terça-feira, 24 de março de 2015

O Canto Absoluto

Meu canto de alegria, Senhor.
Meu canto de plenitude,
porque existes, Senhor.

Meu canto inocente e novo
como o dos pássaros matinais.

Meu canto múrmuro e fresco
como o dos veios que escorrem
dos flancos verdes das montanhas.

Meu canto feliz e alegre
como o das searas e os jardins.

Meu canto essencial e profundo
como o das noites referventes
de mundos inumeráveis.
Meu canto fecundo e ardente
como o das enchentes de sol
nas grandes terras tropicais.

Meu canto universal e total
como o das vastidões oceânicas
em torno dos continentes.

Meu canto de origens fundas
como o dos ásperos rochedos
imemoriais.

Meu canto inflexível, rijo e tenso
como as correntes que equilibram
as esferas acesas.

Meu canto largo, longe, límpido
como o alto céu primaveral.

Meu canto livre como o vento,
meu canto puro como o fogo,
meu canto plástico como a água,
meu canto diáfano como o ar.

Meu canto de descobrimento,
meu canto de deslumbramento,
meu canto imenso e anunciador.

Meu canto porque existes,
- porque existes! – Senhor.

Meu canto antigo e inesperado
como a Dor...


*Tasso da Silveira*
Em “O Canto Absoluto
Seguido de Alegria do Mundo – Poemas”, Rio de Janeiro, 
Edição dos “Cadernos da Hora Presente, 1ª Edição, 1940.
Correspondência

I

Prisma, disse a Harmonia, 'dá-me as tintas
com que no íris a luz etérea esgotas.'
Responde o Prisma: 'Dá-me as sete notas
com que os humanos sentimentos pintas'.

Intervém o Perfume: 'Inutilmente
uni-vos-eis sem mim, alma das flores:
das setes notas e das sete cores
guardo a aliança no meu seio ardente.'

II

Há com efeito acordes no perfume,
de intenso colorido harmonioso,
que, no delíquio do supremo gozo,
as sensações universais resume.

Nossos olhos não veem, nossos ouvidos
não escutam; mas a alma inebriada
ouve cantar na abóboda azulada
os cintilantes astros comovidos.

Na embriaguez das flores, quando assoma
entre sonhos a morte, há de ser grato
à alma romper nas sensações do olfato
e a vida evaporar em pleno Aroma!
”  

*Augusto de Lima*
Em “Poesias”, Rio de Janeiro, Editora H. Garnier, 1ª Edição, 1909.

domingo, 22 de março de 2015

XIX

Já a noite raiou. Vagos silêncios
que nuvens foram já. Melancolia
do tempo que se foi, como a luz do dia
no remanso das águas de setembro.

Acendem-se receios nas esquinas.
Os sons da claridade estão suspensos
na distância que foge. Do que lembro
farei suaves coisas pequeninas.

Como um beijo ou um sonho ou um suspiro.
No que não lembro serás o que sonho.
E bóia em tudo a noite a que retiro

o poema da vida. E posto a bordo
desta nau inventada ao mar me atiro
e do sono da vida então acordo.


*Bandeira Tribuzi*
Em “Obra Poética - Bandeira Tribuzi”, São Paulo, Editora Siciliano, 1ª Edição, 2002.
Madrugada

No seu leito de plumas alvejantes
Feito de nuvens brancas de algodão
O sol ainda dorme repousante
Mergulhado na paz da imensidão.

O silêncio é completo. E ofegante
A madrugada se estremece, então;
No sepulcral silêncio extasiante
Nem um gemido ecoa na amplidão.

A estrela Dalva vagarosa, lenta,
Brilha do espaço sideral da altura
Num gesto vislumbrante de magia.

E nesta apoteose se apresenta,
Da passarada, um coro de doçura
Que vem saudar o despertar do dia.


*Bernardina Vilar*
Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.
Mudez

Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.


*Torquato da Luz*

Extraí daqui:
http://oficiodiario.blogspot.com.br/2008/11/mudez_13.html
Não me deixes!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
'Ai, não me deixes, não!'

'Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!'

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
'Ai, não me deixes, não!'

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
'Ai, não me deixes, não!'

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
'Não me deixaste, não!'.


*Antônio Gonçalves Dias*
Em “Nossos Clássicos, Gonçalves Dias”, São Paulo, Editora Agir, Vol. 18, 12ª Edição, 1985.
Eu sou a concha das praias

Eu sou a concha das praias
Que anda batida da onda
E, de vaga em outra vaga,
Não tem aonde se esconda.
Mas se um menino, da areia
A colher e a for guardar
No seio... ali adormece
E é ali seu descansar.
Pois sou a concha da praia
Que anda batida da onda...
Sê tu esse seio infante,
Aonde a triste se esconda!

Eu sou quem vaga perdido,
Sob o sol, com passo incerto,
Contando por suas dores
As areias do deserto.
Mas se um palmar, no horizonte,
Se vê, súbito, surgir,
Tem ali a tenda e a fonte
E é ali o seu dormir.
Pois sou quem vaga perdido,
Sob o sol, com passo incerto...
Sê tu sombra de palmeira,
Sê-me tenda no deserto!

Sou o peito sequioso
E o viúvo coração,
Que em vão chama, em vão procura
Outro peito, seu irmão.
Mas se avista, um dia, a alma
Por quem andou a chamar,
Tem ali ninho e ventura
E é ali o seu amar.
Pois sou quem anda chorando
À procura dum irmão...
Sê tu a alma que me fale,
Inda uma hora ao coração!


*Antero de Quental*
Em “Antero de Quental, Sonetos”, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 7ª edição, 1984.

quinta-feira, 12 de março de 2015

A Serenata

                                            À D. Olga de Suckow

Plenilúnio de Maio em montanhas de Minas!
Canta, ao longe, uma flauta e um violoncelo chora.
Perfuma-se o luar nas flores das campinas,
sutiliza-se o aroma em languidez sonora.

Ao doce encantamento azul das cavatinas,
nestas noites de luz mais belas que a aurora,
as errantes visões das almas peregrinas
vão voando a cantar pela amplidão afora...

E chora o violoncelo e a flauta, ao longe, canta.
Das montanhas, cantando, a névoa se levanta,
banhada de luar, de sonhos, de harmonia.

Com o profano rumor, porém, desponta o dia,
e na última porção da névoa transparente
a flauta e o violoncelo expiram lentamente.


*Augusto de Lima*
Em “Poesias”, Rio de Janeiro, Editora H. Garnier, 1ª Edição, 1909,  pág. 185.
Almas paralelas
 
Alma irmã de minha alma, espelho vivo
de outro espelho fiel que te retrata,
alma de luz serena e intemerata,
cujo influxo de amor me tem cativo!
 
Bem sinto que em mim vives e em ti vivo:
no entanto (e eis o desgosto que me mata!)
do amor a doce vaga me arrebata,
e não posso atingir teu vulto esquivo.
 
O mesmo curso têm nossos destinos:
do gozo o mel, da dor os desatinos,
a um nada inspiram, sem que ao outro inspirem.
 
Mas, triste sorte! á bela entre as mais belas!
Eles são como duas paralelas:
próximos correm, sem jamais se unirem!


*Augusto de Lima*
Em “Coletânea de Poesias (1880-1934)”, Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1959.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Os telhados

Sobre este campo vermelho
que o tempo pasta,
o passado é lento rebanho
retouçando nuvens brancas.

Andorinhas seculares
ondeiam no verão supremo
e o musgo denuncia aos ares
que o tempo se fez eterno

Torna viagem

Parasse o rio onde foi fonte,
ficasse a fonte onde foi nuvem,
voltasse o mar onde foi rio
para que o rio fosse chuva...

Assim esta rosa de outono
que já vai sendo minha vida,
seria folha, caule, seiva
e raiz da infância perdida!


*Bandeira Tribuzi*
Em “Obra Poética - Bandeira Tribuzi”, São Paulo, Editora Siciliano, 1ª Edição, 2002.
CONFISSÃO

Vou caminhando para ti, Senhor!
Perdoa a minha confissão sincera:
Vou lentamente e não como quisera,
que mal se pode caminhar na dor.

Atraso-me, a sentir, no meu horror,
a dúvida, que tanto me lacera...
Mas eu bem sei que o teu amor espera:
Se o não fizesse, não seria amor.

Muitos clamam, Senhor, toda a descrença...
Mas eu que sei a solidão imensa
de uma alma, em treva, neste mundo a ansiar,

sofro e calo... E se o espírito escarninho
mofa: − ‘Não tem saída este caminho’,
responde o coração: − ‘Hei de chegar!
’”

*José Lannes*
Em “CANDEIA”, Editora Livraria Martins, São Paulo, 2ª Edição, 1948.
ALMAS GÊMEAS

Quando ouvires
o vento suave teu nome assoviando,
e sentires
o que não vês teu corpo tocando.
Com calma,
entrega-te ao deleite desse instante,
pois, são somente nossas almas
se acariciando!


*Carlos Alberto Baltazar*
Extraí daqui:
http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdeamor/3059914
AÇÃO DE GRAÇAS DO POETA

Graças a Vós, Senhor, pela ventura
De poder isolar-me na Poesia,
Ter nela o alívio à provação mais dura,
E, no sonho, o meu pão de cada dia.

Sentir albor de luar na noite escura,
Achar descanso e paz na nostalgia;
E ver, até no pranto da amargura,
Um consolo vizinho da alegria.

Graças a Vós por este dom divino
Que me defende do destino adverso,
Tornando-me senhor do meu destino.

E se, em mim próprio, ruge o mal perverso,
Puro, alegre, feliz, o mal domino
E alo-me aos céus nas asas do meu verso.


*Bastos Tigre*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 
Brasilia-Instituto Nacional do Livro/INL, 1982.
Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


*Miguel Torga*
Em “Poesia Completa”, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.