sábado, 27 de fevereiro de 2021

Contato

                                         A Carlos Drummond de Andrade

Baixa um frio, uma luz
Sôbre o ansioso invocar, a numerosa
vã espera de lábios dissonantes;
No entanto, ah se conforta,
em meio aos desencontros inditosos,
ao desejo de amar que não encontra
senão em si pegadas indicantes
de amor, saber que o mesmo já pode
prescindir do que se lhe deveria,
em vez da chama, a fria
luz de um deserto frio, em vez do órgio
festim, este calado,
indefeso aceitar que me consome,
de  tal modo em mim vive o não-deserto
e o longe simulado é aceso perto.

E de tal modo penso
na seiva que  circula, na água viva
sob o vivo deserto, o quente, o úmico
de sombra que se esquiva,
não ao amor, não ao entendimento,
àqueles de que dispomos para ouvir
e ver e então gustar: parcos sentidos,
fonte imprecisa de um comunicar,
sensível quanto mais firme e disposto,
tanto pode o alvorôço
do descobrir, tanto desconcertar
o que se entende ou faz,
naquela distração ditosa e vaga
de quem passeia silencioso um cais,
sem pensar em mistério ou nunca mais.

Cobiçada verdura,
Sonhos que abrem janelas ao sem-fim
do intocado e perfeito, onde os dissimiles
do que existe e de mim
não se repelem, buscam-se amorosos
no real, como o entendo, sempre firme,
e tão de certo modo irreversível,
apesar dessa vida viva sucessão
de espelhos, que bem pode confundir
o aprender e o sentir
duplicativos, que na aceitação
talvez, sem entender
esteja o que procura a minha mão
tocando a tua mão, num mesmo ato
de amor ou de contato.


*Marly de Oliveira*
Texto extraído da Crônica “Um poeta mulher” – de Clarice Lispector,
publicada no Jornal do Brasil, em 06 de março de 1971.

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