sábado, 4 de dezembro de 2021

 Cantigas leva-as o vento

A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
 
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar’cido
Revive numa saudade!


*Florbela Espanca*
Em “TROCANDO OLHARES”, São Paulo, Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2009.

 “Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (1918-1964), Volume 1”,
Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

Intermezzo

Eu tinha essa alma toda iluminada,
como as vilas fantásticas das eras
dos dragões, salamandras e quimeras
de um sonho remotíssimo de fada...

Eu tenho esta alma toda de tristezas
vestida, e luto e lágrimas e opalas...
– Porque os Degoladores de Princesas
por mim passaram para degolá-las...


*Cecília Meireles*
Em “NUNCA MAIS... E POEMA DOS POEMAS”, São Paulo, Editora Global, 2ª Edição, 2015.

 “XII

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormia... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

 “IX

                                                  Para Emílio Kemp

É a mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: ALEGRIA – RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

AMOR A ELE

Através de meus graves erros – que um dia eu talvez os possa mencionar
sem me vangloriar deles – é que cheguei a poder amar.
Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente
queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer
minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo.
Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu
amo como quem cai no nada.


*Clarice Lispector*
Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.

 “QUEM SOU EU...

Ninguém se sabe em saber,
mas tu me sabes quem sou:
sou tua luz da chama acesa
depois que o fogo apagou...

Por encantos de um feitiço
ou por vícios da esperança,
sou uma presa do capricho
de trazer-te na lembrança...

Sou partes não separadas
de nós dois numa unidade
como as rosas num jardim...

Sou o anjo que me seguiu
em busca de todo o amor
que estava dentro de mim.


*Julis Calderon d'Estéfan*
(Heterônimo de Afonso Estebanez)
Extraí daqui:
http://afonsoestebanez.blogspot.com/search?updated-max=2013-12-08T09:35:00-03:00&max-results=10&start=30&by-date=false

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!


*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (Belo Belo)”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

 TEMA E VARIAÇÕES

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.

Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado…
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.


*Manuel Bandeira*
Em “Opus 10”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2015.

 “Segue-me

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Segue-me. E eu te darei repouso e sombra na tua caminhada.
Afastarei pedras e farpas de teus pés caminheiros.
Abençoarei tuas mãos de trabalhador.
Farei do trabalho o lazer e aprazimento de tua vida.
Segue-me.

Esperando sempre confiante.
Eu te darei a certeza da vida eterna e curarei as dúvidas que te flagelam.
Terás alegria nos teus espaços, marcarás na terra caminhos de esperança.
O futuro se fará risonho e aberto aos que não veem e creem.
Segue-me.

Transformarei a tua vida e te levarei ‘a verdes pastos’.
Porei em tuas mãos o cajado do pastor e cuidarás do meu rebanho disperso.
Plantarás o trigo abençoado, o vinho da alegria e o linho da pureza.
Segue-me.

Eu te farei pescador de todos os errados e perdidos,
errantes pela Terra.

Ele passava pelo mercado público, lá estava o publicano Levi,
com os seus livros e folhas de argila, cobrando aos mercadores
os tributos de César.
Jesus olhou, alcançou o íntimo profundo e reservado do publicano e disse:
‘Segue-me’. Levi deixou suas pedras e números
e se fez discípulo ao lado do Mestre.

O pequeno Zaqueu, ‘homem baixo de estatura’,
queria ver o Mestre aclamado
e a multidão lhe tirava a visão.
Ele subiu numa árvore, queria ver, precisava ver o Cristo,
caminheiro nas terras da Judeia.
Jesus o viu antes que fosse visto e disse:
‘Desce desta árvore, Zaqueu, que hoje a salvação entrou em tua casa.’
Zaqueu partilhou seus bens com os pobres e tomou seu lugar ao lado do Mestre.
Segue-me.

O Moço procurou Jesus. Tinha tudo e cumpria os preceitos.
Que mais poderia fazer para merecer das promessas?
Renuncia ao que tens e terás o dobro do que contas.

Pedro lançava suas redes.
O Mestre passou e disse: ‘Recolhe tuas redes
e eu te farei pescador de homens’.
Segue-me.

Jovens e adultos, eu vos darei o que debalde buscais com afã,
um pouco de felicidade.
Farei ver o que está dentro de cada um, templo e morada do Espírito Santo.
Eu vos darei os sete dons do espírito e vos sentireis pleno
da sabedoria da vida, que debalde procurais.
Farei ver a vossa própria razão de vida e de morte,
responderei às vossas indagações.
Segui-me.

Os que governam, os que comandam.
Darei ocupação aos desocupados, saúde aos enfermos,
inteligência aos ignorantes.
Eu vos farei a luz da candeia acesa que vai na frente
e aclara o caminho escuro.
Segui-me.

Juízes que repartis julgamentos, eu vos darei
a balança da equidade e a certeza do Direito.
Segui-me.

Advogado que reivindicas Justiças aos que dela, carentes,
têm fome e sede.
Médico. Eu te darei a melhor ciência de curar dores alheias
e suavizar a partida dos que se vão.
Segue-me.

Vós todos, homens da terra, encherei as vossas tulhas
e o trabalho de vossos braços será um cântico para o alto.
Segui-me.

Todas as perdidas do mundo eu vos darei vestes novas
de pureza e de brancura.
Segui-me.

Ladrões e arrombadores.
Eu abrirei as portas do Céu e vos acharei fartos e fiéis.
Sereis guardas dos bens eternos.
Segui-me.

Presidiário, busca-me na solidão da tua cela
e eu te levarei no caminho da recuperação e da Paz.
Estou encostado a ti. Procura-me com o coração
daquele salteador condenado, a quem perdoei todos os crimes
pela força do arrependimento e esperança da salvação.
Chama por mim. Ouvirei o teu clamor.
Tomarei nas minhas tuas mãos armadas e farei de ti
um trabalhador pacífico da terra.
Segue-me.

Estou ao teu lado, sou tua sombra.
Abrirei os cárceres do teu espírito,
encherei de luz, não só tua cela escura,
senão, também, a cela escura do teu entendimento.
Segue-me.

Jovem, eu te livrarei do vício e do fracasso.
Da droga destruidora e te farei direito,
pelos caminhos entortados.
Segue-me.

Quem chama por mim não cansa nunca.
Quando tardo, estou no caminho.
Farei leve a tua cruz.
Um Simão Cirineu, porei ao teu lado.

Desalentados e descrentes.
Mulheres perdidas, viciados e criminosos.
Vos lavarei a todos na água do perdão,
se me procurardes de coração aberto.

Um ladrão, companheiro de minha cruz,
eu o levei ao Pai, pela força da palavra – ‘Senhor, lembrai-vos
de mim, quando estiverdes com vosso Pai.’
Eu o limpei de todos os erros e lhe foi dada a salvação.

Presidiário, que, roendo paredes e pedras,
ganhas a liberdade e voltas de novo à prisão
que abristes com a pua da tua vontade.
Se me seguires, nunca mais voltarás à prisão,
porque te porei nos meus caminhos.
Darei luz à tua cela escura e farei iluminada
a cela mais escura do teu espírito.
Segue-me.

Todos os perdidos da vida.
Não vim ao mundo para os que estão salvos,
e sim para os enfermos.
Farei de ti a candeia acesa,
guiando a caminhada dos cegos.

Senhor, os privilegiados, cerradas suas oiças
à palavra da renovação, davam-lhe as costas.
Não podiam suportar aquelas verdades da palavra nova,
e dissestes a um discípulo ao vosso lado:
‘Tu também queres me deixar?’

Este respondeu:
‘Senhor, aonde irei sem Vós? Tendes palavras de Vida Eterna.’
Jesus, eu sou aquele cego, surdo e mudo.
Tropeço nos caminhos errados.
Minha fé é frágil, o mundo me domina.
sustentai a minha fé.
Senhor! Aonde irei sem Vós?…


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”,
São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Irmã Bruna
 
Só uma pedra no meu túmulo.
Pedra de renúncia aos bens da vida.
Pedra luz de meus votos
em bodas de diamante.
Graça maior concedida
à pequenina irmã
que só pedia a Jesus
ser a rocha de amparo à sua fé.

No fim, minha mão vazia, segura
as mãos cheias de Deus.
E continuar na eternidade
a renovação de meus votos jovens,
na glória imensa de ter sido em vida e morte,
Dele, a mais humilde e pequenina serva,
Irmã Bruna.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”,
São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

 “Meu Pai

                                            In Memorian
 
Meu pai se foi com sua toga de Juiz.
Nem sei quem lha vestiu.
Eu era tão pequena,
mal nascida.
Ninguém me predizia – vida.
Nada lhe dei nas mãos.
Nem um beijo,
uma oração, um triste ai.
Eu era tão pequena!...
E fiquei sempre pequenina na grande
falta que me fez meu pai.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 “XV

                                                    Para Érico Veríssimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

Sono coloquial

Da velhice
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nemidade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.


*Mia Couto*
Em “Idades Cidades Divindades poesia” Lisboa, Editorial Caminho, 1ª Edição, 2007.

 “Vou agora sonhar…

A minha vida, sempre inquieta como o mar,
É de renúncia, sacrifício e desencanto:
Enquanto vão e vêm as ondas do meu pranto,
Estende-se o horizonte, além do meu olhar…

Na imensidade azul, fico a cismar, enquanto,
A refletir o céu, vai-se acalmando o mar…
Acalma-se também minha dor, por encanto:
– Já cansei de sofrer! Vou agora sonhar…


*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada
(Sangue, Zodíaco, Verhaeren, Pandora, Verônica e Alhambra)
”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

Se eu morresse amanhã

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!


*Álvares de Azevedo*
Em “Poesias Completas”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1996.

 [...]

Tem uma passagem estreita dentro de mim,
tão estreita que suas paredes me lenham toda,
mas essa passagem desemboca na largura de Deus.
Nem sempre tenho força para atravessar
esse deserto sangrento, mesmo sabendo que,
se me forçar a me doer todo entre as paredes,
mesmo sabendo que desembocarei para a luz aberta
de uma dia trêmulo de sol macio.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Um Sopro de Vida”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1978.

PORTA DE SONHOS

Fiz uma porta de sonhos
com duas partes viradas
para as portas do jardim
os dias foram tamanhos
e de todos fiz os sonhos
que vivi dentro de mim...

Naquelas partes viradas
para as rosas do jardim
inventei uma esperança
de viver de quase nada
e minha vida inventada
do nada restou assim...

A alma nua e penitente
com a calma da manhã
e a memória do jardim
no sonho da primavera
convivendo de quimera
nas duas partes de mim...


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com/2016_11_12_archive.html

“NA SOLIDÃO DAS NOITES ÚMIDAS

Como tenho pensado em ti na solidão das noites úmidas,
De névoa úmida,
Na areia úmida!
Eu te sabia assim também, assim olhando a mesma cousa
No ermo da noite que repousa.
E era como se a vida,
Mansa, pousasse as mãos sobre a minha ferida...

Mas, ah! como eu sentia
A falta de teu ser de volúpia e tristeza!
O mar... Onde se via o movimento da água,
Era como se a água estremecesse em mil sorrisos.
Como uma carne de mulher sob a carícia.
O luar era um afago tão suave,
– Tão imaterial –
E ao mesmo tempo tão voluptuoso e tão grave!
O luar era a minha inefável carícia:
A água era teu corpo a estremecer-se com delícia.

Ah! em música pôr o que eu então sentia!
Unir no espasmo da harmonia
Esses dois ritmos contrastantes:
O frêmito tão perdidamente alegre de amor sob a carícia
E essa grave volúpia da luz branca.

Oh! viver contigo!
Viver contigo todos os instantes...
Harmoniosa e pura,
Sem lastimar a fuga irreparável dos anos,
Dos anos lentos e monótonos que passam,
Esperando sempre que maior ventura
Viesse um dia no beijo infinito da mesma morte...


*Manuel Bandeira*  
Em “A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2008.

 “Eu batia pé – porque era impertinente, e porque queria algo ‘agora’.
Um dos adultos, divertido, disse: – O agora nem existe!
Aborrecida, pedi a meu pai que me explicasse aquilo, e ele tentou:
– O tempo está sempre passando, é como a água de um rio, a cada
instante tudo muda. Até a gente não é a mesma pessoa de um
segundo atrás.
E acrescentou para eu entender melhor:
– Quando a gente começa a pensar a palavra ‘agora’, entre o primeiro
‘a’ e o ‘a’ final já transcorreu um tempinho, portanto nada é a
mesma coisa, e a cada momento a gente não é a mesma pessoa.
Levei dias procurando em vão empilhar as letras do ‘agora’ para que
fossem uma coisa só, num só instante. Mas não consegui enganar
a esfinge que nos proporciona pequenos milagres e grandes tragédias,
no duelo das ideias e das palavras ansiosas.


*Lya Luft*
Em “O Tempo é um Rio que Corre”, Rio de Janeiro, Editora Record, 1ª Edição, 2014.

domingo, 21 de novembro de 2021

 “Benvinda

[...]

Certo de estar perto da alegria
Comunico finalmente
Que há lugar na poesia
Pode ser que você tenha
Um carinho para dar
Ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar
Que é tempo ainda
Benvinda
”.

[...]

*Composição: Chico Buarque de Holanda*
Extraí daqui: http://www.chicobuarque.com.br/letras/benvinda_68.htm

PARTE XIV

A descoberta do mundo


[...]

Um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher
que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente
que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la.

A alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece
que só se as viu depois que tombaram.

Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é
tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama.
Há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou
uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível
e um mundo impalpável.
Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando
consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.

Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável,
e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “AS PALAVRAS”, Rio de Janeiro, Editora Rocco Ltda., 1ª Edição, 2013.

 “O tamanho da gente

O homem acha o Cosmos infinitamente grande
E o micróbio infinitamente pequeno.
E ele, naturalmente,
Julga-se do tamanho natural...
Mas, para Deus, é diferente:
Cada ser, para Ele, é um universo próprio.
E, a Seus olhos, o bacilo de Koch,
A estrela Sírius e o Prefeito de Três Vassouras
São todos infinitamente do mesmo tamanho...


*Mario Quintana*
Em “VELÓRIO SEM DEFUNTO”, Rio Grande do Sul,
Editora Globo, 1ª Edição, 2009.

Barco Perdido

Oh! a vida é uma grande renúncia, partida
em pequenos fragmentos, todo dia, toda hora…
E a ironia maior, é que às vezes, a vida
de renúncia em renúncia aos poucos vai embora…

Tu voltaste de novo… e o doce amor de outrora
trouxeste ainda no olhar, na expressão comovida.
e eis que o meu coração no reencontro de agora
transforma em labareda a chama adormecida…

No entanto, que fazer? Há uma âncora no fundo…
Hoje, sou como um barco sobre o mar do mundo,
barco esquife, onde jaz um marinheiro morto…

Velas rôtas ao vento… os mastros aos pedaços…
E te vejo seguir, e a acenar-me teus braços,
e me deixo ficar, sem destino, nem porto…


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, Rio de Janeiro,
Editora Novo Tempo Edições, 2ª Edição, 1982.

 Alvorada Eterna

Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos…

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos…

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca…

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!


*J. G. de Araújo Jorge*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, Rio de Janeiro,
Editora Novo Tempo Edições, 2ª Edição, 1982.

 “Soneto 013

Alegres campos, verdes arvoredos,
claras e frescas águas de cristal,
que em vós os debuxais ao natural,
discorrendo da altura dos rochedos;
 
silvestres montes, ásperos penedos,
compostos em concerto desigual,
sabei que sem licença do meu mal,
já não podeis fazer meus olhos ledos.
 
E, pois já não me vedes como vistes,
não me alegrem verduras deleitosas,
nem águas que correndo alegres vêm.

semearei em vós lembranças tristes,
regando-vos com lágrimas saudosas,
e nascerão saudades de meu bem.


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES – OBRA COMPLETA”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.

 VENTUROSA de sonhar-te,
à minha sombra me deito.
(Teu rosto, por toda parte,
mas, amor, só no meu peito!)

– Barqueiro, que céu tão leve!
Barqueiro, que mar parado!
Barqueiro, que enigma breve,
o sonho de ter amado!

Em barca de nuvem sigo:
e o que vou pagando ao vento
para lever-te comigo
é suspiro e pensamento.

– Barqueiro, que doce instante!
Barqueiro, que instante imenso,
não do amado nem do amante:
mas de amar o amor que penso!


*Cecília Meireles*
Em “Obra Poética – Volume Único (Canções)”, Rio de Janeiro,
Nova Aguilar Editora, 3ª Edição (6ª Reimpressão), 1987.

 “AS TRÊS MULHERES DO SABONETE ARAXÁ

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me
bouleversam, me hipnotizam.
Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres
do sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do
sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida,
dava pra beber e nunca mais telefonava.
Mas se a terceira morresse... Oh, então, nunca mais
a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei?
Queres uma ilha no Pacífico? Um bangalô em Copacabana?
Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca.
Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Teresópolis, 1931.


               *Manuel Bandeira*               
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (Estrela da Manhã )”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

 “ONDE ESTÁS?

É meia-noite... e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
‘Vento frio do deserto,
Onde ela está?  Longe ou perto?’
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
‘Oh! Minh’amante, onde estás?...’

Vem! É tarde!  Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono!...
Stá vazio nosso leito...
Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu’eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro
Oh! Minh’amante, onde estás?...

Estrela – na tempestade,
Rosa – nos ermos da vida;
lris – do náufrago errante,
Ilusão – d’alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu!...
...E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
‘Oh! Minh’amante, onde estás?...’.


*Castro Alves*
Em “Poesias Completas (Espumas Flutuantes)”, Rio de Janeiro,
Volume II, Editora Spiker, 1967.

Cântico primeiro de Aninha

A estrada está deserta,
vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de há muito se apagou.

A longa noite escura…
A caminhada…
Carreando pedras,
construindo com as mãos sangrando
minha vida.

Deserta a longa estrada…
Mortas as mãos viris que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta
Leiteando imensos vegetais.
Cavalgando o negro corcel da febre,
Desmontado para sempre.

Passa a falange dos mortos…
Silêncio. Os namorados dormem.
Flutuam véus roxos no espaço.
Na esquina do tempo morto
À sombra dos velhos seresteiros… A flauta, o violão, o bandolim.
Alertas as vigilantes,
barroando portas e janelas cerradas.
Cantava de amor a mocidade.

A estrada está deserta…
Alguma sombra escassa
buscando o pássaro perdido.
Morro acima. Serra abaixo. Ninho vazio de pedras.
Eu avante na busca fatigante
de um mundo impreciso,
todo meu.
feito de sonho incorpóreo
e terra crua.

Bandeiras rotas, despedaçadas,
quebrado o mastro na luta desigual.
Sozinha, pisada. Nua. Espoliada, assexuada.
Sempre caminheira, removendo pedras.
Morro acima. Serra abaixo.
Longa procura de uma furna escura,
fugitiva a me esconder.
Escondida no meu mundo.
Longe… Longe…
Indefinido longe, nem sei onde.

O tardio encontro.
Passado o tempo de semear o vale,
de colher o fruto.
O desencontro,
da que veio cedo e do que veio tarde.

A candeia está apagada
e na noite gélida eu me vesti de cinzas.

Meus olhos estão cansados
Meus olhos estão cegos
Os caminhos estão fechados.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”,
São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

sábado, 13 de novembro de 2021

– – – – – – estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que
me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de
não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia
depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro
chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi
– na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha,
e sei que não tenho capacidade para outro.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

 [...]

É com dor que dou adeus mesmo à beleza de uma criança – quero
o adulto que é mais primitivo e feio e mais seco e mais difícil, e que
se tornou uma criança semente que não se quebra com os dentes.
Ah, e quero ver se também já posso prescindir de cavalo bebendo água,
o que é tão bonito. Também não quero a minha sensibilidade porque
ela faz bonito; e poderei prescindir do céu se movendo em nuvens?
e da flor? não quero o amor bonito.
Não quero a meia-luz, não quero a cara bem-feita, não quero o expressivo.
Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não
é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso
lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de
humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização
impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que
é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim,
menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em
nossas mãos grossas, vir a se transformar em ‘pureza’, nossas
mãos que são grossas e cheias de palavras.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

 “SILÊNCIO – CANTO III

Palavras e palavras e palavras...
Algumas, sem sentido, sem razão
de ser; outras, alucinadas como as lavas
de um vulcão...
Mas sempre as mesmas... palavras...

(Escuta o meu silêncio...)


*Onestaldo de Pennafort*
Em “Perfume e outros poemas”, Rio de Janeiro,
Editora Pimenta de Mello, 1ª edição, 1924.

 Recado aos amigos distantes

Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.

Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa (Col. Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira)”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.

Pequeno Poema Didático

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!


*Mario Quintana*
Em “Nova antologia poética”, Porto Alegre/RS,
Editora Globo, 12ª Edição, 2008. 

Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,

Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


*Mario Quintana*
Em “Canções”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

 “Tempo Perdido

Quanto tempo perdido, e como dói
pensar que nunca mais o reaveremos…
Vivemos longe um do outro, como extremos,
que o tempo, – um moinho – lentamente mói…

Quanto tempo perdido… Eu, já mudado,
sem aquele entusiasmo, aquelas ânsias
que ficaram perdidas no passado
e se vão diluindo nas distâncias…

Tu, sem aquela expressão ingênua e pura
aquele ar de menina, que pedia
proteção para um sonho de ventura
que seu olhar inquieto refletia…

Tanto tempo perdido… E houve um momento
quando nos vimos a primeira vez,
que o amor seria belo, como o vento
como o mar, como a terra, o sol, talvez!


*J. G. de Araújo Jorge*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, Rio de Janeiro,
Editora Novo Tempo Edições, 2ª Edição, 1982.

 “POEMETO IRÔNICO

O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...

Curiosidade sentimental
Do seu aroma, da sua pele.
Sonhas um ventre de alvura tal,
Que escuro o linho fique ao pé dele.

Dentre os perfumes sutis que vêm
Das suas charpas, dos seus vestidos,
Isolar tentas o odor que tem
A trama rara dos seus tecidos.

Encanto a encanto, toda a prevês.
Afagos longos, carinhos sábios,
Carícias lentas, de uma maciez
Que se diriam feitas por lábios...

Tu te perguntas, curioso, quais
Serão seus gestos, balbuciamento,
Quando descerdes na espirais
Deslumbradoras do esquecimento...

E acima disso, buscas saber
Os seus instintos, suas tendências...
Espiar-lhe na alma por conhecer
O que há de sincero nas aparências.

E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2008.

 Desligamento do poeta

A arte completa,
a vida completa,
o poeta recolhe seus dons,
o arsenal de sons e signos,
o sentimento de seu pensamento.

Imobiliza-se,
infinitamente cala-se,
cápsula em si mesma contida.

Fica sendo o não rir
de longos dentes,
o não ver
de cristais acerados,
o não estar
nem ter aparência.
O absoluto do não ser.

Não há invocá-lo acenar-lhe pedir-lhe.

Passa ao estranho domínio
de deus ou pasárgada-segunda.

Onde não aflora a pergunta
nem o tema da
nem a hipótese do.

Sua poesia pousa no tempo.
Cada verso, com sua música
e sua paixão, livre de dono,
respira em flor, expande-se
na luz amorosa.

A circulação do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância,
magia em si, prima letra
escrita no ar, sem intermédio,
faiscando,
na ausência definitiva
do corpo desintegrado.

Agora Manuel Bandeira é pura
poesia, profundamente.


*Carlos Drummond de Andrade*
Em “AS IMPUREZAS DO BRANCO”, Rio de Janeiro,
Livraria José Olympio Editora, 2ª Edição, 1974.

 “O Cântico de Dorva

I

Dorva é moça de sítio.
A mãe de Dorva morreu.
Chovia... chovia...
a noite inteira choveu enquanto gente da roça rezava alto, rezas da roça.
Dorva chorava – velava.
A morta entre as velas amarelas esperava entre flores: a mortalha, o caminhão,
o caixão que vinham da cidade.
O caixão pra morta O sufrágio pra Dorva.

II

O caminhão chegou de manhã cedo e voltou levando no caixão a mãe de
Dorva.
Levando gente, acompanhamentos, parando nos botecos das estradas –
matando o bicho
depois da noitada.
Sufrágio – luto,
coroa – caixão
englobados.

III

O luto de Dorva é pra sair na missa de sétimo ou trigésimo dia.
Já passou a missa.
Dorva tomou o lugar da morta na casa, na tina, no fogão.

IV

Dorva se chama Dorvalina.
Cabeça amarrada com lenço de chita.
Vestido grosseiro, apertado, descosturado.
Braço grosso, mãos vermelhas.
Perna grossa cabeluda.
Dorva de pé no chão: pé curto – descalço, esparramado fincado no chão.
Dorva, toda – estua sexo: vida nova.

V

Dorva é moça da roça.
Dorva lava roupa na tina: roupa grossa de homem – calça mescla, camisa de
riscado.
Geme o sarilho do poço.
Tibum... a lata vem cheia d’água.
Vai ensaboando,
vai cantando:
laranja-da-china limão-bravo, cana-doce se encontra aqui
se encontra acolá.
Pra dá, pra vendê
pra quem quisé
pra quem passá.
Se dá fogo, se dá água Não pode negá.
A cantiga de Dorva: alta, gritada
Bramido de fêmea – apelo enfeitado.

VI

É meio-dia; a sombra está marcando.
O sol num desafio de luz fustiga a poeira da estrada.
Silêncio no sítio.
Um galo canta longe.
Distante, um corno de ponteiro.
Boiadeiro vem vindo devagar...
Os homens lá no eito relanceiam enxadas.
O milharal chama Dorva.
O cheiro da terra chama.
O arrozal tem seus ninhos.
chamando Dorva.
Um assovio fino, espraiado fere Dorva.
Larga a roupa, deixa a tina.
Torce o vestido mesmo no corpo, molhado na barriga.
Olha pra os lados.
Gritam as angolas. Grita um bem-te-vi.
Dorva afunda no milharal.

VII

O ninho de Dorva.
A cama de Dorva
de palha e folha
na terra.
Deixa-se cair
sentada, deitada.
Sobre seu ventre liso, redondo desnudo,
salta o macho.
Um ofego de posse
tácito.
Sexo contra sexo.
Aquele cântico de Dorva, aquele chamado – piado de fêmea: obscuro
aflitivo
genésico
instintivo
veio vindo... veio vindo...
Rugindo
chorando
gritando
apelando
do fundo dos tempos do fundo das idades.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

domingo, 7 de novembro de 2021

Soneto 045

Leda serenidade deleitosa, que
representa em terra um paraíso;
entre rubis e perlas, doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser formosa;

fala, de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso, nela, alegre comedido;

estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa
despojar-me da glória de rendido.


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES – OBRA COMPLETA”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.

 “A MORTE ABSOLUTA
 
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
 
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
 
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
 
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
 
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: ‘Quem foi?…’
 
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.


*Manuel Bandeira*
Em “Lira dos cinquent’anos − Manuel Bandeira”,
São Paulo, Global Editora, 1ª Edição, 2013.

 “POEMETO ERÓTICO
 
Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha…
 
Teu corpo é tudo o que cheira…
Rosa… flor de laranjeira…
 
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado…
 
Teu corpo é pomo doirado…
 
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume…
 
Teu corpo é a brasa do lume…
 
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes…
 
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em antigas se derrama…
 
Volúpia da água e da chama…
 
A todo o momento o vejo…
Teu corpo… a única ilha
No oceano do meu desejo…
 
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira…
Rosa, flor de laranjeira…


*Manuel Bandeira*
Em “A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2008.

NA TERRA COMO NO CÉU

Nesta hora da tarde
quando a casa repousa
a obra de minhas mãos
é esta cozinha limpa.
Tão fácil
um dia depois do outro
e logo estaremos juntos
nas ‘colinas eternas’.
Recupera meu corpo
um modo de bondade,
a que me torna capaz
de produzir um verso.
Compreendes-me, Altíssimo?
Ele não responde,
dorme também a sesta.”


*Adélia Prado*
Em “Poesia reunida (Oráculos de Maio)”,
São Paulo, Editora Siciliano, 10ª Edição, 2001.

PERGUNTA

ESTES MEUS tristes pensamentos
vieram de estrelas desfolhadas
pela boca brusca dos ventos?

Nasceram das encruzilhadas,
onde os espíritos defuntos
põem no presente horas passadas?

Originaram-se de assuntos
pelo raciocínio dispersos,
e depois na saudade juntos?

Subiram de mundos submersos
em mares, túmulos ou almas,
em música, em mármore, em versos?

Caíriam das noites calmas,
dos caminhos dos luares lisos,
em que o sono abre mansas palmas?

Proveem de fatos indecisos,
acontecidos entre brumas,
na era de extintos paraísos?

Ou de algum cenário de espumas,
onde as almas deslisam frias,
sem aspirações mais nenhumas?

Ou de ardentes e inúteis dias,
com figuras alucinadas
por desejos e covardias?

Foram as estátuas paradas
em roda da água do jardim...?
Foram as luzes apagadas?

Ou serão feitos só de mim,
estes meus tristes pensamentos
que boiam como peixes lentos

num rio de tédio sem fim?


*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”,  
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

 “CARTA

Eu queria trazer-te uma imagem qualquer
para os teus anos...
Oh! mas apenas este vazio doloroso
de uma sala de espera onde não está ninguém...
É que,
longe de ti, de tuas mãos milagrosas
de onde os meus versos voavam – pássaros de luz
a que deste vida com o teu calor –
é que longe de ti eu me sinto perdido
– sabes? –
desertamente perdido de mim!
Em vão procuro...
mas só vejo de bom, mas só vejo de puro
este céu que eu avisto da minha janela.
E assim, querida,
eu te mando este céu, todo este céu de Porto Alegre
e aquela
nuvenzinha
que está sonhando, agora, em pleno azul!


*Mario Quintana*
Em “A Cor do Invisível”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 “Minha Biblioteca

Pátria e lar do pensamento,
porto do coração.
Minha loja de sonhos, mercado de emoções
onde faço pelas madrugadas a minha ‘feira’
para reabastecer meu espírito de realidades e ficções
e sobreviver.

Aí estão as prateleiras sortidas, estoques inesgotáveis
de fantasias a experiências
para a minha fome de conhecimentos, minha sede
de descobertas,
minhas ânsias de beleza.

É só estender a mão e colher o livro
como um fruto maduro que lentamente degusto
e, milagrosamente,
permanece inteiro, íntegro, intacto
entre folhas e flores
e surpreendentemente se renova e multiplica
em inusitados sabores.

Minha biblioteca
parque de papel e palavras
onde me perco em andanças e onde me reencontro
em tantos caminhos desconhecidos,
bosque de tantos livros, como as árvores
com quem Beethoven conversava
em seu bosque de Bonn.

Meus livros, companheiros pacientes e silenciosos
com quem diálogo horas sem conta,
que não discutem, não alteiam a voz
em tantas discordâncias inevitáveis,
e humildemente se fecham e se recolhem
a um simples gesto meu de impaciência, cansaço
ou de sono.

Minha biblioteca,
abrigo certo
oásis de águas e sombras
no imenso deserto,
que me faz decolar de tantas realidades
e planar como uma asa-delta
sozinho, sobre paisagens insuspeitadas.

Minha biblioteca,
pousada no caminho
onde me sento, a pensar,
e onde chego a esquecer que há um mundo
rosnando ameaças ao redor,
e adormeço como um menino
feliz…


*J.G. de Araújo Jorge*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA”, Rio de Janeiro,
Editora Novo Tempo Edições, 2ª Edição, 1982.

[...]

Lembrei-me de ti, quando beijara teu rosto de homem, devagar, devagar
beijara, e quando chegara o momento de beijar teus olhos – lembrei-me de
que então eu havia sentido o sal na minha boca, e que o sal de lágrimas nos
teus olhos era o meu amor por ti. Mas, o que mais me havia ligado em susto
de amor, fora, no fundo do fundo do sal, tua substância insossa e inocente e
infantil: ao meu beijo tua vida mais profundamente insípida me era dada, e
beijar teu rosto era insosso e ocupado trabalho paciente de amor, era mulher
tecendo um homem, assim como me havias tecido, neutro artesanato de vida.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

Frei Germano

Quando eu era menina bem pequena,
pela minha porta,
pela minha rua,
pela minha ponte,
via passar
os frades dominicanos.

Túnica branca.
Larga correia na cintura prendendo um rosário de contas grossas.
Hábito solto.
Cruz ao peito.
Sapatões pesados.
Um chapéu grande, preto, de abas presas, reviradas.
Às vezes, também,
conforme o tempo,
anacrônico, enorme, um guarda-chuva
amarelado, abarracado.
Muito austeros.
Muito ascetas.
Muito graves.

Corria a lhes pedir a bênção, ganhar santinho.
Frei Henrique.
Frei Constâncio.
Frei Manuel.
Frei Germano.
E quantos outros...
Já nem lembro os nomes.

Vinham de terras cultas, distantes.
Falavam nossa língua num sotaque estrangeirado, com muitos erres.
Preocupavam-se demais com os pecadores.
Queriam salvar todas as almas.
Exortavam sobre o inferno.
Contavam do purgatório.
Exaltando as maravilhas do Céu.

Frei Germano...
Quanto respeito, meu Deus!
Durezas de ascetismo.
Estatura invulgar de sacerdote.
Tão severo...
Tão alto...
descarnado.
Era a austeridade retratada, fidelíssima,
vestindo sua imensa caridade.

Diziam até que trazia cilício sobre a carne espezinhada.
Rigoroso nas regras de sua Ordem, renunciava até mesmo
ao consentido.
Desmaiava nos antigos jejuns, carregando sobre si a cruz pesada
dos pecados
da cidade.

Envergadura de atleta da Fé.
Embasamento,
sustentáculo
da Ordem de São Domingos.
Grande confessor.
Grande penitente.
Dignificou a Pátria onde nasceu.
Dignificou a Terra onde morreu.

Um dia – inda me lembro: Apareceu sem avisar na escolinha laica da
Mestra Silvina.
Minha escolinha primária...
Quanta saudade!
Muito manso,
muito humilde,
se fazendo pequenino, propôs à Mestra
em dia certo da semana, ensinar a doutrina à meninada.
Cinquenta anos decorridos, guardo na lembrança sua figura austera,
retratada,
de velho santo.
E as lições aprendidas do pequeno catecismo.
Como prêmio de aplicação conservo daquele tempo, recebido de suas
mãos, uma antiga História Sagrada e uns santinhos que me têm valido
na aflição.
E sei até hoje
se me perguntarem
os ‘Novíssimos do Homem’
que nenhum leitor, católico praticante, dirá ao certo
sem rever de novo o catecismo.

Frei Germano...
No longo caminho de pedras, de quedas, de ascensão, da vida
percorrida, nunca para mim
seu vulto se perdeu no esquecimento.
Nunca.
E eu era apenas
guria pequenina
da escolinha primária da Mestra Silvina...
E até hoje, guardião de minha fé, vai me levando pela vida
Frei Germano.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”,
São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.

 “Cidade de Santos

Sombras de Martim Afonso.
Brás Cubas, Navarro, Anchieta.
Mangue pestilento.
Tabas do íncola bravio.
Brasil novo, minha gente.

Revivo os dias do Brasil passado, nestas praias de Santos,
batidas de sol e beijadas pelo Atlântico.

Evocação do burgo, inicial e rude.
Uma coroa de terra, ressaindo do escuro charco, cerrada de morros
inóspitos, agressivos.
Pântano, mangue, praias submersas, o lagamar.

A bota ferrada do conquistador avança imperativa e audaz.
Na baliza do trabuco alçado a planta firme do negro,
os artelhos ágeis e sutis do índio.
Apontando o mostrador do Tempo.
Traçando rumos à História do futuro, os vultos austeros de Nóbrega,
José de Paiva, Anchieta.
O descobridor valente avança destemido.
Vence Paranapiacaba e, alargando trilhas, sobe lentamente, decidido.
Conquista a serrania imensa.
Firma-se no Planalto,
e gesta Piratininga.

Revejo os dias do Brasil passado nesta cidade autêntica
no estilo lusitano.
Nestas velhas igrejas de barroco original.
Nestas ruas estreitas, desiguais.
Nestas frentes vestidas de azulejos.
Nos portais de pedra destas casas de beirais.

Revivo as eras do Brasil primevo nestas ruas de Santos, de nomes
legendários: Manoel da Nóbrega, Brás Cubas, Fernão Dias, Tibiriçá,
Anchieta.
Escola de Sagres... Caravelas e veleiros.
Naus do descobrimento.
Mestres marinheiros,
reis dos mares oceanos.

Marujos e gajeiros.
Velho Portugal de meus avós.
Rudo tronco ancestral, genealógico.
Minas e bandeiras, cidades e forais.
Unidade de raça, de língua, de ética, de costumes.
Heredos e atavismos, nômades e sedentários...
Assimilação e repulsa.
Afro, luso, ameríndio.
Tateio entre as raças donde provenho para o desconhecido
dos destinos.
Combatendo a mim própria,
procuro conjugar estranha sensação de ser e de não ser...
Afro, lusitano e bugre
– sou a herança hesitante de vós três.

Praias de Santos...
Íncolas e lusos.
Fidalgos e plebeus.
Negros da Costa d’África.
Piratas e salteadores.
Traficantes e bastardos.
Frades e judeus
pisaram estas areias
e se acoitaram nestes recantos.


*Cora Coralina*
Em “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”,
São Paulo, Editora Global, 8ª Edição, 1985.