domingo, 5 de setembro de 2021

Declaração de amor

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil.
Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às
vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente
ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza.
E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve.
Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira
capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado.
Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase.
Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo
e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos.
E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não
bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita.
Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento
alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento
de lidar com uma língua que não foi aprofundada.
O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem
a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo.
Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente
claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português.
Eu até queria não ter aprendido outras línguas:
só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.


*Clarice Lispector
Em “A Descoberta do Mundo”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

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