sábado, 27 de fevereiro de 2021

Contato

                                         A Carlos Drummond de Andrade

Baixa um frio, uma luz
Sôbre o ansioso invocar, a numerosa
vã espera de lábios dissonantes;
No entanto, ah se conforta,
em meio aos desencontros inditosos,
ao desejo de amar que não encontra
senão em si pegadas indicantes
de amor, saber que o mesmo já pode
prescindir do que se lhe deveria,
em vez da chama, a fria
luz de um deserto frio, em vez do órgio
festim, este calado,
indefeso aceitar que me consome,
de  tal modo em mim vive o não-deserto
e o longe simulado é aceso perto.

E de tal modo penso
na seiva que  circula, na água viva
sob o vivo deserto, o quente, o úmico
de sombra que se esquiva,
não ao amor, não ao entendimento,
àqueles de que dispomos para ouvir
e ver e então gustar: parcos sentidos,
fonte imprecisa de um comunicar,
sensível quanto mais firme e disposto,
tanto pode o alvorôço
do descobrir, tanto desconcertar
o que se entende ou faz,
naquela distração ditosa e vaga
de quem passeia silencioso um cais,
sem pensar em mistério ou nunca mais.

Cobiçada verdura,
Sonhos que abrem janelas ao sem-fim
do intocado e perfeito, onde os dissimiles
do que existe e de mim
não se repelem, buscam-se amorosos
no real, como o entendo, sempre firme,
e tão de certo modo irreversível,
apesar dessa vida viva sucessão
de espelhos, que bem pode confundir
o aprender e o sentir
duplicativos, que na aceitação
talvez, sem entender
esteja o que procura a minha mão
tocando a tua mão, num mesmo ato
de amor ou de contato.


*Marly de Oliveira*
Texto extraído da Crônica “Um poeta mulher” – de Clarice Lispector,
publicada no Jornal do Brasil, em 06 de março de 1971.

Minh´alma é Triste

Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minha'alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há, gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
– Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque – mas a minh'alma é triste!

II

Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh'ahna o segue n'amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh'alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minha'ahna em notas de chorosa endeixa
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
– Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos – a minh'alma é triste!

III

Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh'alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri – mas a minh'alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
– Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s'reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp'ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
– Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores – a minh'alma é triste!


*Casimiro José Marques de Abreu*
Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

Amor e Medo
 
Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
‘Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!’
 
Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela – eu moço; tens amor, eu – medo...
 
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
 
O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.
 
É que esse vento que na várzea – ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
 
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: – que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?
 
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!
 
Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...
 
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos – palpitante o seio!...
 
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
 
Diz: – que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca – sobre um chão de brasas!
 
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
 
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.
 
Depois... desperta no febril delírio,
– Olhos pisados – como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
 
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela – eu moço; tens amor, eu – medo!...


*Casimiro José Marques de Abreu*
Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

Canção do Exílio

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria, não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!


*Casimiro José Marques de Abreu*
Em “Poesias Completas de Casimiro de Abreu”, Rio de Janeiro, Editora Ediouro, 11ª Edição, 1973.

 Carinhoso

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz, quando te vê...
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim, foges de mim!

Ah! se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, o muito que eu te quero!...
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim!

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus.
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então, serei feliz,
Bem feliz.

*Composição: Alfredo da Rocha Viana Filho (Pixinguinha)
Letra:  Carlos Alberto Ferreira Braga (João de Barro ou Braguinha)*

Em “LP SOM PIXINGUINHA”, Gravadora ODEON S.A., LADO 2, 1971.

 “Criar é um ato de sobrevivência
da identidade

não tenho nada
além desta linguagem
essa imagem
única testemunha de mim mesmo
fiel de humanidade
certidão
documento que eu me peço
se ingresso
na escuridão
nosso hoje de 3º ou 4º mundo
sem identificação

então
como um mistério
eu me decifro e abro
referências no espaço
num código refeito a
cada traço um passo
Perseguindo a identidade

e segue cega a pena
sábia diz por mim o que não sei mas sou
nessa perseguição eu sobrevivo
que outra mágica lança espelho ou balança
pode manter-me vivo?

propor o enigma me salva
da condenação a esfinge

ah estoy flaco como um bordel banhado de vermelho
e o policial grita cogito ergo sum
e tudo o que eu tenho é esta linguagem para gritar meu horror
ah nada tenho a proclamar
que as verdades se acabaram
erro entre ruínas
mas as ervas já brotaram

parir o horror parir
parir o amor ah
se o medo da loucura fosse banido
como um feitiço banido
banido
todas as portas se abrindo como pernas no parto
e cada um
de suas flores roncos sonhos e venenos carregado
pelos rios rindo
por estradas indo
soltando da boca seus mundos
num carnaval de verdade
a loucura d a r ia um novo mundo florido
esquecido
onde os monstros e vísceras são o mel de quentes favas
é a vida um pão cheiroso
que é comido.


*Nélson Xavier*
Texto extraído da Crônica “Um nome a não esquecer: Lara”, de Clarice Lispector,
publicada no “Jornal do Brasil”, em 15 de julho de 1972.

 FICTA CONFESSIO

Além de um véu diáfano de luz
jaz inerte minh’alma sepultada
num afeto que ainda me seduz
no êxtase da carne despertada.

Jaz o cio que ainda me conduz
à flora íntima de minha amada
que se despe do látego da cruz
e da veste da vida consumada.

Ela se louva de contentamento
e ritualiza no meu pensamento
este culto amoroso do degredo.

Os desejos estão adormecidos,
mas escuto da lira dos sentidos
soar o amor eterno do segredo.


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com/2016_12_14_archive.html

 “EU SEI QUANDO TU VENS

Não preciso sondar os pensamentos
nem consultar meu vasto coração
para saber os dias e os momentos
em que me vens trazer consolação...

A mim me basta olhar pela janela
e abraçar a manhã no meu jardim,
pois sei que a claridade que vem dela
é a luz do teu amor dentro de mim...

Deixo a brisa tocar a minha face,
ouço as aves que vêm me visitar
e sei de cada rosa que renasce
o teu mágico instante de chegar...

Converso com o vento no telhado
onde o tempo costuma te esperar
de um futuro presente antecipado
por anjos que me vêm te anunciar...

No canteiro de beijos e jacintos
o odor suave de uma flor qualquer
inflama de desejos meus instintos
famintos de teu corpo de mulher...

Então eu sempre sei quando tu vens
sem que precises avisar-me quando...
O amor proclama quando tu me tens
e me prepara quando estás chegando.


*Afonso Estebanez*
Extraí daqui: http://amagiadaexpressaoliteraria.blogspot.com/2016_12_14_archive.html

 “Acordes Poéticos

Não tenho segredos, é pura minh´alma,
Qual cândida aurora rasgando o seu véu!
Velando ou dormindo, chorando ou sorrindo,
Só amo – meus campos – meu solo – meu céu!

Cresci sobre um ermo tristonho e sombrio,
Soltei nas campinas meu primo cantar,
Saudei nas montanhas o sol que nascia,
Brinquei entre moitas ao claro luar!

Sou jovem, sou meiga, sorri-me o futuro
Nas fímbrias douradas de auroras de paz,
A flor das campinas só ama o infinito
Do céu, das venturas, não quer nada mais!

As flores dos prados não causam-me inveja,
Que hei flores mimosas no meu coração!
Lauréis e grandezas, eu não, não aspiro,
Não quero ter gozo tão falso, tão vão!

Não tenho segredos, é pura minh´alma,
Qual cândida aurora rasgando o seu véu!
Velando ou dormindo, chorando ou sorrindo,
Só amo – meus campos – meu solo – meu céu!


*Júlia Maria da Costa*
Em “Poesias completas”, Curitiba, Edição do Centro de Letras do Paraná, 1913.

SORRIR OU RIR SÓ FAZ BEM

O sorriso e o riso são gestos simples de linguagem universal,
que abrem semblante, fazem brilhar os olhos, relaxam a face,
o corpo e a mente, despertam a alegria, exteriorizam nossa criança interior,
melhoram a nossa saúde, desopilam nosso corpo, nos fortalecem, revigoram,
nos deixam à vontade, nos descontraem, nos soltam, nos tornam sociáveis,
aliviam nossas tensões, nos enchem de paz, liberam energias positivas
e preenchem o nosso vazio interior;
são uma demonstração de amor por nós mesmos.
Eles nos valorizam, nos enaltecem, nos tornam simpáticos e comunicativos.
Como uma bandeira de paz, derrubam muralhas,
quebrando o gelo até de um iceberg; abrem nossos caminhos,
abrem-nos portas e corações;
são uma doação de alegria, são de graça e gratificantes.
Eles nos deixam felizes, cheios de prazer de viver;
deixam lembranças agradáveis, transmitem alegria e felicidade.


*Eduardo Lambert*
Em “A terapia do riso – A cura pela alegria”, São Paulo, Editora Pensamento, 1999.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Adeus, vou-me embora!

[...]

Você reclama contra o meu desalento.
Tem razão, Francisco, sou um pouco desalentada, preciso demais dos outros para me animar.
Meu desalento é igual ao que sentem milhares de pessoas.
Basta, porém, receber um telefonema ou lidar com alguém que gosto e minha esperança renasce,
e fico forte de novo. Você na certa deve ter me conhecido num momento em que eu estava cheia de esperança.
Sabe como eu sei?
Porque você diz que sou linda. Ora, não sou linda.
Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez se possa chamar de beleza.


[...]

*Clarice Lispector*
Fragmento extraído de “A descoberta do mundo”, Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 2ª Edição, 1984.

O Sobrado I

Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé,
que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado.
Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno na solidão.


[...]

*Erico Verissimo*
Em “O Tempo e o Vento, Parte I – O Continente, Vols. I e II”,
São Paulo, Editora Companhia das Letras, 4ª Edição, 2013.

 [...]

Dá-me a tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e eu não sei como falar – a realidade é delicada demais,
só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas.


[...]

*Clarice Lispector*
Em “A Paixão Segundo GH”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 13ª Edição, 1979.

 Confessional
 
          Eu fui um menino por trás de uma vidraça
– um menino de aquário.
          Via o mundo passar como numa tela cinematográfica, mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens.
          Tudo tão chato que o desenrolar da rua acabava
me parecendo apenas em preto e branco, como nos filmes
daquele tempo.
          O colorido todo se refugiava, então, nas ilustrações
dos meus livros de histórias, com seus reis hieráticos e belos
como os das cartas de jogar.
E suas filhas nas torres altas − inacessíveis princesas.
          Com seus cavalos − uns verdadeiros príncipes na
elegância e na riqueza dos jaezes.
          Seus bravos pagens (eu queria ser um deles...)
          Porém, sobrevivi...
          E aqui, do lado de fora, neste mundo em que
vivo, como tudo é diferente Tudo, ó menino do aquário,
é muito diferente do teu sonho...
          (Só os cavalos conservam a natural nobreza.)


*Mario Quintana*
Em “A vaca e o hipogrifo”, São Paulo, Editora Globo, 2ª Edição, 2006.

“Poema à Boca Fechada
 
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
 
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
 
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quando sei
Nesse retiro em que me não conhecem.
 
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.”

*José de Sousa Saramago*
Em “OS POEMAS POSSÍVEIS”, Lisboa, Editorial Caminho, 3ª edição, 1981.

Contracanto
 
Aqui, longe do sol, que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.
 
Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.
 
Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.


*José Saramago*
Em “Poesia completa”, Lisboa, Editora Alfaguara, 3ª Edição, 2005.

 “Reza

Tem que haver um espaço pra nós dois
onde caibam nossos amores,
nossos temores,
nossos dilemas.
Tem que haver pra nós uma tema
que fale de flores.
Tem que haver uma canção
de versos sofridos, amargos e doces.
Tem que haver uma oração
que fale de ciúmes, de saudades, de perdão,
que abençoe os beijos
e os desejos retumbantes.
Para quando declinada ao fim do dia
passa ser a Ave Maria dos amantes.


*Flora Figueiredo*
Em “Florescência”, São Paulo, Novo Século Editora, 1ª Edição, 2010.

O valor do abraço

[...]

Aproxime-se mais.
Tente sentir do que um abraço é capaz.
Quando bem apertado,
ele ampara tristezas,
sustenta lágrimas,
combate incertezas,
põe a nostalgia de lado.
É até capaz de amenizar o medo.
Se for cheio de ternura,
ele guarda segredos
e jura cumplicidade.
Um abraço amigo de verdade
divide alegrias
e se apraz em comemorações.
Abraços são pequenas orações
de fé, de força e energia.
Olhe para o lado:
há alguém que quer ser abraçado
e não tem coragem de dizer.
Enlace-o.
O pior que pode acontecer
é ganhar de volta um sorriso de carinho
ou, quem sabe, uma palavra sincera.
Você vai descobrir que ninguém está sozinho
e que a vida pode ser um eterno céu de primavera.


*José Pedroso*
Em “Vivendo com otimismo (para uma vida feliz e radiante)”,
Frutal/Minas Gerais, Gráfica Cortês, Edição do Autor, 2010.

 “Saudade

Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...


*João Guimarães Rosa*
Em “Magma”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 1997.

 Antiguidades

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.

Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
‘Tomando propósito’.
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
– Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...

Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita – alta, magrinha.
Lili – baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
‘– Lili é a bengala de D. Benedita’.
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego, Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Desmorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.

O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando ‘causos’ infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
– ai de mim –
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.

*Cora Coralina*
(pseudônimo de Ana Lins do Guimarães Peixoto Bretas)
Em “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”. São Paulo, Editora Global, 20ª Edição, 2001.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

 “As belas, as perfeitas máscaras

As belas, as perfeitas máscaras de perfil severo
Que a morte, no silêncio, esculpe,
Encheram-se de uma estranha claridade...

Que anjos tocam, através do mundo e das estrelas,
Através dos sensíveis rumores,
O canto grave dos violoncelos profundos?
Alma perdida, vagabunda, Messalina sonâmbula, insaciada...

Que procuras na noite morta, Alma transviada,
Com tuas mãos vazias e tristes?
Cantam os violoncelos... A noite sobe como um balão...

Meus olhos vão ficando cada vez mais lúcidos...
Soluçam os violoncelos...
Ah, Como é gelado o teu lábio,
Pura estrela da manhã!”

*Mario Quintana*
Em “O aprendiz de feiticeiro”, São Paulo, Editora Globo, 2ª reimpressão, 2005.

 “Marcha da Quarta-feira de Cinzas

Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.

Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri
Se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.

E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...

A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir
Voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.

Porque são tantas coisas azuis
E há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...

Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz
Seu canto de paz.


*Composição: Carlos Lyra  /  Letra: Vinicius de Moraes*
Em “DESENHO MÁGICO, poesia e política em Chico Buarque”,
São Paulo, Editora Ateliê Editorial, 4ª Edição, 2002.

 “À luz do teu carnaval

Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha máscara, modela-a…
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!

Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer…

Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando…
E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval…

Modela a minha máscara!
Veste-me essas roupas!

Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo…
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma…
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir…


*Cecília Meireles”
Em “Poesia completa – Dispersos (Volume 1)”, Rio de Janeiro, Editora Global, 1ª Edição, 2017.

 Quarta-feira de cinzas

Toda a terra está envolta nas neblinas
e a friagem se difunde pelo espaço…
– longe se ouve, em cadência, passo a passo
o caminhar dos boêmios nas esquinas…

Pela sombra – as estrelas pequeninas
com sono, tem o olhar nevoento e baço…
No silêncio da noite ouço o compasso
do sereno a pingar das serpentinas…

Algum bando tardio passa adiante
– e deixa pela noite uma batida
de samba em agonia – estrebuchante…

Quarta-feira de cinzas já amanhece,
– mais outro carnaval em minha vida,
vida que há muito um carnaval parece!…

 
*J. G. de Araújo Jorge*
Em “Meu Céu Interior”, Rio de Janeiro, Editora Vecchi, 8ª Edição, 1967.

 A Rosa

Eu sou a flor mais formosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Sou a musa do poeta.

Por todos sou contemplada
E adorada.

A rainha predileta.
Minhas pétalas aveludadas
São perfumadas
E acariciadas.

Que aroma rescendente:
Para que me serve esta essência,
Se a existência
Não me é concernente…

Quando surgem as rajadas
Sou desfolhada
Espalhada
Minha vida é um segundo.
Transitivo é meu viver
De ser…
A flor rainha do mundo.


*Carolina Maria de Jesus*
Em “Antologia pessoal – (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy)”,
Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1ª Edição, 1996.

 “Muitas fugiam ao me ver...

Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia

Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto

Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.


*Carolina Maria de Jesus*
Em “Antologia pessoal – (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy)”,
Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1ª Edição, 1996.

 “A Canção de Romeu

Abre a janela... Acorda!
Que eu, só por te acordar,
Vou pulsando a guitarra, corda a corda,
Ao luar!

As estrelas surgiram
Todas: e o limpo véu,
Como lírios alvíssimos, cobriram
Do céu.

De todas a mais bela
Não veio inda, porém:
Falta uma estrela... És tu! Abre a janela,
E vem!
A alva cortina ansiosa
Do leito entreabre; e, ao chão
Saltando, o ouvido presta à harmoniosa
Canção.

Solta os cabelos cheios
De aroma: e seminus,
Surjam formosos, trêmulos, teus seios
À luz.

Repousa o espaço mudo;
Nem uma aragem, vês?
Tudo é silêncio, tudo calma, tudo
Mudez.
Abre a janela, acorda!
Que eu, só por te acordar,
Vou pulsando a guitarra corda a corda,
Ao luar!

Que puro céu! Que pura
Noite! Nem um rumor...
Só a guitarra em minhas mãos murmura:
Amor!...
Não foi o vento brando
Que ouviste soar aqui:
É o choro da guitarra, perguntando
Por ti.

Não foi a ave que ouviste
Chilrando no jardim:
É a guitarra que geme e trila triste
Assim.
Vens, que esta voz secreta
É o canto de Romeu!
Acorda! Quem te chama, Julieta,
Sou eu!

Porém... Ó cotovia,
Silêncio! A aurora, em véus
De névoa e rosas, não descobre o dia
Nos céus...

Silêncio! Que ela acorda...
Já fulge o seu olhar...
Adormeça a guitarra, corda a corda,
Ao luar!


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Sarças de Fogo)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

 “NOTURNO

Já toda a terra adormece.
Sai um soluço da flor.
Rompe de tudo um rumor,
Leve como o de uma prece.

A tarde cai. Misterioso,
Geme entre os ramos e o vento,
E há por todo o firmamento
Um anseio doloroso.

Áureo turíbulo imenso,
O ocaso em púrpuras arde,
E para a oração da tarde
Desfaz-se em rolos de incenso.

Moribundos e suaves,
O vento na asa conduz
O último raio da luz
E o último canto das aves.

E Deus, na altura infinita,
Abre a mão profunda e calma,
Em cuja profunda palma
Todo o Universo palpita.
Mas um barulho se eleva...
E, no páramo celeste,
A horda dos astros investe
Contra a muralha da treva.

As estrelas, salmodiando
O Peã sacro, a voar,
Enchem de cânticos o ar...
E vão passando... Passando...

Agora, maior tristeza,
Silêncio agora mais fundo;
Dorme, num sono profundo,
Sem sonhos, a natureza.

A flor-da-noite abre o cálix...
E, soltos, os pirilampos
Cobrem a face dos campos,
Enchem o seio dos vales:

Trêfegos e alvoroçados,
Saltam, fantásticos Djins,
De entre as moitas de jasmins,
De entre os rosais perfumados.

Um deles pela janela
Entra do teu aposento,
E pára, plácido e atento
Vendo-te, pálida e bela.

Chega ao teu cabelo fino,
Mete-se nele: e fulgura,
E arde nessa noite escura,
Como um astro pequenino.

E fica. Os outros lá fora
Deliram. Dormes... Feliz,
Não ouves o que ele diz,
Não ouves como ele chora...

Diz ele: O poeta encerra
Uma noite, em si, mais triste
Que essa que, quando dormiste,
Velava a face da terra...

Os outros saem do meio
Das moitas cheias de flores:
Mas eu saí de entre as dores
Que ele tem dentro do seio.

Os outros a toda parte
Levam o vivo clarão,
E eu vim do seu coração
Só para ver-te e beijar-te.

Mandou-me sua alma louca,
Que a dor da ausência consome,
Saber se em sonho o seu nome
Brilha agora em tua boca!

Mandou-me ficar suspenso
Sobre o teu peito deserto,
Por contemplar de mais perto
Todo esse deserto imenso!

Isso diz o pirilampo...
Anda lá fora um rumor
De asas rufladas... A flor
Desperta, desperta o campo...

Todos os outros, prevendo
Que vinha o dia, partiram,
Todos os outros fugiram...
Só ele fica gemendo.

Fica, ansioso e sozinho,
Sobre o teu sono pairando...
E apenas, a luz fechando,
Volve de novo ao seu ninho,

Quando vê, inda não farto
De te ver e de te amar,
Que o sol descerras do olhar,
E o dia nasce em teu quarto...


*Olavo Bilac*

Em “Poesias (Alma Inquieta)”, Rio de Janeiro, Editôra Paulo de Azevedo Ltda., 27ª Edição, 1961.

Tema e voltas

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?


*Manuel Bandeira*
Em “Manuel Bandeira − Poesia Completa e Prosa (Estrela da Tarde) − Volume Único”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2009.

 Poema do alegre desespero

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de um certo Fernão Barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludos
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?


*António Gedeão*
Em “POESIA COMPLETA”, Lisboa, Editora João Sá da Costa, 1ª Edição, 1990.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Como se morre de velhice

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)


*Cecília Meireles*
Em “Poesia Completa (Col. Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira)”,
Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 1993.

 Eu estou só.
O gato está só.
As árvores estão sós.
Mas não o só da solidão: o só da solistência.


*João Guimarães Rosa*
Em “Ave, Palavra”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 6ª Edição, 2009.

 Autodefinição

Na folha branca do papel faço o meu risco.
Retas e curvas entrelaçadas,
E prossigo atento e tudo arrisco
Na procura das formas desejadas.
São templos e palácios soltos pelo ar.
Pássaros alados, o que você quiser.
Mas se os olhar um pouco devagar,
Encontrará, em todos, os encantos da mulher.
Deixo de lado o sonho que sonhava.
A miséria do mundo me revolta.
Quero pouco, muito pouco, quase nada.
A arquitetura que faço não importa.
O que eu quero é a pobreza superada,
A vida feliz, a pátria mais amada.


*Oscar Niemeyer (Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho)*
Em “MINHA ARQUITETURA – 1937-2005”, Rio de Janeiro, Editora Revan, 1ª  Edição, 2005.

 “Não é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual. A curva que encontro nas
montanhas do meu país, no curso sinuoso
dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo
da mulher amada.
De curvas é feito todo o universo.
O universo curvo de Einstein.


*Oscar Niemeyer (Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho)
Em “MINHA ARQUITETURA – 1937-2005”, Rio de Janeiro, Editora Revan, 1ª  Edição,2005.

 A estação do outono

[...]

naquela manhã de lírica inspiração: cobria-se também com o manto do amor.
A poesia não está somente nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha,
a ponto de não caber nas palavras.


[...]

*Jorge Amado*
Em “O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ”, São Paulo,
Editora Companhia Das Letrinhas, 1ª Edição, 2008.

 A estação do verão

[...]

É sempre rápido o tempo da felicidade.
O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue,
seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o
correr das horas. Quando queremos que ele voe mais depressa que
o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau,
ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas.


[...]

*Jorge Amado*
Em “O GATO MALHADO E A ANDORINHA SINHÁ”, São Paulo,
Editora Companhia Das Letrinhas, 1ª Edição, 2008.

CAPÍTULO IV

MUNDO VELHO SEM PORTEIRA!

46


[...]

Se me pedissem para sugerir um símbolo gráfico para a idéia
de Tempo, eu indicaria sem hesitação a imagem duma oliveira.
Por quê?
Talvez por causa de suas conotações bíblicas,
pelo aspecto sofrido de seus troncos e galhos e por tudo quanto
o óleo que o fruto dessa árvore produz tem a ver com a vida
e a morte: o óleo do batismo, o óleo da extrema-unção, enfim,
o óleo que mantém acesas as lâmpadas, não só a dos templos,
mas todas as lâmpadas do mundo que iluminam a noite dos homens.


[...]

*Érico Veríssimo*
Em “Memórias – Solo de Clarineta Vol. II”, São Paulo,
Editora Companhia das Letras, 1ª Edição, 2005.

 Noite

Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.

Mas depois
se esconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum.
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo:
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! – Sensitiva
tocada.


*Cecília Meirelles*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, 2001.