quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

"Madrigal

A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
É bem mais simples ainda:


'Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta...'

Vês como é simples e linda?


(O resto conto depois;
Mas tão a sós, tão de manso,
Que só escutemos os dois.)."

*Sebastião da Gama*
Em “Obras Completas de Sebastião da Gama – DIÁRIO”, Lisboa, Edições Ática, 1ª Edição, 1990.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

“Um poema

Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...
”  
   
*Miguel Torga*
Em "Poesia Completa", Coimbra, Publicações Dom Quixote, 2ª Edição, 2002.
"Poema transitório

Eu que nasci na Era da Fumaça: - trenzinho
vagaroso com vagarosas
paradas
em cada estaçãozinha pobre
para comprar
pastéis
pés-de-moleque
sonhos
- principalmente sonhos!
porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
elas suspirando maravilhosas viagens
e a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
sempre... Nisto,
o apito da locomotiva
e o trem se afastando
e o trem arquejando é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente!
...no entanto
eu gostava mesmo era de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
"
  
*Mario Quintana*
Em “Mario Quintana - Poesia Completa”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, Volume Único, 1ª Edição, 2005.

                                                              
  Intimidade

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

*José Saramago*
Em “OS POEMAS POSSÍVEIS”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

 “Solombra

[...]

Quero uma solidão, quero um silêncio,
uma noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo - libertar-me

das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pulutantes de enredos e tropeços.

Quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.

Ser tua sombra, tua sombra, apenas,
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.

Falar contigo pelo deserto.


*Cecília Meireles*

Em “Solombra”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2005.
Em silêncio

Talvez assim eu possa finalmente
Segredar-te as palavras que não soube
Dizer-te no momento em que te vi
Pela primeira vez e, de repente
O mundo foi tão grande que não coube
Na minha voz e logo emudeci.
”       

*Torquato da Luz*

Em “Espelho Íntimo”, Braga/Portugal, Editora O Cão Que Lê, 1ª Edição, 2010.

Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.


*Octavio Paz*
Em “Obras Completas de Octavio Paz - Obra poética I (1935-1970), Livro 11”, México, 

Editora Fondo de Cultura Económica, 2ª Edição, 1997.

domingo, 27 de janeiro de 2013


"Mais Nada

Nestes dias chuvosos, quando a tua
lembrança vem bater-me na vidraça,
recuso-me de todo a ver quem passa
e procuro nem sequer olhar a rua.


E pela noite dentro, quando a lua
é um pássaro triste que esvoaça
sobre a última árvore da praça,
onde um fantasma sempre se insinua,


reinvento-te e, à luz da madrugada,
concluo que, além de ti, não há mais nada.
"

*Torquato da Luz*

Extraí do Blogue do Autor: http://oficiodiario.blogspot.com.br/2008/05/mais-nada.html
Um dia
       
De súbito, entre a sombria
roda dos dias iguais,
às vezes sucede um dia
que se distingue dos mais.
É um dia raro, feito
à medida do teu peito,
onde o meu busca repouso.
Um dia claro, luminoso
e sobre todos perfeito.
Um dia contra o cinzento
correr dos dias iguais,
no qual me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.
“     

*Torquato da Luz*

Em “Espelho Íntimo”, Braga/Portugal, Editora O Cão Que Lê, 1ª Edição, 2010.
No Silêncio dos Olhos

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?


*José Saramago*

Em “OS POEMAS POSSÍVEIS”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.

sábado, 26 de janeiro de 2013

"Serenata

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
E cantando pus-me a esperar-te.


Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
E a dor é de origem divina.


Permita que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
E aprenda a ser dócil no sonho
Como as estrelas no seu rumo.
"   

*Cecília Meireles*

Em “Poesias Completas de Cecília Meireles, Viagem, Vaga Música”, Rio de Janeiro, 
Editora Civilização Brasileira - MEC, 1973.
Madona da Tristeza

Quando te escuto e te olho reverente
E sinto a tua graça triste e bela
De ave medrosa, tímida, singela,
Fico a cismar enternecidamente.

Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.

Com que mágoa te adoro e te contemplo,
Ó da piedade soberano exemplo,
Flor divina e secreta da Beleza.

Os meus soluços enchen os espaços
Quando te aperto nos estreitos braços,
Solitária madona da Tristeza.

 
*Cruz e Sousa*

Em “Últimos Sonetos de Cruz e Sousa”, Forianópolis-Rio de Janeiro, 
Editora da UFSC/Co-edição Fundação Casa de Rui Barbosa, 3ª Edição Revista, 1997.
"Cárcere das Almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.


Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.


Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço atroz, funéreo!


Nesses silêncios solitários, graves
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do mistério?!
"

*Cruz e Sousa*

Em “Poesias Completas de Cruz e Sousa”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 1995.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Alvorecer

A noite empalidece. Alvorecer...
Ouve-se mais o gargalhar da fonte...
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.

Há andorinhas prontas a dizer
A missa d´alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.

Passos ao longe... um vulto que se esvai...
Em cada sombra Colombina trai...
Anda o silêncio em volta a q´rer falar...

E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar...


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.
As Minhas Asas

Eu tinha umas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Que, em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.
Eram brancas, brancas, brancas
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas
Por isso voava ao céu.

Veio a cobiça da terra.
Vinha para me tentar
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
Veio a ambição, co'as grandezas
Vinham para mas cortar
Davam-me poder e glória
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas
E já suspenso da terra
Ia voar para elas
Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Para a terra me pesavam
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

*Almeida Garrett*
Em “Obras de Almeida Garrett (2 volumes), Edição Única”, Porto/Portugal, 
Editora Lello & Irmão Editores, 1966.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A Noite

Eu amo a noite solitária e muda,
Quando no vasto céu fitando os olhos,
Além do escuro, que lhe tinge a face,
Alcanço deslumbrado
Milhões de sóis a divagar no espaço,
Como em salas de esplêndido banquete
Mil tochas aromáticas ardendo
Entre nuvens d'incenso!

Eu amo a noite taciturna e queda!
Amo a doce mudez que ela derrama,
E a fresca aragem pelas densas folhas
Do bosque murmurando:
Então, malgrado o véu que envolve a terra,
A vista, do que vela enxerga mundos,
E apesar do silêncio, o ouvido escuta
Notas de etéreas harpas.

Eu amo a noite taciturna e queda!
Então parece que da vida as fontes
Mais fáceis correm, mais sonoras soam,
Mais fundas se abrem;
Então parece que mais pura a brisa
Corre,
que então mais funda e leve a fonte
Mana,
e que os sons então mais doce e triste
Da música se espargem.

O peito aspira sôfrego ar de vida,
Que da terra não é; qual flor noturna,
Que bebe orvalho, ele se embebe e ensopa
Em êxtase de amor:
Mais direitas então, mais puras devem,
Calada a natureza, a terra e os homens,
Subir as orações aos pés do Eterno
Para afagar-lhe o trono!

Assim é que no templo majestoso
Reboa pela nave o som mais alto,
Quando o sacro instrumento quebra a augusta
Mudez do santuário;
Assim é que o incenso mais direito
Se eleva na capela que o resguarda,
E na chave da abóbada topando,
Como um dossel, se espraia.

Eu amo a noite solitária e muda;
Como formosa dona em régios paços,
Trajando ao mesmo tempo luto e galas
Majestosa e sentida;
Se no dó atentais, de que se enluta,
Certo sentis pesar de a ver tão triste;
Se o rosto lhe fitais, sentis deleite
De a ver tão bela e grave!

Considerai porém o nobre aspecto,
E o porte, e o garbo senhoril e altivo,
E as falas poucas, e o olhar sob'rano,
E a fronte levantada:
No silêncio que a veste, adorna e honra,
Conhecendo por fim quanto ela é grande,
Com voz humilde a saudarei rainha,
Curvado e respeitoso.

Eu amo a noite solitária e muda,
Quando, bem como em salas de banquete
Mil tochas aromáticas ardendo,
Giram fúlgidos astros!
Eu amo o leve odor que ela difunde,
E o rorante frescor caindo em pér'las,
E a mágica mudez que tanto fala,
E as sombras transparentes!

Oh! quando sobre a terra ela se estende,
Como em praia arenosa mansa vaga;
Ou quando, como a flor dentre o seu musgo,
A aurora desabrocha;
Mais forte e pura a voz humana soa,
E mais se acorda ao hino harmonioso,
Que a natureza sem cessar repete,
E Deus gostoso escuta.


*Antônio Gonçalves Dias*

Em “Nossos Clássicos, Gonçalves Dias”, São Paulo, Editora Agir, Vol. 18, 12ª Edição, 1985.
Homem

Inútil definir
 este animal aflito.
Nem palavras
nem cinzéis
nem acordes
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito
 a menos infinito.

*António Gedeão*
Em “Poesias Completas”, Lisboa, Portugália Editora, 9ª edição, 1983.