domingo, 19 de agosto de 2018

Oração do Milho

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos
e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste,
se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial,
salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida,
nem lugar me foi dado nos altares.

Sou apenas o alimento forte e substancial
dos que trabalham a terra,
onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo
na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proprietário.
Sou a polenta do imigrante
e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento de porcos
e do triste mu de carga,
O que me planta não levanta comércio,
nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos
na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos ninhos.
Sou a pobreza vegetal
agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho!


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

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