domingo, 7 de agosto de 2016

Oração da Noite

Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, − embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...

Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!

Que o sonho deite bênçãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.

Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!...


*Cecília Meireles*
Em “Nunca Mais... e Poemas dos Poemas”, São Paulo, Editora Global, 2ª Edição, 2015.
Fio

No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.

Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.

Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...

− Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?


*Cecília Meireles*
Em “Viagem – Vaga Música”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1982.
Os meus versos

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasgas os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...


*Florbela Espanca*

 Em “SONETOS COMPLETOS − Florbela Espanca”, Coimbra, Livraria Gonçalves, 7ª Edição, 1952.
Saber ler na vida
   
Saber ler na vida – folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito,
Iluminada inocência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada
Ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.


*Matilde Rosa Araújo*
Em “Voz Nua”, Lisboa, Editora Livros Horizonte, 1ª Edição, 1986.
Soneto

Desejo de sentir o que ora não penso
ou o que penso; e o que penso é não vivido.
A alma retrai-se; o espírito suspenso,
detém-se: é fio irreal interrompido.

Há um ímpeto de fuga que não venço.
Extrai-o de mim mesmo; é sem sentido.
E assim pairo, sonâmbulo, no imenso
campo que fica entre a presença e o olvido.

Como entender o que nem foi vazado
em forma signo ou luz? Como e por que ando
perto e longe de mim que ardo ao meu lado?

Como esquecer que o próprio esquecimento
do que em mim se rebela e está sonhando
rói a sede de ser em que me invento.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.
Soneto

Esquecida no tempo a alma procura
algo que já não é porque era tanto.
Onde amor se desfez, se ainda perdura
a luz que nos mandava e se fez pranto.

Algo torna a vibrar, algo que a pura
força de ser revela o próprio encanto,
luz que à noite mais cega, mais se apura,
trêmula voz transfigurada em canto.

Voltam fluídas lembranças à retina,
cálidas formas, luzes de extramundo...
e a vontade de amar que amar ensina.

A mente, não, mas a alma há de deter
no que tem de mais límpido e profundo
e embora fugaz vive do eterno.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.
Eu no tempo

Meu espírito caminha irreversivelmente
para a irrealidade de tudo.
O universo pára, de repente,
à espera de minha infância.
Tudo repousa em seu lugar.
O tempo, no relógio.
O silêncio, na pedra.
Jogo as máscaras fora e me identifico
comigo que me esperava há séculos.


*Emílio Moura*
Em “Itinerário Poético”, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª Edição, 2002.