domingo, 26 de fevereiro de 2017

[sem título]

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Eu não sou de ninguém… Quem me quiser
Há-de ser luz do Sol em tardes quentes,
Nos olhos de água clara há-de trazer
As fúlgidas pupilas dos videntes!

Há-de ser seiva no botão repleto
Voz no murmúrio do pequeno insecto,
Vento que enfuna as velas sobre os mastros!…

Há-de ser Outro e Outro num momento!
Força viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!


*Florbela Espanca*
Em “SONETOS COMPLETOS - Livro de Mágoas, Livro de Sóror Saudade,
Charneca em Flor, Reliquiae
”, Coimbra, Editora Livraria Gonçalves, 6ª Edição, 1944.
Cantiga do desencontro

Ai flores do verde tempo,
Cheias de sol e distância...
Em que canteiro deixastes
O aroma de minha infância?

Ai flores do verde tempo,
Alvas luas que semeei...
Em que camada de terra
Mora o pranto que chorei?

Ai flores do verde tempo,
Perfume que o vento traz...
Em que silêncio repousam
Os dias do nunca mais?

Ai flores do verde tempo,
Que refloris na lembrança...
Enfeitai o meu sorriso
Quando murchar a esperança!


*Paulo Bomfim*
Em “Poemas Escolhidos”, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1ª Edição,1974.
Arte Poética

                                          A Jorge Octávio Mourão

Faço poema às vezes com a displicência
de um risco sem figura,
como a preguiça de um gesto
sem destino,
às vezes como o adormecimento
no mormaço,
como o tremor de uma lágrima
de espanto;
faço poema às vezes como a faina
de colher flores, de passar os dedos
nas águas, de voltar-me
por não ver nada mais do que sonhava;
faço poema às vezes como a máquina
registra, como o dedo segue
a linha da leitura, como a força
invisível de virar
a página de um livro casual;
mas às vezes faço poema como erguendo
um punhal contra a rosa, ou contra mim,
como quem morre e resiste e quer morrer
assim

faço poema, às vezes.
Faço poema sempre como vivo.


*Walmir Ayala*
Em “Antologia da Nova Poesia Brasileira*, org. Fernando Ferreira de Loanda,
Rio de Janeiro, Editora Orfeu, 2ª Edição, 1970, pág. 71.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O aluno

São meus todos os versos já cantados;
A flor, a rua, as músicas de infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.


*José Paulo Paes*
Em “Poesia completa”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2008.
Revisitação

Cidade, por que me persegues?

Com os dedos sangrando
já não cavei em teu chão
os sete palmos regulamentares
para enterrar meus mortos?
Não ficamos quites desde então?

Por que insistes
em acender toda noite
as luzes de tuas vitrinas
com as mercadorias do sonho
a tão bom preço?

Não é mais tempo de comprar.
Logo será tempo de viajar
para não se sabe onde.
Sabe-se apenas que é preciso ir
de mãos vazias.

Em vão alongas tuas ruas
como nos dias de infância,
com a feérica promessa
de uma aventura a cada esquina.
Já não as tive todas?

Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a voz
se detém interdita
entre o que é e o que foi.

Cidade, por que me persegues?
Ainda que eu pegasse
o mesmo velho trem,
ele não me levaria
a ti, que não és mais.

As cidades, sabemos,
são no tempo, não no espaço,
e delas nos perdemos
a cada longo esquecimento
de nós mesmos.

Se já não és e nem eu posso
ser mais em ti, então que ao menos
através do vidro
através do sonho
um menino e sua cidade saibam-se afinal

intemporais, absolutos.


*José Paulo Paes*
Em “Poesia completa”, São Paulo, Editora Companhia das Letras, 2008.
Canção da Velhice

Corri o mundo; aprendi
O saber dos desenganos…
Só então compreendi
O quanto valem os anos.

Fui semeando ilusões
Da vida pelo caminho;
Quando voltei a colhê-las,
Achei-me pobre e sozinho.

Fez o tempo na minh’alma
Uma nova sementeira:
Semeou a experiência
Com mão segura e certeira.

Dizem que os livros encerram
Muita luz, muita lição;
Mas nenhuma como aquela
Que só os anos nos dão!

A vida é um livro aberto
Que toda a gente anda a ler;
Até a morte chegar
Sempre há muito que aprender.

A mocidade soletra,
Os homens lêem melhor.
Os velhos, esses já quase
Sabem o livro de cor.

Andei muito pela vida…
Agora vou descansar
Á beira deste caminho
A ver os outros passar.

E a mocidade iludida,
A correr, passa por mim…
Se eu te dissesse o que sei
Já não corrias assim!


*Cortes Rodrigues*
Extraí daqui: http://olhaioliriodocampo.blogspot.com.br/2008_03_01_archive.html
A visita da saudade

De vez em quando a saudade
Regressa sem avisar.
Entra mesmo sem licença,
Impõe a sua presença
E, contra minha vontade,
Obriga-me a recordar.


[...]

Vai o tempo atenuando
A força das emoções:
Mas não abranda a saudade
Que aumenta de intensidade
Quando os anos vão passando,
E aperta os corações.


*Edite Costa Carvalho Pereira*
Extraí daqui: http://olhaioliriodocampo.blogspot.com.br/2008_03_01_archive.html
Alma gêmea

Alma gêmea da minh’alma,
Flor de luz da minha vida,
Sublime estrela caída
Das belezas da amplidão!...

Quando eu errava no mundo,
Triste e só, no meu caminho,
Chegaste, devagarinho,
E encheste-me o coração.

Vinhas na bênção dos deuses,
Da divina claridade,
Tecer-me a felicidade
Em sorrisos de esplendor!...

És meu tesouro infinito,
Juro-te eterna aliança,
Porque sou tua esperança
Como és todo o meu amor!

Alma gêmea da minh’alma
Se eu te perder, algum dia,
Serei a escura agonia
Da saudade dos seus véus...

Se um dia me abandonares,
Luz terna dos meus amores,
Hei de esperar-te, entre as flores
Da claridade dos céus...”


*Publius Cornelius Lentulus* 
Em “Há 2000 anos” (Chico Xavier), Rio de Janeiro, FEB Editora , 21ª Edição, 1986.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Crepúsculo

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Borboleta de sol, de asas magoadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas,
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu amor não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas,
Como vagas saudades de doentes...

O silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente, palpitando...


*Florbela Espanca*
Em “Obras Completas de Florbela Espanca”, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1ª Edição, 1985.
O Soneto

Não maldigo o rigor de iníqua sorte,
Por mais atroz que seja e sem piedade,
Arrancando-me o throno e a magestade,
Quando a dous passos só estou da morte!

De jogo das paixões minh'alma forte
Conhece a fundo a triste realidade,
Pois, se agora nos dá felicidade,
Amanhã tira o bem, que nos conforte.

Mas a dôr que excrucia, a que maltrata,
A dôr cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e quasi o mata,

E' ver da mão fugir, á extrema hora,
A mesma bocca lisongeira e ingrata,
Que tantos beijos nella poz outr'ora!


*Pedro de Alcântara (D. Pedro II, ex-Imperador do Brasil)*
Em, “Pequena Edição dos Sonetos Brasileiros, organizados por Laudelino Freire”, 
Rio de Janeiro, Editora F. Briguiet & Cia., 2ª Edição, 1914.