domingo, 5 de setembro de 2021

 “Pertencer

[...]

Tenho certeza de que no berço a minha
primeira vontade foi a de pertencer. Por
motivos que aqui não importam, eu de algum
modo devia estar sentindo que não pertencia
a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome
humana, ela continua a me acompanhar pela
vida afora, como se fosse um destino. A
ponto de meu coração se contrair de inveja e
desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a
fome de me dar a algo ou a alguém, é que
me tornei bastante arisca: tenho medo de
revelar de quanto preciso e de como sou
pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um
corpo e uma alma. E preciso de mais do que
isso. Quem sabe se comecei a escrever tão
cedo na vida porque, escrevendo, pelo
menos eu pertencia a um pouco de mim mesma.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

Nenhum comentário: