domingo, 13 de outubro de 2013

[...] 

Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto 
se você que é feia sente dor.
Eu não sou feia!!! gritou Glória.

Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. 
Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. 
Mas se arranjava como podia. 
Quanto ao mais, ela era quase impessoal. 
Glória perguntou-lhe:
Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, 
embora isso custe dinheiro.
É para eu não me doer.
Como é que é? Hein? Você se dói?
Eu me dôo o tempo todo.
Aonde?
 Dentro, não sei explicar.

Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. 

Transformara-se em simplicidade orgânica. 
E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a 
graça de um pecado. 
Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, 
ou por isso mesmo, 
gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. 
Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência
 a barreira do som. 
Para as pessoas outras ela não existia. 
A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas 
sem água, assim a seco.
 Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava 
a Macabéa um banho de calor gostoso no coração.
  
*Clarice Lispector*

Fragmento extraído da narrativa desenvolvida 
em sua obra “A hora da Estrela”, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1ª Edição, 1977.

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