domingo, 3 de setembro de 2017

SONETOS DE VIDA INTERIOR
(Retiro com Padre Xavier Ayala)

I

Senhor, põe-me, outra vez, à Tua frente
E faze-me encontrar o Teu caminho.
Perdido fui e sou, se de repente
Somente a mim me entregas e sozinho.

Quantas vezes me sinto diferente
E volto a ser, no tempo, descaminho!
Quantas vezes Te fito e sou descrente
E, no espaço, me faço agreste espinho!

Senhor, mostra-me sempre o Teu amor,
Qual tesouro enterrado num terreno,
Valendo mais que todos, pois que é vida.

E faze-me Teu filho no que for
A vivência daquele tom sereno,
Que me leva à chegada da partida.

II

A confusão, Senhor, de mim afasta
Para que eu veja claro o que era escuro
E, qual papel inútil d’uma pasta,
Retira para unir-me ao meu futuro.

A pergunta que eu fiz já tem resposta.
Vale o encontro da própria vocação.
‘Vem e segue-me’ e segue-Te quem gosta
Da Verdade e da Luz, por dimensão.

A busca do caminho, quando existe,
É mansa, se ela é grande, se ela é forte,
E rica, quando pobre e nunca triste,

Fazendo eterna vida mesmo a morte.
Que eu seja, como fruto, uma semente
A gerar o Teu mundo diferente.

III

O sentido da vida, por inteiro,
Só desvendo no seu sonho de vida,
Que transforma a semente no celeiro,
Alimento da terra mal ferida.

A santidade é o toque derradeiro
Descortinando o ponto de partida,
Cujo encontro se faz, quando o sendeiro,
Na chegada descobre o fim da lida.

Quão difícil, porém, se sou quem trilho
Esta estrada de Deus feita p’ra mim,
Pois qu’outras menos belas já trilhei.

Quão difícil! Contudo, sou Seu filho,
E tê-la quero dentro do jardim,
Onde O encontro, paterno, como Rei.

IV

O encanto, que reveste a singeleza,
Aos puros se reserva apenasmente,
Como ao sol, a translúcida represa,
Bem longe – ao natural – de toda gente.

Quando se busca a opaca Mãe Ciência,
Que do que é simples faz-se tão deserta,
É porque a vida perde em transparência
O que ganha de falso, a rota incerta.

Buscar o que anda perto, mas distante,
Rasgando a escuridão, que sempre é triste,
Mesmo se alegre a volta em ser infante,

Eis o caminho só que a nós existe.
Por isto é que retorno neste encanto,
À difícil procura do seu canto.

V
 
Há uma ponte suspensa em minh’alma,
Que me liga e separa de meu Deus,
Tem de um lado a clareza, em toda calma
E d’outro a negridão que é dos incréus.

Dia a dia, dirijo os passos meus
De margem a margem, sem levar a palma,
Caminhando caminhos que são Seus
Estes caminhos que ninguém ensalma.
Assim sou eu, um fraco, forte e fraco,
Andarilho da ponte sem espaço,
Onde procuro a sua eternidade.
Certo que, um dia, neste céu opaco
Cruzarei para sempre, em firme passo.
Para o lado mais belo da verdade.


VI

Jerusalém não soube dizer sim,
A salvação batendo em seus portões
Se viu e ouviu-te e presa ao próprio fim
Não pode libertar-se dos grilhões

E não te vi, mas ouço-te, Senhor,
E temo a mesma sorte e não a quero,
Lutando por manter-te, em meu amor,
De tua graça o toque mal espero.

A minha fé, se às vezes, vacilante,
Tem sempre a mesma esplêndida esperança,
E a certeza que o tempo de criança
Jamais me deixará de ti distante.

Que eu diga, meu Senhor, estou presente
Mesmo fraco, tão vil, mas não descrente.

VII

Meditarei, à noite, sobre a morte.
Se Deus há de encontrar-me, neste dia,
Mais perto ou mais distante, fraco ou forte,
Com mais calor minh’alma ou bem mais fria.

Não sei. Eu sei apenas houve corte
No meu passado sem Virgem Maria.
É hoje a eterna Mãe de minha sorte
E a luz, que, no meu íntimo, alumia.

Por isto, quero após a calma ceia,
Após ouvir a voz de quem semeia,
Amor em terra agreste, mas aberta.

Dizer que o fim trará verdade e vida,
Em busca desde o tempo da partida,
Convencido que a senda estava certa.

VIII

As aves mostram sempre o eterno espaço,
Origem da verdade, vida e luz,
Nascida, a vez primeira, em tempo escasso,
Para mostrar a via, que conduz.

A vez segunda, nasce a cada passo,
Em todo aquele que, com ou sem cruz
Procura, mui tenaz e pouco lasso,
Imitar o Senhor Cristo Jesus.

Da terceira não vinda, mas futura
Vivos e mortos, pela eternidade,
Verão o teu retrato julgador.

Que eu saiba sendo assim, ter a armadura,
Para ser sempre filho da verdade,
Humilde e forte e forte em seu Amor.

IX

Profissional eu sou o que quiseste
Não como tu querias. Mas serei.
Bastando que, na busca mais agreste,
Não perca do teu ser a doce lei.

Quero ser o que queres que eu bem seja,
E não o que eu desejo, indefinido.
Quero estar onde queres que eu esteja,
E não onde eu almejo ou hei querido.

Somente assim serei o defensor,
Na medida dos dons, que recebi,
Nem menos e nem mais seja eu quem for.
As forças recebendo só de ti.

Que o tempo seja sempre de trabalho
E que o passo, na vida, sem ser falho.

X

Senhor, sei que bem pouco tenho ou valho,
Mas quero ser semente de mostarda,
Valorizando em ti todo o trabalho,
Que a justiça do justo nunca tarda.

Desta minh’alma a cor, agora parda,
Ao imitar o Cristo, embora falho,
Hei de tirar, vestindo em nova farda,
Já que a mensagem simples hoje espalho.

Herói eu não serei, mas na rotina
As forças do que é pouco, encontrarei,
Muito fazendo, em todo o seu encanto.

Porque sei que, no tempo, se destina,
No teu plano, para  mim a doce lei
De sendo pecador, buscar ser santo.

XI

Quem ama sacrifica ao seu amor
Tudo o que tem e tudo que produz,
Se assim não fui, outrora, meu Senhor,
Assim serei, olhando sempre a luz.

Foi voluntário o canto de Jesus,
A história no seu curso vindo a por,
Por preço tendo lágrimas na cruz
E certeza que dava ao mundo cor

Assim hei de pintar em pobre tela
O  triste colorido sacrifício
Em cada gesto meu, no dia a dia.

Para fazer a vida tão mais bela
Quanto mais longe for o antigo vício
E mais perto o calor da Mãe Maria.

XII

O caminho se estende, à minha frente,
Foi feito para o mundo, mas o mundo
Há dois mil anos que não o pressente.
É cor do eterno e o tom é tão profundo

Que poucos o trilharam desde então.
Deus, no silêncio, fala e a sua fala
Só toca a quem abriu seu coração.
E neste a sua voz ao fundo caia.

Fim do retiro. Volta a ser a vida
A rotina de sempre, mas agora
A mensagem de Cristo, na partida
É mais segura e firme do que outrora.

Que eu seja serviçal, seja maduro
Ao iniciar a estrada do futuro.


*Ives Gandra Martins*

 Extraí daqui: http://www.gandramartins.adv.br/poesias/livro/sonetos-de-vida-interior/
Meu amigo

                                               (In memoriam)

Conto para você umas coisas que estão acontecendo
na Casa Velha da Ponte.
Cantou esta manhã um Bem-te-vi, último, pnúltimo, talvez.
Era um cantar solene e triste.
Não mais o alegre desafio de todos os Bem-te-vis
desaparecidos de Goiás.
Era assim, como uns gritos, lamentos de socorro.
Mas não era do Bem-te-vi que eu ia falar.

Faz tempo, queria contar para sua ternura,
essas coisas miúdas que nós entendemos.
Ah! Meu amigo e confrade...
As rolinhas... as últimas, fogo-pagou, cantaram a cantiga
da despedida no telhado negro da Velha Casa.
Cantaram em nostalgia toda uma certa manhã passada.
Olhei. Eram cinco, as derradeiras.
Levantaram vôo e se foram para sempre.

Não mais seus grupinhos cinzentos e asseados
nos trilheiros do velho quintal, catando suas comidinhas,
sementes de capim, dados pelo Bom Deus.
Aqueles que não plantam e não colhem e têm direito à vida.
Sempre puras. 
Nem a rainha de Sabá teria meias tão vermelhas 
e veste tão linda como elas.

Cantaram seus louvores.
A louvação da despedida final.
E se foram para um indefinido longe, ninguém sabe onde.
Onde não houvesse sementinha envenenada
E sim o chorinho escondido de água impoluída.

Ficou para nós, velhos namorados dessas coisas simples, 
a lembrança, essa doçura evocação.
Elas deixaram este recado:
‘Fala para seu amigo que não tinha mais jeito...’
E a Casa Velha da Ponte ficou desfalcada de seus encantamentos.


[...]

*Cora Coralina*
Em “ESTÓRIAS DA CASA VELHA DA PONTE”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2001.
Postal

Por cima de que jardim
duas pombinhas estão
dizendo uma para outra:
‘Amar, sim; querer-te, não?’

Por cima de que navios
duas gaivotas irão
gritando a ventos opostos:
‘Sofres, sim: queixar-me não?’

Em que lugar, em que mármores,
que aves tranquilas irão
dizer à noite vazia:
‘Morrer, sim; esquecer, não?’

E aquela rosa de cinza
que foi nosso coração
como estará longe, e livre
de toda e qualquer canção!


*Cecilia Meireles*
Em “Flor de Poemas (Coleção Poesis)”, Rio de Janeiro, 
Editora Nova Fronteira, 12ª Impressão, 1995.