sexta-feira, 31 de maio de 2013

"Cair da Tarde

Neste cair de tarde
meus cantos são prelúdios.

São começos, apenas,
de largas sinfonias
que tombam subitamente
sem chegar à expressão.

O mistério é muito fundo
para que possa enchê-lo outra música
que não a do infinito silêncio.
"

*Tasso da Silveira*

Em “Tasso da Silveira – Poemas”, ABL/Edições GRD, São Paulo, 2003.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

[...
 
 Eu sou insaciável!
Mal um desejo surge, outro desponta, e em mim há sempre
latente a febre do sonho e do desejo, e quando possuo
alguma coisa de infinitamente consolador, como é a sua amizade,
desejo mais, mais ainda, mais sempre!
Conhece-se em mim o afecto, o amor, a ternura por um egoísmo
implacável que quer tornar muito meus, e só meus,
os corações que se me dedicam um pouco.
Dá isto muitas vezes o resultado de me suceder o mesmo que
sucedeu ao cão que largou a presa pela sombra,
pois querendo muito, muito perdeu.
 
[...]

*Florbela Espanca*

(Trecho da carta dirigida à Júlia Alves, em 30 de junho de 1916)
 Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992.
As minhas mãos

As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vivente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol-poente.

Magras e brancas... Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são... Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!
Ó minhas mãos, aonde está o céu?
...Aonde estão as linhas do teu rosto?


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.

terça-feira, 28 de maio de 2013

"Epigrama nº 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custa a vir, e quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
"

*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira - MEC, 1973.
Um vislumbre do fim
 
Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez.
O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações.
Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo.
Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai.
Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará:
serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma,
qualquer janela de olhos de gato ou de cão.
De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar.
Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão.
E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo,
até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente.
Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada
mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove.
Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido.
Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito,
e um corpo morto − serei ainda eu, horrivelmente esperta.
Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução,
é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si.
Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade,
encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou!
Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo.
Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...


*Clarice Lispector*

 Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"Enquanto morrem as rosas

Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.
Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde...

Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...

Morre o teu sonho?... Nesse instante o pensamento
Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize: neste momento
Morre o teu sonho?...
"

*Manuel  Bandeira*

Em "Poesia Completa e Prosa", São Paulo, Editora Nova Fronteira, 
Volume Único, 5ª Edição, 2009.
"Samuel Tristão

Arte: eco, voz erradia
Desmaiando em ressonâncias...
Êxtase... Melancolia
Que vem do azul das distâncias...

Alma de estátuas que acordam
Nos crepúsculos silentes...
Olhos dos que se recordam...
Sombra de gestos morrentes...
"

*Manuel  Bandeira*

Em "Poesia Completa e Prosa", São Paulo, Editora Nova Fronteira, Volume Único, 5ª Edição, 2009.

domingo, 26 de maio de 2013

Choro

Eram todos negros: uma viola, um clarinete, um pandeiro e uma cabaça.
Juntaram-se na varandinha de uma casa abandonada e ali ficaram chorando
valsas, repinicando sambas.
E a gente veio se ajuntando, calada, ouvindo.
Alguém mandou no botequim da esquina trazer cerveja e cachaça.
E em pé na calçada, ou sentados no chão da varanda, ou nos canteiros do
jardinzinho, todos ficamos em silêncio ouvindo os negros.
Os que ouviam não batiam palmas nem pediam música nenhuma; ficavam
simplesmente bebendo em silêncio aquele choro, o floreio do clarinete,
o repinicado vivo e triste da viola.
Só essa música que nos arrasta e prende, nos dá alegria e tristeza,
nos leva a outras noites de emoções – e grátis.
Ainda há boas coisas grátis, nesta cidade de coisas tão caras e de tanta falta
de coisas. Grátis – um favor dos negros.
Alma grátis, poesia grátis, duas horas de felicidade grátis – sim, só da gente
do povo podemos esperar uma coisa assim nesta cidade de ganância e de injustiça.
Só o pobre tem tanta riqueza para dar de graça.


*Rubem Braga*

Em Um Pé de Milho”, Rio de Janeiro, Editora Record, 4ª Edição, 1982.

sábado, 25 de maio de 2013

Confissões Partidas

Quisera eu ser dona, mandante da verdade inteira e nua,
Que nua, consta a sabedoria popular, ela está no fundo de um poço fundo,
E sua irmã mentira foi a que ficou em cima beradiando.

Quem dera a mim esse poder, desfaçatez, coragem de dizer verdades...
Quem as tem? Só o louco varrido que perdeu o controle das conveniências.
Conveniências... palavras assim de convênio, de todos combinados,
Força poderosa, recriando a coragem, encabrestando a vontade.
Conveniência... irmã gêmea do preconceito, encangados os dois,
Puxando a carroça pesada de meias verdades.
Confissões pela metade...
Quem sou eu para as fazer completas?

Reservas profundas, meus reservatórios secretos, complexos,
Fechados, ermos, compromissos íntimos e preconceitos vigentes, arraigados.

Algemas mentais, e tolhida, prisioneira, incapaz de despedaçar a rede.
Onde se debate o escamado da verdade...
Qual aquele que em juízo são, destemeroso dos medos
Para dizer mais do que as meias dissimuladas, esparsas?

A gente tem medo dos vivos e medo dos mortos.
Medo da gente mesmo.
Nossas covardias retardadas e presentes.
Assim foi, assim será.


*Cora Coralina*

Em “Melhores Poemas, Cora Coralina”, São Paulo, Editora Global, 1ª Edição, 2004.
Doce milagre

O dia chora. Agonizo
Com ele meu doce amor.
Nem a sombra dum sorriso,
Na natureza diviso,
A dar-lhe vida e frescor!

A triste bruma, pesada,
Parece, detrás da serra
Fina renda, esfarrapada,
De Malines, desdobrada
Em mil voltas pela terra!

(A chuva parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.)

As avezitas, coitadas,
'Squeceram hoje o cantar.
As flores pendem, fanadas
Nas finas hastes, cansadas
De tanto e tanto chorar...

O dia parece um réu.
Bate a chuva nas vidraças.
É tudo um imenso véu.
Nem a terra nem o céu
Se distingue. Mas tu passas...

E o sol doirado aparece.
O dia é uma gargalhada.
A natureza endoidece
A cantar. Tudo enternece
A minh'alma angustiada!

Rasgam-se todos os véus
As flores abrem, sorrindo.
Pois se eu vejo os olhos teus
A fitarem-se nos meus,
Não há de tudo ser lindo?!

Se eles são prodigiosos
Esses teus olhos suaves!
Basta fitá-los, mimosos,
Em dias assim chuvosos,
Para ouvir cantar as aves!

A natureza zangada,
Não quer os dias risonhos?...
Tu passas... e uma alvorada
Pra mim abre perfumada,
Enche-me o peito de sonhos!


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.
Da saudosa distância

Antes, muito antes que o rádio houvesse conspurcado os espaços,
escrevi em Alegrete um poema de que apenas recordo estes versos:

‘entre a minha casa e a tua
há uma ponte de estrelas’.

Era uma ponte de silêncio... Quando muito, uma nova Ponte de Suspiros.
Agora Maria acaba de me telefonar do Rio.
Não era a voz dela. Havia algo de mecânico e metálico,
de inumano naquela voz,
como se fora a voz de uma maria-robô.
Faltava-lhe esse calor humano que só a presença animal de uma
pessoa nos pode transmitir... e que faz com que
qualquer mentira tenha tanta verdade!


*Mario Quintana*

Em “Mario Quintana - Poesia Completa”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, Volume Único, 1ª Edição, 2005.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

"Os Rouxinóis

No meu jardim, num cedro em que a frescura
e a flor da novidade vêm brotando,
poisa, por vezes, um ditoso bando
de alegres rouxinóis, entre a verdura...

Quando ali vou, tristísssimo, à procura
de sossego e de luz, de quando em quando,
sinto-os vir e poisar, ouço-os cantando
no doce idílio duma paz obscura.

E, desditoso, eu lembro com saudade,
último brilho do meu peito ardente,
que assim também, num íntimo vigor,

sobre o flóreo jardim da mocidade,
cantaram na minh'alma alegremente,
como no cedro, ou rouxinóis do amor...
"

*António Maria Gomes Machado Fogaça*

Em "Versos da Mocidade e Poesias Dispersas (Obra Poética de António Fogaça)", 
Barcelos/Portugal, Publicação da Câmara Municipal de Barcelos,
1ª Edição, 1964.
"O Silêncio do Amor

Dois seres calados,
Um silêncio maravilhoso,
Dois corações apaixonados,
Um amor silencioso.

Duas almas carentes,
Um amor a fluir,
Dois corpos quentes
No silêncio que se faz sentir.

Duas almas carentes,
Dois corpos quentes,
No silêncio que se deixa ouvir.

Dois seres calados,
Dois corações apaixonados,
É o amor a fluir.
"

*Desconheço a autoria*

quinta-feira, 23 de maio de 2013

"MEMÓRIAS DA MARQUESA DE RABICÓ

[...]
 
 – E como sou filósofa continuou Emília – quero que minhas Memórias 
comecem com a minha filosofia de vida.
  Cuidado Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.
  Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. 
A gente nasce, isto é, começa a piscar. 
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. 
Piscar é abrir e fechar os olhos viver é isso. 
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
 
[...]
 
A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. 
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama;
pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama;
pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
  E depois que morre? Perguntou o Visconde.
  Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"
 
[...]

*Monteiro Lobato*

Trecho extraído de "Memórias da Emília", São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"SONETO DA CIRCUNSTÂNCIA

Algo que escutas entre o mar e o vento
algo que perdes entre a onda e a areia
um vago instante de algum pensamento
à luz que há entre a chama e a candeia.

Algo entre o aroma, a brisa e o relento
fios que urdidos entre a aranha e a teia
vibram em mim de um átimo do tempo
a chama desse amor que me incendeia.

Em minh’alma inda incólume à deriva
nem sei o que fazer do que ainda resta
de meus barcos de bruma sobre o mar...

Faças de mim a tua circunstância viva
e desses restos me celebras uma festa
e o que ainda resta é para eu te sonhar...
"

*Afonso Estebanez* 

Copiei daqui:  http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/
"CANÇÃO REMOTA

E estou aqui meu amor
na beira da minha vida
não distante do jardim
que volta da primavera
em busca daquela flor
deixada dentro de mim.

É meu anjo debruçado
na janela de uma rosa
que o destino ofereceu
ao voltar da primavera
em busca daquela flor
que a tua vida me deu.

Liga não... Viver assim
é um cântico de flauta
quando bate o coração.
E estar aqui à tua volta
é somente o estar aqui
para ouvir uma canção...
"

*Afonso Estebanez*

Copiei daqui:  http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com.br/
TOM

 Quando a noite invade os pássaros,
voos derramam-se em luz:
manhas da manhã,
pouso feito a bico
com mil gravetos de som.
”   

*Edival Antonio Lessnau Perrini*

Extraído do Blogue do Autor: http://www.edivalperrini.com.br/tag/passaros/

terça-feira, 21 de maio de 2013

"Meu Amor que Te Foste sem Te Ver

Meu amor que te foste sem te ver
que de mim te perdeste sem te amar
quem sabe se outra vida tu vais ter
ou se tudo se perde sem voltar

ou se é dentro de mim que tem de haver
tanta força no meu imaginar
que o poeta que é Deus o vá reter
e te dê vida e faça regressar

para de novo o sonho desfazer
num contínuo surgir e retornar
ao nada que dá ser ao que é querer
ao fado que só dá para se dar

por tudo estou amor e merecer
o que venha para eu te relembrar
só adorando o nada pretender
só vogando nas águas de aceitar.
"

*Agostinho da Silva*

Em "Uns poemas de Agostinho", Lisboa, Editora Ulmeiro, 1995.
Simplicidade, Felicidade

Simplicidade... Simplicidade...
Ser como as rosas, o céu sem fim
A árvore, o rio... Porque não há de
ser toda gente também assim?

Ser como as rosas: bocas vermelhas
que não disseram nunca a ninguém
que têm perfumes... Mas as abelhas
e os homens sabem o que elas têm!

Ser como o espaço, que é azul de longe,
de perto é nada... Mas quem o vê
− árvores, aves, olhos de monge...
busca-o sem mesmo saber porque.

Ser como o rio cheio de graça,
que move o moinho, dá vida ao lar,
fecunda as terras... E, rindo, passa
despretencioso, sempre a cantar.

Ou ser como a árvore: aos lavradores
dá lenha e fruta, dá sombra e paz;
dá ninho às aves, ao inseto, flores...
Mas nada sabe do bem que faz.

Felicidade − sonho sombrio!
Feliz é o simples que sabe ser
como o ar, as rosas, a árvore, o rio:
simples, mas simples sem o saber.


*Guilherme de Almeida* 

Em "Toda a Poesia", São Paulo, Livraria Martins Editora, 1ª Edição, 1952.