meus versos

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...


*Florbela Espanca*

 Em “SONETOS COMPLETOS − Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.
Saber ler na vida
   
Saber ler na vida – folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito,
Iluminada inocência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada
Ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.


*Matilde Rosa Araújo*
Em “Voz Nua”, Lisboa, Editora Livros Horizonte, 1ª Edição, 1986.
Soneto

Desejo de sentir o que ora não penso
ou o que penso; e o que penso é não vivido.
A alma retrai-se; o espírito suspenso,
detém-se: é fio irreal interrompido.

Há um ímpeto de fuga que não venço.
Extrai-o de mim mesmo; é sem sentido.
E assim pairo, sonâmbulo, no imenso
campo que fica entre a presença e o olvido.

Como entender o que nem foi vazado
em forma signo ou luz? Como e por que ando
perto e longe de mim que ardo ao meu lado?

Como esquecer que o próprio esquecimento
do que em mim se rebela e está sonhando
rói a sede de ser em que me invento.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.
Soneto

Esquecida no tempo a alma procura
algo que já não é porque era tanto.
Onde amor se desfez, se ainda perdura
a luz que nos mandava e se fez pranto.

Algo torna a vibrar, algo que a pura
força de ser revela o próprio encanto,
luz que à noite mais cega, mais se apura,
trêmula voz transfigurada em canto.

Voltam fluídas lembranças à retina,
cálidas formas, luzes de extramundo...
e a vontade de amar que amar ensina.

A mente, não, mas a alma há de deter
no que tem de mais límpido e profundo
e embora fugaz vive do eterno.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.
Eu no tempo

Meu espírito caminha irreversivelmente
para a irrealidade de tudo.
O universo pára, de repente,
à espera de minha infância.
Tudo repousa em seu lugar.
O tempo, no relógio.
O silêncio, na pedra.
Jogo as máscaras fora e me identifico
comigo que me esperava há séculos.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.

domingo, 24 de julho de 2016

Plenitude

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.

A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas…
Arde-me na garganta… E nas artérias sinto
O bálsamo aromado e quente das resinas
Que vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estua
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas,
E eu absorvo-o nos sons, na glória da luz crua
E ouço-o ardente bater dentro em minhas entranhas

Tenho êxtase de santo… Ânsias para a virtude…
Canta em minh´alma absorta um mundo de harmonias.
Vêm-me audácias de herói… Sonho o que jamais pude
− Belo como Davi, forte como Golias…

E neste curto instante em que todo me exalto
De tudo o que não sou, gozo tudo o que invejo,
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto
Nem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem de vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida…
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida!


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas”, São Paulo, Editora Global, 3ª Edição, 2013.
Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus − ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


*Manuel Bandeira*
Em “ESTRELA DA VIDA INTEIRA – poesias reunidas”, Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1989.
Amor

                                      Quand la mort est si belle,
                                                 Il est doux de mourir.
                                                 V. HUGO


Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábio beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlêvo do seio teu!
Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!


*Álvares de Azevedo*
Em “Poesias Completas”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1996.

domingo, 17 de julho de 2016

Ave! Maria!

A noite desce − lentas e tristes
Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se as aves, choram os ventos,
Dizem os gênios: − Ave! Maria!

Na torre estreita de pobre templo
Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vesper desponta,
Cantam os anjos: − Ave! Maria!

No tosco alvergue de seus maiores,
Onde só reinam paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: − Ave! Maria!

E, longe, longe, na velha estrada,
Pára e saudades à pátria envia
Romeiro exausto que o céu contempla,
E fala aos ermos: − Ave! Maria!

Incerto nauta por feios mares,
Onde se estende névoa sombria,
Se encosta ao mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho: − Ave! Maria!

Nas soledades, sem pão nem água,
Sem pouso e tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: − Ave! Maria!

Só nas alcovas, nas salas dúbias,
Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: − Ave! Maria!

Ave! Maria! − No céu, na terra!
Luz da aliança! Doce harmonia!
Hora divina! Sublime estância!
Bendita sejas! − Ave! Maria!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Vida de flor

Por que vergas-me a fronte sobre a terra?
Diz a flor da colina ao manso vento,
Se apenas às manhãs o doce orvalho
Hei gozado um momento?

Tímida ainda, nas folhagens verdes
Abro a corola à quietação das noites,
Ergo-me bela, me rebaixas triste
Com teus feros açoites!

Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,
Vicejar das estrelas à magia,
Que minha vida pálida se encerra
No espaço de um só dia!

Mas o vento agitava sem piedade
A fronte virgem da cheirosa flor,
Que pouco a pouco se tingia, triste,
De mórbido palor.

Não vês, oh brisa? lacerada, murcha,
Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,
E em breve tempo esfolharei já morta
Sem chegar ao verão?

Tem piedade de mim! Deixa-me ao menos
Desfrutar um momento de prazer,
Pois que é meu fado despontar na aurora
E ao crepúsculo morrer!...

Brutal amante não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas dores atenção prestou,
E a flor mimosa, retraindo as pétalas,
Na tige se inclinou.
Surgiu na aurora, não chegou à tarde,
Teve um momento de existência só!
A noite veio, procurou por ela,
Mas a encontrou no pó.

Ouviste, oh virgem, a legenda triste
Da flor do outeiro e seu funesto fim?
Irmã das flores à mulher, às vezes
Também sucede assim.


*Fagundes Varela*   
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Tristeza

Minh’alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada,
Pelas espumas banhada,
Dos mares na solidão.

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!

Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias;
A vertigem me tortura!...
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!

Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez,
Tudo, tudo vai passando...
Mas eu pergunto chorando:
Quando virá minha vez?

Vem, oh virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada
De cipreste funerário,
Vem! oh! quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!

Vem, oh morte!A turba imunda
Em sua miséria profunda
Te odeia, te calunia...
− Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.

Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel,
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!

Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!

Oh! quantas louras crianças
Coroadas de esperanças
Descem da campa à friez!...
Os vivos vão repousando;
Mas eu pergunto chorando:
− Quando virá minha vez?

Minh’alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão.
É como a praia que alveja,
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Tristeza

Eu amo a noite com seu manto escuro
De tristes goivos coroada a fronte
Amo a neblina que pairando ondeia
Sobre o fastígio de elevado monte.

Amo nas plantas, que na tumba crescem,
De errante brisa o funeral cicio:
Porque minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.

Amo a desoras sob um céu de chumbo,
No cemitério de sombria serra,
O fogo-fátuo que a tremer doideja
Das sepulturas na revolta terra.
Amo ao silêncio do ervaçal partido
De ave noturna o funerário pio,
Porque minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.

Amo do templo, nas soberbas naves,
De tristes salmos o troar profundo;
Amo a torrente que na rocha espuma
E vai do abismo repousar no fundo.

Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
A voz da morte no fatal parcel,
Porque minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abrevou de fel.

Amo o corisco que deixando a nuvem
O cedro parte da montanha, erguido,
Amo do sino, que por morto soa,
O triste dobre na amplidão perdido.

Amo na vida de miséria e lodo,
Das desventuras o maldito seio,
Porque minh’alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio se cobriu de gelo.

Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas negras sacudindo o estrago;
Amo as metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as tribos em sangrento lago.

Amo do nauta o doloroso grito
Em frágil prancha sobre mar de horrores,
Porque meu seio se tornou de pedra,
Porque minha’alma descorou de dores.

O céu de anil, a viração fagueira,
O lago azul que os passarinhos beijam,
A pobre choça do pastor no vale,
Chorosas flores que ao sertão vicejam,

A paz, o amor, a quietação e o riso
A meus olhares não têm mais encanto,
Porque minh’alma se despiu de crenças,
E do sarcasmo se embuçou no manto.


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Estâncias

O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mistérios,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios,
Onde perpétua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os vales
Por entre as pompas festivais da aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto,
Perante o qual o marmor descorara,
E ao contemplar a esplêndida harmonia,
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo,
Mais belo que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asilo,
Aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo duma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem.

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingênuos de teus olhos,
Onde celestes gozos transparecem!…

Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me o pensar além dos mundos,
Quando, abaixando as pálpebras, te calas,

E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso em aras santas,
E das turbas solícitas no meio
Também contrito hei-te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas
Cercam-te as faces plácidas e belas;
Um longo manto pende-te dos ombros
Salpicado de nítidas estrelas!

Na doida pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente…
Mas ao mirar-te, deslumbrou-me o raio…
Tinhas nos olhos o perdão somente!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Juvenília 

[...]

VII

Ah! Quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz do teu olhar,
E no mar de tu´alma afogo a minha
E escuto-te a falar;

Quando bebo no teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas,
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,

Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo,
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!

Oh! Eu te adoro como adoro a noite
Por alto mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refegas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas,
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas
As redes dos selvagens!

Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira dos mundos que prateia
A abóbada sem termos!...

Como tudo que é vasto, eterno e belo;
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito!


[...]

*Fagundes Varela*
Em 
Poesias Completas de Fagundes Varela, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.

domingo, 10 de julho de 2016

Esta velha angústia

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer −
Júpiter, Jeová, a Humanidade −
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!


*Álvaro de Campos (Heterônimo de Fernando Pessoa)*
Em “POESIA”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2002.

domingo, 26 de junho de 2016

Procuro urgentemente um coração.
Que além de ser humano, seja gente.
Que antes de ser adulto, seja criança.
Que tendo vontade de chorar, chore e ria...
Que traga alegria e fé para minha alma
E lutando ao meu lado seja um leão...
Mas que seja vibração e loucura me amando.
Que tenha um sorriso acolhedor...


[...]

Aceita doar-me esse teu coração
?”

*Desconheço a autoria*

domingo, 19 de junho de 2016

A Idade de Ser Feliz

Existe somente uma idade para a gente ser feliz
somente uma época na vida de cada pessoa,
em que é possível sonhar e fazer planos
e ter energia bastante para realizá-los,
a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.

Uma só idade para a gente se encantar com a vida
e viver apaixonadamente com o entusiasmo dos amantes
e a coragem  dos aventureiros.

Fase dourada em que podemos criar e recriar a vida
à imagem e semelhança dos nossos desejos,
e sorrir, cantar, dançar e vestir-se com todas as cores,
experimentar todos os sabores, desfrutar de tudo com toda a
intensidade, sem preconceito nem pudor.

Tempo em que cada limitação humana é só um convite ao crescimento,
um desafio a lutar com toda a energia e a tentar algo novo,
de novo e de novo e quantas vezes for preciso.

Essa idade, tão especial e tão única, chama-se Presente,
e tem apenas a duração do instante que passa...
...doce pássaro do aqui e agora,
que quando se dá por ele, já partiu para nunca mais!

*Geraldo Eustáquio de Souza (Letícia Lanz)*
Em “A Idade de Ser Feliz”, Belo Horizonte, Editora Companhia Paracrescer, 2004.

domingo, 5 de junho de 2016

VIGÍLIA

A noite é profunda,
Silente e de trevas.
Ao lado de teu corpo, imóvel e sereno,
Estou a contemplar-te, Pai.
Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.
Teus olhos fitam muito longe
Um olhar imensamente triste.
A chama dos círios dança sem cessar
Em tuas pupilas mortas,
Tentando desviar tua mirada
De um ponto fixo na eternidade.
Círio recôndito,
Arde meu coração e se consome.
Há longos espinhos aguçados
Esgarçando meus nervos sensíveis.
Beijo tuas mãos pálidas e tristes,
Humildes mãos cansadas,
Agora consteladas
Por líquidos brilhantes.
Por estranhos caminhos,
Cheios de neblina,
Anda minh’alma soluçante,
A clamar por ti.


*Helena Kolody*
Em “Paisagem Interior”, Curitiba, Editora Escola Técnica de Curitiba, 2ª Edição, 1950.
PRECE

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d’alma alheia o espinho que magoa.


*Helena Kolody*
Em “Paisagem Interior”, Curitiba, Editora Escola Técnica de Curitiba, 2ª Edição, 1950.