sábado, 4 de dezembro de 2021

 Cantigas leva-as o vento

A lembrança dos teus beijos
Inda na minh’alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas dum livro triste.
 
Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar’cido
Revive numa saudade!


*Florbela Espanca*
Em “TROCANDO OLHARES”, São Paulo, Editora Martin Claret, 1ª Edição, 2009.

 “Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?


*Cecília Meireles*
Em “Poesia completa – Dispersos (1918-1964), Volume 1”,
Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

Intermezzo

Eu tinha essa alma toda iluminada,
como as vilas fantásticas das eras
dos dragões, salamandras e quimeras
de um sonho remotíssimo de fada...

Eu tenho esta alma toda de tristezas
vestida, e luto e lágrimas e opalas...
– Porque os Degoladores de Princesas
por mim passaram para degolá-las...


*Cecília Meireles*
Em “NUNCA MAIS... E POEMA DOS POEMAS”, São Paulo, Editora Global, 2ª Edição, 2015.

 “XII

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormia... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

 “IX

                                                  Para Emílio Kemp

É a mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: ALEGRIA – RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

AMOR A ELE

Através de meus graves erros – que um dia eu talvez os possa mencionar
sem me vangloriar deles – é que cheguei a poder amar.
Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente
queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer
minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo.
Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu
amo como quem cai no nada.


*Clarice Lispector*
Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.

 “QUEM SOU EU...

Ninguém se sabe em saber,
mas tu me sabes quem sou:
sou tua luz da chama acesa
depois que o fogo apagou...

Por encantos de um feitiço
ou por vícios da esperança,
sou uma presa do capricho
de trazer-te na lembrança...

Sou partes não separadas
de nós dois numa unidade
como as rosas num jardim...

Sou o anjo que me seguiu
em busca de todo o amor
que estava dentro de mim.


*Julis Calderon d'Estéfan*
(Heterônimo de Afonso Estebanez)
Extraí daqui:
http://afonsoestebanez.blogspot.com/search?updated-max=2013-12-08T09:35:00-03:00&max-results=10&start=30&by-date=false

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!


*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (Belo Belo)”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

 TEMA E VARIAÇÕES

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.

Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.

Sonhei ter sonhado…
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.

Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.


*Manuel Bandeira*
Em “Opus 10”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2015.

 “Segue-me

Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Segue-me. E eu te darei repouso e sombra na tua caminhada.
Afastarei pedras e farpas de teus pés caminheiros.
Abençoarei tuas mãos de trabalhador.
Farei do trabalho o lazer e aprazimento de tua vida.
Segue-me.

Esperando sempre confiante.
Eu te darei a certeza da vida eterna e curarei as dúvidas que te flagelam.
Terás alegria nos teus espaços, marcarás na terra caminhos de esperança.
O futuro se fará risonho e aberto aos que não veem e creem.
Segue-me.

Transformarei a tua vida e te levarei ‘a verdes pastos’.
Porei em tuas mãos o cajado do pastor e cuidarás do meu rebanho disperso.
Plantarás o trigo abençoado, o vinho da alegria e o linho da pureza.
Segue-me.

Eu te farei pescador de todos os errados e perdidos,
errantes pela Terra.

Ele passava pelo mercado público, lá estava o publicano Levi,
com os seus livros e folhas de argila, cobrando aos mercadores
os tributos de César.
Jesus olhou, alcançou o íntimo profundo e reservado do publicano e disse:
‘Segue-me’. Levi deixou suas pedras e números
e se fez discípulo ao lado do Mestre.

O pequeno Zaqueu, ‘homem baixo de estatura’,
queria ver o Mestre aclamado
e a multidão lhe tirava a visão.
Ele subiu numa árvore, queria ver, precisava ver o Cristo,
caminheiro nas terras da Judeia.
Jesus o viu antes que fosse visto e disse:
‘Desce desta árvore, Zaqueu, que hoje a salvação entrou em tua casa.’
Zaqueu partilhou seus bens com os pobres e tomou seu lugar ao lado do Mestre.
Segue-me.

O Moço procurou Jesus. Tinha tudo e cumpria os preceitos.
Que mais poderia fazer para merecer das promessas?
Renuncia ao que tens e terás o dobro do que contas.

Pedro lançava suas redes.
O Mestre passou e disse: ‘Recolhe tuas redes
e eu te farei pescador de homens’.
Segue-me.

Jovens e adultos, eu vos darei o que debalde buscais com afã,
um pouco de felicidade.
Farei ver o que está dentro de cada um, templo e morada do Espírito Santo.
Eu vos darei os sete dons do espírito e vos sentireis pleno
da sabedoria da vida, que debalde procurais.
Farei ver a vossa própria razão de vida e de morte,
responderei às vossas indagações.
Segui-me.

Os que governam, os que comandam.
Darei ocupação aos desocupados, saúde aos enfermos,
inteligência aos ignorantes.
Eu vos farei a luz da candeia acesa que vai na frente
e aclara o caminho escuro.
Segui-me.

Juízes que repartis julgamentos, eu vos darei
a balança da equidade e a certeza do Direito.
Segui-me.

Advogado que reivindicas Justiças aos que dela, carentes,
têm fome e sede.
Médico. Eu te darei a melhor ciência de curar dores alheias
e suavizar a partida dos que se vão.
Segue-me.

Vós todos, homens da terra, encherei as vossas tulhas
e o trabalho de vossos braços será um cântico para o alto.
Segui-me.

Todas as perdidas do mundo eu vos darei vestes novas
de pureza e de brancura.
Segui-me.

Ladrões e arrombadores.
Eu abrirei as portas do Céu e vos acharei fartos e fiéis.
Sereis guardas dos bens eternos.
Segui-me.

Presidiário, busca-me na solidão da tua cela
e eu te levarei no caminho da recuperação e da Paz.
Estou encostado a ti. Procura-me com o coração
daquele salteador condenado, a quem perdoei todos os crimes
pela força do arrependimento e esperança da salvação.
Chama por mim. Ouvirei o teu clamor.
Tomarei nas minhas tuas mãos armadas e farei de ti
um trabalhador pacífico da terra.
Segue-me.

Estou ao teu lado, sou tua sombra.
Abrirei os cárceres do teu espírito,
encherei de luz, não só tua cela escura,
senão, também, a cela escura do teu entendimento.
Segue-me.

Jovem, eu te livrarei do vício e do fracasso.
Da droga destruidora e te farei direito,
pelos caminhos entortados.
Segue-me.

Quem chama por mim não cansa nunca.
Quando tardo, estou no caminho.
Farei leve a tua cruz.
Um Simão Cirineu, porei ao teu lado.

Desalentados e descrentes.
Mulheres perdidas, viciados e criminosos.
Vos lavarei a todos na água do perdão,
se me procurardes de coração aberto.

Um ladrão, companheiro de minha cruz,
eu o levei ao Pai, pela força da palavra – ‘Senhor, lembrai-vos
de mim, quando estiverdes com vosso Pai.’
Eu o limpei de todos os erros e lhe foi dada a salvação.

Presidiário, que, roendo paredes e pedras,
ganhas a liberdade e voltas de novo à prisão
que abristes com a pua da tua vontade.
Se me seguires, nunca mais voltarás à prisão,
porque te porei nos meus caminhos.
Darei luz à tua cela escura e farei iluminada
a cela mais escura do teu espírito.
Segue-me.

Todos os perdidos da vida.
Não vim ao mundo para os que estão salvos,
e sim para os enfermos.
Farei de ti a candeia acesa,
guiando a caminhada dos cegos.

Senhor, os privilegiados, cerradas suas oiças
à palavra da renovação, davam-lhe as costas.
Não podiam suportar aquelas verdades da palavra nova,
e dissestes a um discípulo ao vosso lado:
‘Tu também queres me deixar?’

Este respondeu:
‘Senhor, aonde irei sem Vós? Tendes palavras de Vida Eterna.’
Jesus, eu sou aquele cego, surdo e mudo.
Tropeço nos caminhos errados.
Minha fé é frágil, o mundo me domina.
sustentai a minha fé.
Senhor! Aonde irei sem Vós?…


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”,
São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.