domingo, 3 de setembro de 2017

Meu amigo

                                               (In memoriam)

Conto para você umas coisas que estão acontecendo
na Casa Velha da Ponte.
Cantou esta manhã um Bem-te-vi, último, pnúltimo, talvez.
Era um cantar solene e triste.
Não mais o alegre desafio de todos os Bem-te-vis
desaparecidos de Goiás.
Era assim, como uns gritos, lamentos de socorro.
Mas não era do Bem-te-vi que eu ia falar.

Faz tempo, queria contar para sua ternura,
essas coisas miúdas que nós entendemos.
Ah! Meu amigo e confrade...
As rolinhas... as últimas, fogo-pagou, cantaram a cantiga
da despedida no telhado negro da Velha Casa.
Cantaram em nostalgia toda uma certa manhã passada.
Olhei. Eram cinco, as derradeiras.
Levantaram vôo e se foram para sempre.

Não mais seus grupinhos cinzentos e asseados
nos trilheiros do velho quintal, catando suas comidinhas,
sementes de capim, dados pelo Bom Deus.
Aqueles que não plantam e não colhem e têm direito à vida.
Sempre puras. 
Nem a rainha de Sabá teria meias tão vermelhas 
e veste tão linda como elas.

Cantaram seus louvores.
A louvação da despedida final.
E se foram para um indefinido longe, ninguém sabe onde.
Onde não houvesse sementinha envenenada
E sim o chorinho escondido de água impoluída.

Ficou para nós, velhos namorados dessas coisas simples, 
a lembrança, essa doçura evocação.
Elas deixaram este recado:
‘Fala para seu amigo que não tinha mais jeito...’
E a Casa Velha da Ponte ficou desfalcada de seus encantamentos.


[...]

*Cora Coralina*
Em “ESTÓRIAS DA CASA VELHA DA PONTE”, São Paulo, Global Editora, 11ª Edição, 2001.

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