domingo, 22 de janeiro de 2017

Última canção do beco

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!

Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas.
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui.

Lapa − Lapa do Desterro −,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A Conceição de Maria,
Que graças angelicais!)

Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!


*Manuel Bandeira*
Em “Lira dos cinquënt’anos Manuel Bandiera”, São Paulo, Global Editora, 1ª Edição, 2013.
Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros − perdi-os...
Tive amores − esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!


*Manuel Bandeira*
Em “Antologia Poética − Manuel Bandeira”, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 12ª Edição, 2001.
Sonhando

Um dia, oh linda, embalada
Ao canto do gondoleiro,
Adormeceste inocente
No teu delírio primeiro,
− Por leito o berço das ondas,
Meu colo por travesseiro!

Eu, pensativo, cismava
Nalgum remoto desgosto,
Avivado na tristeza
Que a tarde tem, ao sol-posto,
E ora mirava as nuvens,
Ora fitava teu rosto.

Sonhavas então, querida,
E presa de vago anseio
Debaixo das roupas brancas
Senti bater o teu seio,
E meu nome num soluço
À flor dos lábios te veio!

Tremeste como a tulipa
Batida do vento frio...
Suspiraste como a folha
Da brisa ao doce cicio...
E abriste os olhos sorrindo
Às águas quietas do rio!

Depois − uma vez − sentados
Sob a copa do arvoredo,
Falei-te desse soluço
Que os lábios abriu-te a medo...
− Mas tu, fugindo, guardaste
Daquele sonho o segredo!...


*Casimiro de Abreu*

Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

domingo, 15 de janeiro de 2017

O acendedor de lampiões

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:  –
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!
” 

*Jorge de Lima*
Em “JORGE DE LIMA: POESIA COMPLETA 
(Org. Alexei Bueno e texto crítico Marco Lucchesi [et al.])”, 
Vol. Único, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S/A., 1ª Edição, 1997.
Soneto

Eu passava na vida errante e vago
Como o nauta perdido em noite escura,
Mas tu te ergueste peregrina e pura
Como o cisne inspirado em manso lago.

Beijava a onda num soluço mago
Das moles plumas a brilhante alvura.
E a voz ungida de eternal doçura
Roçava as nuvens em divino afago.

Vi-te, e nas chamas de fervor profundo
A teus pés afoguei a mocidade,
Esquecido de mim, de Deus, do mundo!

Mas, ai! Cedo fugiste!... da soidade,
Hoje te imploro desse amor tão fundo
Uma idéia, uma queixa, uma saudade!


*Fagundes Varela*
Em “Poesias Completas de Fagundes Varela”, São Paulo, Editora Saraiva, 2ª Edição, 1962.
Cisnes

A vida, manso lago azul algumas
Vezes, algumas vezes mar fremente,
Tem sido para nós constantemente
Um lago azul, sem ondas, sem espumas!

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas
Matinaes, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vagamos indolentemente
Como dois cisnes de alvacentas plumas!

Um dia um cisne morrerá, por certo.
Quando chegar esse momento incerto,
No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,
Nunca mais cante, nem sózinho nade,
Nem nade nunca ao lado de outro cisne...


*Júlio Mário Salusse*
Em “Obra Poética de Júlio Salusse (Nevrose Azul - 1884, Sombras - 1901 e Fitas Coloridas)”, 
Anais da Biblioteca Nacional, Fundação Biblioteca Nacional, 
Rio de Janeiro, Vol. 113, 1993, págs. 149/188.
Sonhando

Se a nossa vida é um lago de serenas
Ondulações, adormecido quando
Por ele passa alegremente o bando
Das multicores e gentis falenas;

Lago azul, onde a aurora molha as penas
Sempre que se levanta, ora banhando
Na fresca matinal as açucenas;

Meu doce amor, enquanto não morremos,
Como dois cisnes plácidos vaguemos
Sobre as águas tranquilas e azuladas,

Ouvindo ao longe o suspirar do vento
E contemplemos o azul do firmamento
Nas misteriosas noites estreladas.


*Júlio Mário Salusse*
Em “Obra Poética de Júlio Salusse (Nevrose Azul - 1884, Sombras - 1901 e Fitas Coloridas)”, 
Anais da Biblioteca Nacional, Fundação Biblioteca Nacional, 
Rio de Janeiro, Vol. 113, 1993, págs. 149/188.
Os Sinos

Nas tardes lentas e calmas
Os sinos tangem soturnos,
Como lamentos noturnos,
Sensibilizando as almas.

Derramam no ar notas graves
Cheias de melancolia,
Quando finaliza o dia,
Por entre a canção das aves.

Surja a aurora fresca e linda,
No calmo céu do oriente,
E melancòlicamente
Êles tangerão ainda.

Quando às vêzes acontece
Passar o esquife de alguém,
Solenes, como uma prece,
Os sinos tangem também.

Aos meus nervos femininos,
Guardo ainda essa lembrança,
Outrora, quando criança,
Causavam prazer os sinos

Hoje, ouvindo os sons tristonhos
Como o luar sobre as lousas,
Penso em funerárias cousas
E relembro mortos sonhos!

Penso que durmo o perene,
Tétrico sono final,
Sob a cúpula solene
De uma velha catedral.

Medonho rumor aos poucos
Vai da terra ao firmamento,
Produzido por um lento
Badalar de sinos roucos.

E esse rumor é tão forte
Que eu, morto, consigo ouvi-lo,
Pois não me deixa tranquilo
Dormir o sono da morte...


*Júlio Mário Salusse*
Em “Obra Poética de Júlio Salusse (Nevrose Azul - 1884, Sombras - 1901 e Fitas Coloridas)”, 
Anais da Biblioteca Nacional, Fundação Biblioteca Nacional, 
Rio de Janeiro, Vol. 113, 1993, págs. 149/188.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Ao Teixeira de Pascoaes

'As pessoas são nada, e as cousas tudo':
Ah, se o pensaste assim, e se o disseste,
É que, infundindo-lhe alma, às cousas deste
Um coração represo, arfante e mudo!

O penumbroso monte, o tronco rudo,
Vivem na névoa humana em que os puseste;
Tornaste irmão ansioso o vento agreste
E carinhosa a relva em seu veludo.

Bendito o canto teu, porque desperta
Essa visão de uma alma já liberta
Das cadeias da luta e da miséria,

E ao Paraíso ao cabo regressada,
Porque viu, ao fulgor da Vida Etérea,
Que as pessoas são tudo, e as cousas nada!


*António Sérgio*
 
Em “Teixeira de Pascoaes − Catálogo da Exposição Bibliográfica”, Lisboa, 
PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS, SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA, 
DIRECÇÃO-GERAL D0 PATRIMONIO-COLTURAL, 1977.