domingo, 29 de setembro de 2013

Retrato do poeta quando jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exato,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


*José Saramago*

Em “OS POEMAS POSSÍVEIS”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.
 “Relâmpagos Divinos

Relâmpagos luzindo em noite escura
em seus corcéis de luz aurifulgente,
anunciais de forma rica e pura
um mágico saber ᅳ clarividente!

Telegramas de luz cuja linguagem
computador nenhum pode gravar
e, presciente dessa luz-imagem,
só o poeta a sabe decifrar.

Bendito seja tal conhecimento
que em seus raios de luz, força e verdade
emerge dos arcanos de uma alma.

E, assim sendo, relâmpagos divinos
trazeis da criação a tempestade
que me compensará com paz e calma.


*Roza de Oliveira*

Extraí daqui: http://rozadeoliveirapoesia.blogspot.com.br/2009/11/relampagos-divinos.html

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Saudade

Saudade é um sino triste bimbalhando
Na igrejinha branca de uma aldeia;
E um violão sonoro dedilhando
De uma noite, ao clarão da lua cheia.

Saudade é um rio cheio transbordando
Lançando ao longe turbilhões de areia;
É a cachoeira se precipitando
Jogando as águas no furor que ateia.

Saudade é uma manhã de sol nascente
Com gotinhas de orvalho ornamentando
As flores de um jardim, desabrochadas...

E a gente a contemplá-las docemente
Percebendo que em nós estão faltando
Todas as alegrias desejadas.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.

domingo, 22 de setembro de 2013

Inquietude

Tarde cálida e mórbida... Angustiante...
Um silêncio mortal. Nem uma voz
Levanta-se no vácuo. Torturante
O ar pesado paira sobre nós.

O calor abrasado, sufocante
Já me importuna de maneira atroz
E nesta alegoria delirante
Triste lembrança se me faz algoz.

Dentro em meu peito, o coração soluça!
E genuflexo triste se debruça
Sobre um passado que já vai distante.

Chora contrito uma recordação,
Revive um sonho que perdido em vão
Pra mim tornou-se um padecer constante.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Poema do silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
ᅳ Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo…

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição…)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista…

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá…

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


*José Régio*

Em “As Encruzilhadas de Deus”, Lisboa, Editorial INQUÉRITO Limitada, 2ª Edição, 1946.
Estrela da tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!


*José Carlos Ary dos Santos*

Em “As Palavras das Cantigas”, Lisboa, Editorial Avante, 1989.
Essa máscara

Essa máscara de placidez
tanto me absorveu, que hoje
não há distância entre eu e ela:
revela a minha face,
suave e sutil,
e que me torna amiga.

Sou ela, ou serei eu?
Talvez, por tão antiga,
seja ela o meu rosto e seja máscara
esse outro perfil que olha para dentro.
Mansa por fora: dentro uma floresta escura,
poço de paixão, abismo e arremesso.


*Lya Luft*

Em “Mulher no Palco”, São Paulo, Editora Salamandra, 6ª edição, 1984.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

 Assim são as imagens poéticas:
elas têm o poder de ir lá no fundo da alma,
onde moram os esquecimentos.
E, quando um desses esquecimentos acorda,
a gente sente um estremeção no corpo.
Essa é a missão da poesia:
recuperar os pedaços perdidos de nós.
”   

*Rubem Alves*
Texto extraído da orelha da capa do livro “Um céu numa flor silvestre - A beleza em todas as coisas”, 

São Paulo, VERUS Editora, 1ª Edição, 2005.

domingo, 8 de setembro de 2013

Domingo

Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.


*António Gedeão*

Em “Novos Poemas Póstumos”, Lisboa, Editora João Sá da Costa, 1ª edição, 1990.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Primavera

Ah! quem nos dera que isto, como outrora,
inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
que inda juntos pudéssemos agora
ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora,
e, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
‘Beijemo-nos! amemo-nos! espera!’

E esse corpo de rosa recendia,
e aos meus beijos de fogo palpitava,
alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
primavera de carne, pelo braço!


*Olavo Bilac*

Em “Poesias”, Rio de Janeiro, 27ª Edição, Editôra Paulo de Azevedo Ltda., 1961.
Ao coração que sofre

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.


*Olavo Bilac*

Em “Poesias”, Rio de Janeiro, 27ª Edição, Editôra Paulo de Azevedo Ltda., 1961.