domingo, 26 de agosto de 2018

Ressalva

Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria e poetiza sua própria
Vida.

Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.

Este livro:
Versos... Não.
Poesia... Não.

Um modo diferente de contar velhas estórias.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.
Cora Coralina, quem é você?

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
‘Longe de todos os lugares’.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.

Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.

Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.

Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.

Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

Quem sentirá a Vida
destas páginas…
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2002.

Você é parte de meu retalho mais colorido...

Sou feita de retalhos... 
Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou costurando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou. Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior… Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade… 
Que me tornam mais pessoa, mais humana, mais completa.
E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados… Haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma.
Portanto, obrigada a cada um de vocês, que fazem parte da minha vida e que me permitem engrandecer minha história com os retalhos deixados em mim. Que eu também possa deixar pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser parte das suas histórias. E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de ‘nós’.


*Cris Pizziment*

Extraí daqui: https://pt-br.facebook.com/UmaPitadaDeEncantoByCrisPizzimenti/

domingo, 19 de agosto de 2018

Participação

De longe, podia-se avistar o zimbório e os minaretes
e mesmo ouvir a voz da oração.

De perto, recebia-se nos braços
aquela arquitetura de arcos e escadas,
mármores reluzentes e tetos coberto de ouro.

De mais perto, encontrava-se cada pássaro
embrenhado nas paredes,
cada ramo e cada flor,
e a fina renda de pedra que bordava a tarde azul.

Mas só de muito perto se podia sentir a sombra das mãos
que outrora houveram afeiçoado
coloridos minerais
para aqueles desenhos perfeitos.
E o perfil inclinado do artesão,
ido no tempo anônimo,
um dia ali de face enamorada em seu trabalho,
servo indefeso.

E só de infinitamente perto se podia ouvir
a velha voz do amor naquelas salas.
(Ó jorros de água, finíssimas harpas!)
E os nomes de Deus, inúmeros,
Em lábios, paredes, almas...

(Ó longas lágrimas, finíssimos arroios!)

Pobreza, riqueza,
trabalho, morte, amor,
tudo é feito de lágrimas.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa (Col. Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira)”,
Rio de  Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.
Coisas do reino da minha cidade

Olho e vejo por cima dos telhados patinados pelo tempo
copadas mangueiras de quintais vizinhos.
Altaneiras, enfolhadas, encharcados seus caules,
troncos e raízes de longas chuvas de verão passado.
Paramentadas em verde, celebram a liturgia da próxima florada.
Antecipam a primavera no revestimento de brotação bronzeada,
onde esvoaçam borboletas amarelas.
As mangueiras estão convidando todos os turistas,
para a festa das suas frutas maduras, nos reinos da minha cidade.

Minha mesa está florida e perfumada
de entrada a minha casa, um aroma suave
incensando a casa.
Um bule de asa quebrada, um vidro de boca larga,
um vaso esguio servem ao conjunto floral.
Rosas brancas a lembrar grinalda das meninas
de branco que acompanhavam antigas procissões,
de onde vieram carregando seus perfumes?...
Tão fácil. Por cima do muro da vizinha
a roseira, trepadeira, se debruça
numa oferta floral de boa vizinhança.

Canto e descanto meus vizinhos.
Contei sempre com eles e nunca me faltaram.
beleza simbólica maior: o Dia do Vizinho.

O vizinho é a luz da rua. Quando o vizinho viaja e fecha a casa,
é como se apagasse a luz da rua...
Indagamos sempre: quando volta?
E quando o vizinho volta, abre portas e janelas
e é como se acendessem todas as luzes da rua
e nós todos nos sentimos em segurança
estas coisas nos reinos de Goiá
s.”

*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.
Oração do Milho

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos
e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste,
se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial,
salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida,
nem lugar me foi dado nos altares.

Sou apenas o alimento forte e substancial
dos que trabalham a terra,
onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo
na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proprietário.
Sou a polenta do imigrante
e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento de porcos
e do triste mu de carga,
O que me planta não levanta comércio,
nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos
na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos ninhos.
Sou a pobreza vegetal
agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho!


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

Neste momento terno e pensativo...

Prece

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos
corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde
nada está tu habitas e onde tudo está – (o teu templo) –
eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista
para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir
no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja
lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas
nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar
os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

Sê digno de ti em mim.
Bendito seja o teu nome de Céu e de terra, e de Corpo e Alma, e de Vida e Morte!
Louve-te a minha boca e as minhas mãos te louvem!

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja
digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante
de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar
em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa
rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te
possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu.
Senhor, livra-me de mim. Unge-me da tua divina [*]

Que o meu pomar dê frutos saborosos a Ti e a minha vinha dê vinho.
Quando me movo, és tu que te moves; quando falo, és tu [que] me és falando.
Quando dou um passo, avanças tu. Se paro, estacas de mim.


*Fernando Pessoa*
Em “O EU PROFUNDO – Obras em Prosa – Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 2ª Edição, 1976.
[*] Pausa do poeta
Quietação

No espaço claro e longo
O silêncio é como uma penetração de olhares calmos...
Eu sinto tudo pousado dentro da noite
E chega até mim um lamento contínuo de árvores curvas.
Como desesperados de melancolia
Uivam na estrada cães cheios de lua.
O silêncio pesado que desce
Curva todas as coisas religiosamente
E o murmúrio que sobe é como uma oração da noite...

Eu penso em ti.
Minha boca cicia longamente o teu nome
E eu busco sentir no ar o aroma morno da tua carne.
Vejo-te ainda na visão que te precisou no espaço
Ouvindo de olhos dolentes as palavras de amor que eu te dizia
Fora do tempo, fora da vida, na cessação suprema do instante
Ouvindo, junto de mim, a angústia apaixonada da minha voz
Num desfalecimento.

Pelo espaço claro e longo
Vibra a luz branca das estrelas.
Nem uma aragem, tudo parado, tudo silêncio
Tudo imensamente repousado.
E eu cheio de tristeza, sozinho, parado
Pensando em ti.


*Vinicius de Moraes*
Em “O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA”, Rio de Janeiro,
Editora Companhia Das Letras, 1ª Edição, 2008.
Noturno do Amor

Vem de manso... de leve... e suave e doce
Como um silêncio estático de prece...
Que a sua vida seja tal qual fosse
Apenas a saudade que me viesse...

Vem de manso... Na névoa da penumbra,
Faze um gesto litúrgico de bênção!
A alta noite tristíssima deslumbra
Dos meus olhos nostálgicos, que pensam...

Sugere, mas não fales... Porque a frase
É vã, no amor... Mistério... Sonolência...
O esquecimento, quase... A morte, quase...
Intuições... Irrealismo... Inconsciência...

......................................................................

Morre a noite, a um luar triste de romance...
Vem de leve!... E, ao palor da noite extinta,
que seja só meu sonho que te alcance...
Minha alma, unicamente, que te sinta...

*Cecília Meireles*
Em “Mar absoluto e outros poemas”, Porto Alegre, Global Editora, 2ª Edição, 2015.
Oração de Aninha

Pela manhã, abre a janela de tua casa
E faze a prece da gratidão.
Levanta teu coração para o Alto.
É a hora solene da oração.
Procura reter contigo
O amanhecer de um novo dia
Antes que a rotina da vida
Disperse o teu recolhimento.
Segue essa pequena jaculatória.

Senhor, sois a luz da minha vida.
Que eu sinta a vossa presença
Na água da minha sede,
E na paz da minha casa.
‘Quem chama por Deus
Não cansa nunca’
E Ele se fará presente.
Muito pedimos e pouco agradecemos.
Sentimento raro de se encontrar no coração
Humano: Gratidão.

Muitos se ufanam:
‘Não devo nada a ninguém’.
Engano: devemos muito a todos.
Devemos, particularmente, a nossos vizinhos
A felicidade da boa vizinhança.
Em regra, aquele que acredita
Nada dever a alguém,
Também, nada faz por ninguém.
É o egoísta: macula
Os bens da vida, a alegria de viver.

Já a linguagem dos humildes:
‘Abaixo de Deus devo tudo o que tenho
A fulano’. É sempre este o homem
Solidário, feito para ajudar
E com ele está a benevolência,
Capacidade de servir, e a paz social,
O Espírito de Deus está na sua casa
E sua tulha estará sempre derramando.

*Cora Coralina* 
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

domingo, 5 de agosto de 2018

Foi Deus

Não sei, não sabe ninguém
Porque canto fado,
Neste tom magoado
De dor e de pranto…
E Neste tormento,
Todo o sofrimento
Eu sinto que a alma
Cá dentro se acalma
Nos versos que canto

Foi Deus,
Que deu luz aos olhos
Perfumou as rosas,
Deu ouro ao sol
E prata ao luar
Foi Deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar

E pôs as estrelas no céu
E fez o espaço sem fim
Deu o luto as andorinhas, ai,
E deu-me esta voz a mim

Se eu canto,
Não sei o que canto
Misto de ventura,
Saudade, ternura
Ou talvez amor

Mas sei que cantando
Sinto o mesmo quando,
Se tem um desgosto
E o pranto no rosto
Nos deixa melhor

Foi Deus,
Que deu voz ao vento
Luz ao firmamento
E deu o azul às ondas do mar
Foi Deus, que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar

Fez o poeta o rouxinol
Pôs no campo o alecrim
Deu as flores à primavera, ai!
E deu-me esta voz a mim.


*Música e Letra: Alberto Janes (para Amália Rodrigues)
Arranjo: Jorge Varrecoso Gonçalves*
O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...


*Mario Quintana*
Em “Apontamentos de História Sobrenatural”, Porto Alegre,
Editora do Globo/Instituto Estadual do Livro, 1ª Edição, 1976.
Consolo Na Praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
Precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “A Rosa do Povo”, Rio de Janeiro, Editora Record, 8ª edição, 1991.

“Deus, receba em Teus braços meu pecado de pensar”...

DEUS

[...]

Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte?
Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude.
Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando.
Precisando mais do que a força humana. E estou precisando da minha própria força.
Sou forte, mas também sou destrutiva. Autodestrutiva.
E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente.
E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele.
Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha.
Ou talvez os que menos merecem precisem mais.
Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito.
E também me dói quando percebo que feri.
Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa.
Embora amor dentro de mim eu tenha. 
Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas.
Se tanto amor dentro de mim recebi, e continuo inquieta e infeliz, 
é porque preciso que Deus venha.
Venha antes que seja tarde demais.

[...]

*Clarice Lispector*
Fragmento extraído de “A descoberta do mundo”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

sábado, 4 de agosto de 2018

Voz longínqua

Baixa e longínqua
É a voz que ouço. De onde vem,
Fraca e vaga?
Aprisiona-me nas palavras,
Custa-me entender
As coisas pelas quais pergunta
Não sei e não sei
Como responder-lhe-ei.

Só o vento sabe,
Só o sol sábio conhece.
Pássaros pensativos,
O amor é belo,
Me insinuam algo.
E o mais
Só o vento sabe,
Só o sol conhece.

Por que, ao longe, erguem-se as rochas,
Por que vem o amor?
As pessoas são indiferentes,
Por que tudo lhes sai bem?
Por que eu não posso mudar o mundo?
Por que não sei beijar?
Não sei e não sei
Talvez um dia compreenda.

Só o vento sabe,
Só o sol sábio conhece.
Pássaros pensativos,
O amor é belo,
Me insinuam algo.
E o mais,
Só o vento sabe,
Só o sol conhece.


*Letra: Zdenek Rytir e Música: Karel Svoboda*
Em “CLARICE LISPECTOR UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, 
Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1998.

Uma prece de Lóri…

Prece

[…]
 
alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha,
faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já 
estamos na eternidade,
faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo 
não significa a morte,
faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária,
faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa 
quanto a pergunta,
faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e  no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito,
faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível,
então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la,
abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo,
faze com que eu tenha caridade por mim mesma pois senão não poderei sentir 
que Deus me amou,
faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma 
mão humana amada para apertar a minha, amém.” 
 
[...]

*Clarice Lispector*
Em “CLARICE LISPECTOR UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, 
Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1998.
O dia seguinte ao do amor

Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!...

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos... E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos!


*Mario Quintana*
Em “Nariz de Vidro”, São Paulo, Editora Moderna, 12ª Edição, 1995.
O baú

Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!


*Mario Quintana*
Em “Esconderijos do Tempo”, São Paulo, Editora L&PM Pocket, 1ª Edição, 1980.