domingo, 27 de outubro de 2013

 “Tormento do Ideal

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas,
Para sempre fiquei pálido e triste.


*Antero de Quental*
 
 Em “Poesia Completa” (1842-1891), Lisboa/Portugal, Editora Publicações Dom Quixote, 2001.
À Virgem Santíssima

Cheia de graça, Mãe de Misericórdia


N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza…

Um místico sofrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!


*Antero de Quental*

Em “Poesia Completa” (1842-1891), Lisboa/Portugal, Editora Publicações Dom Quixote, 2001.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

 “Na mão de Deus
    
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!


*Antero de Quental*
Em “Poesia Completa” (1842-1891), Lisboa/Portugal, Editora Publicações Dom Quixote, 2001.
O Encoberto

Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
Na cruz morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que symbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Christo.

Que symbolo final
Mostra o sol já disperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.


*Fernando Pessoa*

Em “O Encoberto, Porto, Editora Livraria Moreira, 1904.

sábado, 19 de outubro de 2013

Desdém

Andas dum lado pro outro
Pela rua passeando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando.

É um olhar fugidio,
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto de estrelas
O doce olhar saltitante…

É esse rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar,
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passar!

Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos d’alguém…

Por isso vai caminhando…
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!...


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Auroras e Crespúculos

Todo dia, na fimbria do horizonte
Surge a aurora num sonho embevecido;
Abre-se a flor que expande junto à fonte
Um perfume de amor apetecido.

Mas se o galho tristonho pende a fronte
Acobertando o ninho adormecido
No véu da noite, aconchegando o monte
Chega o crepúsculo em sombras envolvido.

Assim é a vida: flor desabrochada...
Imagem da esperança despertada
Da aurora à luz, de nívea claridade.

E como o berço onde adormece o dia,
No momento de paz da ‘Ave-Maria’.
Esta vida é crepúsculo. É Saudade.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.
Noivado estranho

O luar branco, um riso de Jesus,
Inunda a minha rua toda inteira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz…

O luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada...

O Luar vem cansado, vem de longe,
Vem casar-se co´a Terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d´amor o pobre monge...

O luar empalidece de cansado…
E a noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!…


*Florbela Espanca*

Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1885.
O Retrato

Sala deserta, na penumbra imersa
E na parede um quadro pendurado;
Sobre os frangalhos de um tapete persa,
Lá no canto um piano empoeirado.

Contra os vitrais, na direção inversa,
Um móvel antigo, sujo, desbotado;
Como a mostrar cumprir sorte adversa
Um divã noutro canto abandonado.

Abri a porta. Entrei. Tudo era triste.
Na solidão apenas a certeza
De que mais nada ali já não tem dono.

Mas qual! Num desafio que assim resiste,
Um retrato sorrindo sobre a mesa
No mais letárgico e tétrico abandono.


*Bernardina Vilar*

Em “Saudade da Vila”, São Paulo, Editora Moderna, 14ª Edição, 1994.

domingo, 13 de outubro de 2013

[...] 

Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto 
se você que é feia sente dor.
Eu não sou feia!!! gritou Glória.

Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. 
Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. 
Mas se arranjava como podia. 
Quanto ao mais, ela era quase impessoal. 
Glória perguntou-lhe:
Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, 
embora isso custe dinheiro.
É para eu não me doer.
Como é que é? Hein? Você se dói?
Eu me dôo o tempo todo.
Aonde?
 Dentro, não sei explicar.

Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. 

Transformara-se em simplicidade orgânica. 
E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a 
graça de um pecado. 
Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, 
ou por isso mesmo, 
gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. 
Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência
 a barreira do som. 
Para as pessoas outras ela não existia. 
A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas 
sem água, assim a seco.
 Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava 
a Macabéa um banho de calor gostoso no coração.
  
*Clarice Lispector*

Fragmento extraído da narrativa desenvolvida 
em sua obra “A hora da Estrela”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1977.