quarta-feira, 29 de setembro de 2021


[...]  

E todos os dias ficarei tão alegre que incomodarei os outros,
o que pouco me importa, já que eu tantas vezes sou incomodada
pela alegria superficial e digestiva dos outros.
Pronto, encontrei uma boa fórmula: poucas vezes a gente encontra
pessoas cuja alegria não seja somente digestiva. Concorda?


[...]

*Clarice Lispector*
(Fragmento extraído da Carta de Clarice Lispector para a
sua irmã Elisa Lispector – Nápoles, 29 de janeiro de 1945).
Em “Minhas Queridas”, Org. e introd. Teresa Montero,
Rio de Janeiro, Editora Rocco Ltda., 1ª Edição, 2007.

 “O DIA DE JOANA

[...]

Mas estou cansada, apesar de minha alegria de hoje,
alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha
de verão. Estou cansada, agora agudamente!
Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar
tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada.
Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso,
Deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em
alguma parte há coisas que não conheço.
Durmamos sobre Deus e o mistério,
nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.


[...]     

*Clarice Lispector*
Em “Perto do coração selvagem”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 9ª Edição, 1980.

 “Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, – e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente...

Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.


*Cecília Meireles*
Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”,  
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira - MEC, Volume 2, 1973.

 A Rua dos Cataventos

IV

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...


*Mario Quintana*
Em “A Rua dos Cataventos”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

Canção da Aia para o filho do Rei
 
Mandei pregar as estrelas
Para velarem teu sono.
Teus suspiros são barquinhos
Que me levam para longe...
Me perdi no céu azul
E tu, dormindo, sorrias.
Despetalei uma estrela
Para ver se me querias...
Aonde irão os barquinhos?
Com que será que tu sonhas!
Os remos mal batem n’água...
Minhas mãos dormem na sombra.
A quem será que sorris?
Dorme quieto, meu reizinho.
Há dragões na noite imensa,
Há emboscadas nos caminhos...
Despetalei as estrelas,
Apaguei as luzes todas.
Só o luar te banha o rosto
E tu sorris no teu sonho.
Ergues o braço nuzinho,
Quase me tocas... A medo
Eu começo a acariciar-te
Com a sombra de meus dedos...
Dorme quieto, meu reizinho.
Os dragões, com a boca enorme,
Estão comendo os sapatos
Dos meninos que não dormem...


*Mario Quintana*
Em “Canções”, Porto Alegre, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.

MURMÚRIO D'ÁGUA

Murmúrio d'água, és tão suave a meus ouvidos...
Faz tanto bem à minha dor teu refrigério!
Nem sei passar sem teu murmúrio a meus ouvidos,
Sem teu suave, teu afável refrigério.

Água de fonte... água de oceano... água de pranto...
Água de rio...
Água de chuva, água cantante das lavadas...
Têm para mim, todas, consolos de acalanto,
A que sorrio...

A que sorri a minha cínica descrença.
A que sorri o meu opróbrio de viver.
A que sorri o mais profundo desencanto
Do mais profundo e mais recôndito em meu ser!
Sorriem como aqueles cegos de nascença
Aos quais Jesus de súbito fazia ver...

A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama
Tranquila e mansa.
Talvez ouvi, quando criança,
Cantigas tristes que cantou à minha cama.
Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa.
Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa
Do teu rumor, murmúrio d'água...

A meiga e triste rapariga
Punha talvez nessa cantiga
A sua dor e mais a dor de sua raça...
Pobre mulher, sombria filha da desgraça!

- Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.


*Manuel Bandeira*
Em “ANTOLOGIA POÉTICA (O Ritmo Dissoluto)”,
Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 16ª Edição, 1986.

“DIVINA COMÉDIA

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: – ‘Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis
N’um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

‘Porque é que para a dor nos evocastes?’
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: – ‘Homens! por que é que nos criastes?’.”

*Antero de Quental*
Em “Sonetos (antologia), org. José Lino Grunewald”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1991.

 “LAPA DE BANDEIRA

(Quinta rima)

                                               A Manuel Bandeira

Existia, e ainda existe
Um certo beco na Lapa
Onde assistia, não assiste
Um poeta no fundo triste
No alto de um apartamento
Como no alto de uma escarpa.

Em dias de minha vida
Em que me levava o vento
Como uma nave ferida
No cimo da escarpa erguida
Eu via uma luz discreta
Acender serenamente.

Era a ilha da amizade
Era o espírito do poeta
A buscar pela cidade
Minha louca mocidade.
Como uma nave ferida
Perambulando patética.

E eu ia e ascensionava
A grande espiral erguida
Onde o poeta me aguardava
E onde tudo me guardava
Contra a angústia do vazio
Que embaixo me consumia.

Um simples apartamento
Num pobre beco sombrio
Na Lapa, junto ao convento...
Porém, no meu pensamento
Era o farol da poesia
Brilhando serenamente.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.

 “O Triângulo da Vida

Minha bisavó não falava errado, falava no antigo,
ficou agarrada às raízes e desusos da linguagem
e eu assimilei o seu modo de falar.
Ela jamais pronunciou ‘metro’, sempre ‘côvado’ ou ‘vara’.
Nunca disse ‘travessa’ e sim ‘terrina’, rasa ou funda que fosse,
nunca dizia ‘bem-vestido’, falava – ‘janota’ e ‘fama’ era ‘galarim’.
Sobraram na fala goiana algumas expressões africanas, como Inhô, Inhá,
Inhora, Sus Cristo. Muito longe a currutela dos negros
que seus descendentes vão corrigindo através de gerações.

Nada tão real como a apóstrofe do gênesis:
‘Tu és pó e ao pó retornarás’.
O homem foi feito do barro da terra.
Sim, ele foi feito de todos os elementos que formam a Terra,
que contêm vida e de onde, na desintegração da morte, volta
para o todo Universal. E a vida não sendo senão resultante
do meio magnético que compõe o Cosmos.
Um dia, o curto-circuito e a sensação de esmorecimento e decadência,
a quebra do ritmo vital,
a paralisação total.
O meio físico é todo magnético
e somos acionados por esta corrente fluídica e contínua.
O que dá vida à semente, aquilo que vulgarmente se diz o coração
e que a genética determina germe vital, onde se concentra a força magnética
que em contato com o magnetismo da terra, água e ar,
faz o milagre da germinação, a súmula da própria vida acionada
pelo poder criador que é a presença invisível de Deus.
Tudo o que somos usuários vem da terra e volta para a terra.
Terra, água e ar. O triângulo da vida.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

 “Nunca estive cansada
 
Fiz doces durante quatorze anos seguidos.
Ganhei o dinheiro necessário.
Tinha compromissos e não tinha recursos.
Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior.

Fiz amigos e fregueses. Escrevi livros e contei estórias.
Verdades e mentiras. Foi o melhor tempo de minha vida.
Foi tão cheio e tão fértil que me fez esquecer a palavra
‘estou cansada’.
Cansada talvez a lavadeira do rio Vermelho da minha cidade.
Talvez a mulher da roça de São Paulo, nem mesmo ela.
Nunca ouvi da lavadeira a expressão ‘estou cansada’.
Sim, seu medo: faltar a freguesa e trouxa de
roupa para lavar e passar.
Suas constantes, quando na folga: ‘Graças a Deus!’
Seu dia começava com a aurora e continuava com a noite.
 
Tive trabalhadores e roçados. Plantei e colhi por suas mãos calosas.
Jamais ouvi de algum: ‘Estou cansado’.
Fagueiros pela tarde, corriam para o ribeirão.
Trocavam suas camisas e sentavam para jantar.
Sempre identificados com a lavoura, interessados,
preocupados com o tempo bom ou mau.
Acompanhavam o progresso das lavouras e a festa das colheitas.
Viam com prazer o paiol cheio e a tulha derramando,
embora não tivessem parte naqueles lucros.
Sentiam o bem estar obscuro e desprendido
de todo ‘peão’ que, trabalhando a dia, ajudados pelo tempo,
vêem o lucro da colheita e a vantagem do patrão.
Ponha sempre nas mãos do trabalhador, mesmo fraco, uma ferramenta forte.
Observe o resultado. A boa ferramenta estimula o trabalhador.
O trabalhador sente-se forte e seu trabalho se faz leve e ele se esperta
e até mesmo canta, abrindo o eito, estimula os companheiros,
joga pilhéria, graceja e alegra seus parceiros.
 
Estas coisas lá longe,
Nos reinos da cidade de Andradina.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

 “João Porém, o criador de perus
 
[...]
 
viver é um rasgar-se e remendar-se.

[...]

*João Guimarães Rosa*
Em “Tutaméia – Terceiras Estórias”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 8ª Edição, 2001.

Luminescência

[...]

Preferia que você não telefonasse avisando que vinha.
Queria que você, sem uma palavra, apenas viesse.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”,
Rio de Janeiro, Editora Sabiá, 1ª Edição, 1969.

 “TEMPESTADE DE ALMAS
 
[...]

Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete
esta tarde triste que uma palavra humana salvaria.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Onde estivestes de noite”, Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 7ª Edição, 1994.

 “O RELATÓRIO DA COISA
 
[...]

Nós dividimos o tempo quando ele na realidade não é divisível.
Ele é sempre e imutável.
Mas nós precisamos dividi-lo.
E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Onde estivestes de noite”, Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 7ª Edição, 1994.

[...]

Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos.
Eu não caibo no estreito,
eu só vivo nos extremos.

Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir,
de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.

[...]

*Clarice Lispector*
Fragmentos extraídos da entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner,
Programa Panorama, TV Cultura”, em 1º de fevereiro de 1977.

Poema
 
Oh! aquele menininho que dizia
‘Fessora, eu posso ir lá fora?’
Mas apenas ficava um momento
Bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
Somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.


*Mario Quintana*
Em “A vaca e o hipogrifo”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 “O milagre

Dias maravilhosos em que os jornais vêm cheios
de poesia...
E do lábio do amigo brotam palavras de eterno
encanto...
Dias mágicos...
Em que os burgueses espiam,
Através das vidraças dos escritórios,
A graça gratuita das nuvens...


*Mario Quintana*
Em “Nova antologia poética”, Porto Alegre/RS, Editora Globo, 12ª Edição, 2008.

 “Oração

Dai-me a alegria
Do poema de cada dia.
E que ao longo do caminho
Às almas eu distribua
Minha porção de poesia
Sem que ela diminua...
Poesia tanta e tão minha
que por uma eucaristia
possa eu fazê-la sua
‘Eis minha carne e meu sangue!’
A minha carne e meu sangue
em toda a ardente impureza
deste humano coração...
Mas, ó Coração Divino,
deixai-me dar de meu vinho,
deixai-me dar de meu pão!
Que mal faz uma canção?
Basta que tenha beleza...
”   

*Mario Quintana*
Em “A Cor do Invisível”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

 “Aquela Gente Antiga I

Aquela gente antiga era sábia
e sagaz, dominante.
‘Criançada, para dentro,’
quando a gente queria era brincar.
Isto no melhor do pique.
‘Já falei que o sereno
da boca da noite faz mal’…
Como sabiam com tanta segurança
e autoridade?
Eram peritas em classificar as frutas:
Quente, fria e reimosa.
Quente, abriam perebas nas pernas, na cabeça,
pelos braços.
Fria, encatarroava, dava bronquite.
Reimosa, trazia macutena.

Aquela Gente Antiga II

Aquela gente antiga explorava a minha bobice.
Diziam assim, virando a cara como se eu estivesse distante:
‘Senhora Jacinta tem quatro fulores mal falando.
Três acham logo casamento, uma, não sei não, moça feia num casa fácil.’
Eu me abria em lágrimas. Choro manso e soluçado…
‘Essa boba… Chorona… Ninguém nem falou o nome dela…’
Minha bisavó ralhava, me consolava com palavras de ilusão:
Sim, que eu casava. Que certo mesmo era menina feia, moça bonita.
E me dava a metade de uma bolacha.
Eu me consolava e me apegava à minha bisavó.
Cresci com os meus medos e com o chá de raiz de fedegoso,
prescrito pelo saber de minha bisavó.
Certo que perdi a aparência bisonha. Fiquei corada
e achei quem me quisesse.
Sim, que esse não estava contaminado dos princípios goianos,
de que moça que lia romance e declamava Almeida Garrett
não dava boa dona de casa.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

Lucros e Perdas

I

Eu nasci num tempo antigo, muito velho,
muito velhinho, velhíssimo.

II

Fui menina de cabelos compridos trançados, repuxados, amarrados com tiras
de pano.
Minha mãe não podia comprar fita.
Tinha vestidos compridos de babado e barra redobrada (não fosse eu crescer e
o vestido ficar perdido).
Minha bisavó, setenta anos mais velha do que eu, costurava meus vestidos.
Vestido ‘pregado’.
Sabe lá o que era isso?
A humilhação da menina botando seios, vestindo vestido pregado...
Tinha outros: os mandriões, figurinos da minha bisavó.

III

Fui menina do tempo antigo.
Comandado pelos velhos: Barbados, bigodudos, dogmáticos – botavam cerco
na mocidade.
Vigilantes fiscalizavam, louvavam, censuravam.
Censores acatados. Ouvidos.
Conspícuos.
Felizmente, palavra morta.

IV

A gente era tão original e os velhos não deixavam.
Não davam trégua.
Havia um gabarito estatuído decimal e certa régua reguladora de medidas
exatas:
a rotina, o bom comportamento, parecer com os velhos, ter atitudes de ancião.

V

Fui moça desse tempo.
Tive meus muitos censores intra e extralar.
Botaram-me o cerco.
Juntavam-se, revelavam-se incansáveis. Boa gente.
Queriam me salvar.

VI

Revendo o passado,
balanceando a vida...
No acervo do perdido, no tanto do ganhado
está escriturado:
– Perdas e danos, meus acertos.
– Lucros, meus erros.
Daí a falta de sinceridade nos meus versos.”


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

domingo, 12 de setembro de 2021

Quem é você mulher, homem ou jovem que me lê quase todos os dias?

 

[...]

Quanto ao resto, ladies e gentlemen, eu me calo.
Só não conto qual é o segredo da vida porque ainda não aprendi.
Mas um dia eu serei o segredo da vida.
Cada um de nós é o segredo dá vida e um é outro e o outro é um.
 
Não devo esquecer a modéstia franciscana da doçura de um passarinho.
Dizei coisas maravilhosas ah vós que quereis escrever a vida por mais
longa e curta. É uma maldita profissão que não dá descanso.
Não sei se é o sonho que me faz escrever ou se o sonho é o resultado
de um sonho que vem de escrever. Estamos nós plenos ou ocos?
Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu segredo?


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Um Sopro de Vida”,  Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1978.

Perguntas grandes

Pessoas que são leitoras de meus livros parecem ter receio de que eu, por estar
escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E muitas disseram:
‘Seja você mesma.’ Um dia desses, ao ouvir um ‘seja você mesma’, de repente
senti-me entre perplexa e desamparada. É que também de repente me vieram
então perguntas terríveis: quem sou eu? como sou? o que ser?
quem sou realmente? e eu sou? Mas eram perguntas maiores do que eu.

 
*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 ESCREVENDO

[…]

E como se isso não bastasse, infelizmente não sei ‘redigir’, não
consigo ‘relatar’ uma idéia, não sei ‘vestir uma idéia com palavras’.
O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe.
– Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de
que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo.
Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira
ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo,
jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta
gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o
mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas
decepções inconsoláveis: não usaria palavras. O que pode vir a
ser a minha solução. Se for, bem-vinda.


*Clarice Lispector*
Em “PARA NÃO ESQUECER”, Rio de Janeiro, Rocco, 1ª Edição, 1999.

O Sonho acordado é que é a realidade

[...]

Eu vou me acumulando, me acumulando, me acumulando
– até que não caibo em mim e estouro em palavras.


[...]
   
*Clarice Lispector*
Em “Um Sopro de Vida”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 1978.

[...]

Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio
rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de um certo tempo
cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha.
É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo,
fico de susto alegre.
Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca.
Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga
tão indiretamente e intimamente?

No fundo de tudo há a aleluia. Este instante é. Você que me lê é.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.


[...]

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já 
que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo 
instante-já que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.
Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles 
espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero 
capturar o presente que
pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me 
escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor – pela límpida 
abstração de estrela do que se sente – capta-se a incógnita do instante 
que é duramente cristalina e vibrante
no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si:
no amor o instante de impessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo,
matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes – e o que se sente é ao mesmo
tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto,
alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante.
E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. E canto aleluia para
o ar assim como faz o pássaro.
E meu canto é de ninguém. Mas não há paixão sofrida em dor e amor
a que não se siga uma aleluia.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.

 [...]

Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras.
Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para
além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra
– a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.
Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar
a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca,
incorporou-a o que salva então é escrever distraidamente.
Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível
de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.
O que te direi? te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo
e de um modo febril.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “Água Viva”, Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1ª Edição, 1998.

 [...]

Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.   [...]
E a lágrima que vem do riso de dor é o contrário da redenção.   [...]
Eu via que o inferno era isso: a aceitação cruel da dor, a solene
falta de piedade pelo próprio destino, amar mais o ritual de
vida que a si próprio
   [...]
E minha alma impessoal me queima.   [...]
E porque minha alma é tão ilimitada que já não é eu, e porque
ela está tão além de mim – é que sempre sou remota a mim mesma,
sou-me inalcançável como me é inalcançável um astro.
Eu me contorço para conseguir alcançar o tempo atual que
me rodeia, mas continuo remota em relação a este mesmo instante.
O futuro, ai de mim, me é mais próximo que o instante já.
  [...]
Minha vida é mais usada pela terra do que por mim,
sou tão maior do que aquilo que eu chamava de ‘eu’ que,
somente tendo a vida do mundo, eu me teria.
  [...]
O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos
a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende
realizarmos o nosso destino fatadestino fatal. 
[...]
Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou.
Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei
fora de minha natureza especificamente viva.
  [...]
E não preciso cuidar sequer de minha alma, ela cuidará fatalmente
de mim, e não tenho que fazer para mim mesma uma alma: tenho
apenas que escolher viver. Somos livres, e este é o inferno.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo G.H.”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

Cantoria

I

Meti o peito em Goiás e canto como ninguém.
Canto as pedras, canto as águas, as lavadeiras, também.
Cantei um velho quintal com murada de pedra.
Cantei um portão alto com escada caída.
Cantei a casinha velha de velha pobrezinha.
Cantei colcha furada estendida no lajedo; muito sentida,
pedi remendos pra ela.
Cantei mulher da vida conformando a vida dela.

II

Cantei ouro enterrado querendo desenterrá.
Cantei cidade largada.
Cantei burro de cangalha com lenha despejada.
Cantei vacas pastando no largo tombado.
Agora vai se acabando Esta minha versejada.
Boto escoras nos serados por aqui vou ficando.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

 “Errados Rumos

A caminhada...
Amassando a terra.
Carreando pedras.
Construindo com as mãos sangrando
a minha vida.

Deserta a longa estrada.
Mortas as mãos viris que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta leiteando imensos vegetais, cavalgando o negro corcel
da febre, desmontado para sempre.
Passa a falange dos mortos...
Silêncio! Os namorados dormem.
Os poetas cobriram as liras.
Flutuam véus roxos
no espaço.

Na esquina do tempo morto, a sombra dos velhos seresteiros.
A flauta. O violão. O bandolim.
Alertas as vigilantes barroando portas e janelas serradas.
Cantava de amor a mocidade.

A estrada está deserta.
Alguma sombra escassa.
Buscando o pássaro perdido morro acima, serra abaixo.
Ninho vazio de pedras.
Eu avante na busca fatigante de um mundo impreciso, todo meu,
feito de sonho incorpóreo e terra crua.

Bandeiras rotas.
Desfraldadas.
Despedaçadas.
Quebrado o mastro
na luta desigual.

Sozinha...
Nua. Espoliada. Assexuada.
Sempre caminheira.
Morro acima. Serra abaixo.
Carreando pedras.

Longa procura
de uma furna escura fugitiva me esconder, escondida no meu mundo.
Longe... longe...
Indefinido longe.
Nem sei onde.

O tardio encontro...
passado o tempo
de semear o vale
de colher o fruto.
O desencontro.
Da que veio cedo e do que veio tarde.

A candeia está apagada.
E na noite gélida
eu me vesti de cinzas.

Restos. Restolhos.
Renegados os mitos.
Quebrados os ícones.

Desfeitos os altares.
Meus olhos estão cansados.
Meus olhos estão cegos.
Os caminhos estão fechados.

Perdida e só...
No clamor da noite
escuto a maldição das pedras.
Meus errados rumos.
Apagada a lâmpada votiva, tão inútil.


*Cora Coralina*
Em “MEU LIVRO DE CORDEL”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2009.

domingo, 5 de setembro de 2021

A flor e a andorinha

(Tsé-Tié)

Cortei em um ramo uma flor pequenina e rosada,
e ofertei à mulher que tem lábios finos e doces
como estas flores pequeninas e rosadas…

Roubei do seu ninho uma andorinha de asas negras,
e ofertei à mulher, cujas pestanas longas
se assemelham às asas das andorinhas.

Na manhã seguinte, a florzinha pendeu, já murcha…
e a andorinha, seguindo a alma da flor, tomou voo,
pela janela aberta sobre a montanha azul…

No entanto, nos lábios da mulher amada
abre-se a flor rosada e pequenina,
e as negras pestanas, que lhe velam os claros olhos,
não têm o ar inquieto de quem quer bater as asas…

*Antônio Francisco da Costa e Silva*
Em “Poesias Completas Nova Edição Revista e Ampliada (Sangue, Zodíaco, Verhaeren,
Pandora, Verônica e Alhambra)”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 4ª Edição, 2000.

 “Transbordando

Se as tuas mãos divinas folhearem
As páginas de luto uma por uma
Deste meu livro humilde; se poisarem
Esses teus claros olhos como espuma

Nos meus versos d’amor, se docemente
Tua boca os beijar, lendo-os, um dia;
Se o teu sorrir pairar suavemente
Nessas palavras minhas d'agonia,

Repara e vê! Sob essas mãos benditas,
Sob esses olhos teus, sob essa boca,
Hão de pairar carícias infinitas!

Eu atirei minh’alma como um rito
Às trevas desse livro, assim, ó louca!
A noite atira sóis ao infinito!


*Florbela Espanca*
Em “O Livro D’Ele”, São Paulo, Globus Editora, 1ª Edição, 2011.

 Três amigas

[...]

Nós nos fizemos amigas pela coincidência de sentimentos na valorização do humilde,
no gosto pelo autêntico, na ternura pelas coisas que conservam a sombra de uma
presença humana: velhos objetos sem dono, lembranças do passado, restos indefesos
do esforço – quase sempre malogrado – de viver. Assim, descobrimos que amávamos
o que ninguém mais ama, que tínhamos a alma carregada de retalhos de antigos
vestidos, pedaços de louças quebradas, relógios perdidos, retratos irreconhecíveis,
livros que se nos desfaziam nas mãos, palavras algum dia ouvidas e como escritos
num muro eterno diante de nós. 
[...]  Desejamos que nada se perdesse do
que um dia foi feito com a amorosa intenção de durar. Diante de um mundo ingrato e
amargo, ávido de imediatismo, ousávamos dirigir também os nossos olhos para o que
ia ficando para trás. Para o que se abandonava e esquecia. E ficamos amigas para sempre.


[...]

*Cecília Meireles*
Em “Ilusões do Mundo”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2013.

 “Pertencer

[...]

Tenho certeza de que no berço a minha
primeira vontade foi a de pertencer. Por
motivos que aqui não importam, eu de algum
modo devia estar sentindo que não pertencia
a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome
humana, ela continua a me acompanhar pela
vida afora, como se fosse um destino. A
ponto de meu coração se contrair de inveja e
desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a
fome de me dar a algo ou a alguém, é que
me tornei bastante arisca: tenho medo de
revelar de quanto preciso e de como sou
pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um
corpo e uma alma. E preciso de mais do que
isso. Quem sabe se comecei a escrever tão
cedo na vida porque, escrevendo, pelo
menos eu pertencia a um pouco de mim mesma.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 Luminescência

[...]

Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento,
e da Terra e da Lua.
Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois
ele é o de dentro da gente.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e
para sempre se perderam.
Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento pior, o da
amizade perdida, é apenas fuga.
Pois se no começo o silêncio parece aguardar uma resposta – como
arde, Ulisses, por ser chamada
e responder; – cedo se descobre que de ti ele nada exige, talvez apenas
o teu silêncio.”


[...]

*Clarice Lispector*
Em “CLARICE LISPECTOR UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”,
Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1998.

Luminescência

[...]

Ele reclinou-se na cadeira um pouco cansado e disse:
– Você é das que precisam de garantia. Quer saber como eu sou para me aceitar?
Vou me fazer conhecer melhor por você, disse com ironia.
Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras.
Sou irritável e firo facilmente. Também sou muito calmo e perdôo logo.
Não esqueço nunca. Mas há poucas coisas de que eu me lembre.
Sou paciente mas profundamente colérico, como a maioria dos pacientes.
As pessoas nunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdôo de antemão.
Gosto muito das pessoas por egoísmo: é que elas se parecem no fundo comigo.
Nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade, mas como pode ser verdade,
se as ofensas saem de minha cabeça como se nunca nela tivessem entrado?


[...]

*Clarice Lispector*
Em “CLARICE LISPECTOR UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”,
Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1998.

Declaração de amor

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil.
Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às
vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente
ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza.
E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve.
Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira
capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado.
Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase.
Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo
e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos.
E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não
bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita.
Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento
alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento
de lidar com uma língua que não foi aprofundada.
O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem
a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo.
Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente
claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português.
Eu até queria não ter aprendido outras línguas:
só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.


*Clarice Lispector
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

 “O VESTIDO BRANCO

Acordei de madrugada desejando ter um vestido branco. E seria de gaze.
Era um desejo intenso e lúcido. Acho que era a minha inocência
que nunca parou. Alguns, bem sei, já até me disseram, me acham
perigosa. Mas também sou inocente. A vontade de me vestir de branco
foi o que sempre me salvou. Sei, e talvez só eu e alguns saibam, que
se tenho perigo tenho também uma pureza. E ela só é perigosa
para quem tem perigo dentro de si. A pureza de que falo é límpida:
até as coisas ruins a gente aceita. E têm um gosto de vestido
branco de gaze. Talvez eu nunca venha a tê-lo, mas é como
se tivesse, de tal modo se aprende a viver com o que tanto falta.
Também quero um vestido preto porque me deixa mais clara
e faz minha pureza sobressair. É mesmo pureza? O que é primitivo
é pureza. O que é espontâneo é pureza. O que é ruim é pureza?
Não sei, sei que às vezes a raiz do que é ruim é uma pureza
que não pôde ser. Acordei de madrugada com tanta intensidade
por um vestido branco de gaze, que abri meu guarda-roupa.
Tinha um branco, de pano grosso e decote arredondado.
Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.
E eis que de repente agora mesmo vi que não sou pura.


*Clarice Lispector*
Em “Aprendendo a viver”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 2004.

 Ontem

Os adultos, todos poderosos, solidários, co-autores, corregedores.
Juízes de suas justiças.
Altaneiros em lições altissonantes, humilhantes
para que todos soubessem se exemplar.
A criança faltosa, inconsciente, apanhada, destruída.
Ré... ré... ré... de crimes sem perdão.
E eles, enormes, gigantescos, poderosos,
donos de todas as varas, aplaudidos.
 
Esta senhora, sim, sabe criar a família...
Isto quando corria a notícia de uma tunda das boas,
e mais castigos humilhantes.
Ao choro, respondia a casa, os ilesos, saciados, regozijantes −
‘bem feito, perdidas as que foram no chão’.
O sadismo, o masoquismo, o requinte: A menina errada, agarrada,
sujigada entre pernas adultas, virado seu traseiro, levantado
seu vestido, saiote, descida sua calcinha em chineladas cruéis
no traseiro desnudado, na pele sensível.

A reação incontida da criança, a mijada inconsciente,
a ânsia nervosa, o vômito, o intestino solto.
Acrescido o castigo: sentada no canto,
a carta de ABC na mão, a lição sabida.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

 “Mestra Silvina
 
Vesti a memória com meu mandrião balão.
Centrei nas mãos meu vintém de cobre.
Oferta de uma infância pobre, inconsciente, ingênua,
revivida nestas páginas.
 
Minha escola primária, fostes meu ponto de partida,
dei voltas ao mundo.
Criei meus mundos...
Minha escola primária. Minha memória reverencia minha velha Mestra.
Nas minhas festivas noites de autógrafos, minhas colunas de jornais
e livros, está sempre presente minha escola primária.
Eu era menina do banco das mais atrasadas.

Minha escola primária...
Eu era um casulo feio, informe, inexpressivo.
E ela me refez, me desencantou.
Abriu pela paciência e didática da velha mestra,
cinqüentanos mais do que eu, o meu entendimento ocluso.
 
A escola da Mestra Silvina...
Tão pobre ela. Tão pobre a escola...
Sua pobreza encerrava uma luz que ninguém via.
Tantos anos já corridos...
Tantas voltas deu-me a vida...

No brilho de minhas noites de autógrafos,
luzes, mocidade e flores à minha volta, bruscamente a mutação se faz.
Cala o microfone, a voz da saudação.
 
Peça a peça se decompõe a cena,
retirados os painéis, o quadro se refaz,
tão pungente, diferente.

Toda pobreza da minha velha escola
se impõe e a mestra é iluminada de uma nova dimensão.

Estão presentes nos seus bancos
seus livros desusados, suas lousas que ninguém mais vê,
meus colegas relembrados...
Queira ou não, vejo-me tão pequena, no banco das atrasadas.
E volto a ser Aninha,
aquela em que ninguém
acreditava.


*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.