segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Ao Luar

Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


*Augusto dos Anjos*
Em “eu E OUTRAS POESIAS - AUGUSTO DOS ANJOS”, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira,
41ª Edição, 1997.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Amigo

Vamos conversar
Como dois velhos que se encontraram
no fim da caminhada.
Foi o mesmo nosso marco de partida.
Palmilhamos juntos a mesma estrada.

Eu era moça.
Sentia sem saber
seu cheiro de terra,
seu cheiro de mato,
seu cheiro de pastagens.

É que havia dentro de mim,
no fundo obscuro de meu ser
vivências e atavismo ancestrais:
fazendas, latifúndios,
engenhos e currais.

Mas... ai de mim!
Era moça da cidade.
Escrevia versos e era sofisticada.
Você teve medo. O medo que todo homem sente
da mulher letrada.

Não pressentiu, não adivinhou
aquela que o esperava
mesmo antes de nascer.

Indiferente
tomaste teu caminho
por estrada diferente.
Longo tempo o esperei
na encruzilhada,
depois... depois...
carreguei sozinha
a pedra do meu destino.

Hoje, no tarde da vida,
apenas,
uma suave e perdida relembrança.


*Cora Coralina*
Em “Meu Livro de Cordel”, São Paulo, Editora Global, 5ª Edição, 1987.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Um mover d’olhos brando e piadoso

Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um desejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo gracioso;

Um escolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.


*Luís Vaz de Camões*
Em “LUÍS DE CAMÕES - OBRA COMPLETA”, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1ª Edição, 2003.

domingo, 20 de novembro de 2016

Noite de saudade

A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão esscura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!


*Florbela Espanca*
Em “POESIA DE FLORBELA ESPANCA: TROCANDO OLHARES, LIVRO DELE E
LIVRO DAS MÁGOAS
”, São Paulo, Editora L&Pm Editores, 1ª Edição, 2002.
Viração

Voa um par de andorinhas, fazendo verão.
E vem uma vontade de rasgar velhas cartas,
velhos poemas, velhas contas recebidas.
Vontade de mudar de camisa,
por fora e por dentro... vontade...
Para quê esse pudor de certas palavras?...
Vontade de amar, simplesmente.


*Mario Quintana*
Em “Sapato Florido”, São Paulo, Editora Globo, 1ª Edição, 2005.
Retrato em luar

Meus olhos ficam neste parque,
minhas mãos no musgo dos muros,
para o que um dia vier buscar-me,
entre pensamentos futuros.

Não quero pronunciar teu nome,
que a voz é o apelido do vento,
e os graus da esfera me consomem
toda, no mais simples momento.

São mais duráveis a hera, as malvas,
que a minha face deste instante.
Mas posso deixá-la em palavras,
gravada num tempo constante.

Nunca tive os olhos tão claros
e o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às arvores:
solitária, perfeita e pura.

Aqui estão meus olhos nas flores,
meus braços ao longo dos ramos:
e, no vago rumor das fontes,
uma voz de amor que sonhamos.


*Cecília Meireles*
Em “Retrato natural”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.
Cartas de meu avô

A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.

A paixão, medrosa dantes
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme…
A dor… a visão da morte…
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu…
Do meu – fruto sem cuidado
Que, ainda verde, apodreceu.

O meu semblante está enxuto
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças…

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.


*Manuel Bandeira*
Em “A Cinza das Horas”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2010.
Milagre

É nestas noites sossegadas,
Em que o luar aponta, e a fina,
Móbil e trêmula cortina
Rompe das nuvens espalhadas;

Em que no azul espaço, vago,
Cindindo o céu, o alado bando,
Vai das estrelas caminhando
Aves de prata à flor de um lago;

E nestas noites − que, perdida,
Louca de amor, minh'alma voa
Para teu lado, e te abençoa,
Ó minha aurora! ó minha vida!

No horrendo pântano profundo
Em que vivemos, és o cisne
Que o cruza, sem que a alvura tisne
Da asa no limo infecto e imundo.

Anjo exilado das risonhas
Regiões sagradas das alturas,
Que passas puro, entre as impuras
Humanas cóleras medonhas!

Estrela de ouro calma e bela,
Que, abrindo a lúcida pupila,
Brilhas assim clara e tranqüila
Nas torvas nuvens da procela!

Raio de sol dourando a esfera
Entre as neblinas deste inverno,
E nas regiões do gelo eterno
Fazendo rir a primavera!

Lírio de pétalas formosas,
Erguendo à luz o níveo seio,
Entre estes cardos, e no meio
Destas eufórbias venenosas!

Oásis verde no deserto!
Pássaro voando descuidado
Por sobre um solo ensangüentado
E de cadáveres coberto!

Eu que homem sou, eu que a miséria
Dos homens tenho, − eu, verme obscuro,
Amei-te, flor! e, lodo impuro,
Tentei roubar-te a luz sidérea...

Vaidade insana! Amar ao dia
A treva horrenda que negreja!
Pedir a serpe, que rasteja,
Amor à nuvem fugidia!

Insano amor! vaidade insana!
Unir num beijo o aroma à peste!
Vazar, num jorro, a luz celeste
Na escuridão da noite humana!

Mas, ah! quiseste a ponta da asa,
Da pluma trêmula de neve
Descer a mim, roçar de leve
A superfície desta vasa...

E tanto pôde essa piedade,
E tanto pôde o amor, que o lodo
Agora é céu, é flores todo,
E a noite escura é claridade!


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Sarças de Fogo)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

domingo, 6 de novembro de 2016

Soneto II

Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.


*Mário Faustino*
Em “Poesia Completa/Poesia Traduzida (Organização, introdução e notas de Benedito Nunes)”, 
São Paulo, Editora Max Limonad, 1ª Edição, 1985.
Soneto do desmantelo azul

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir de nós o azul ausente
e aprisionar o azul nas coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos no azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul: azul.


*Carlos Pena Filho*
Em “Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho”, São Paulo, 
Editora Global, 4ª Edição, 2000.

sábado, 5 de novembro de 2016

Fragmentos...

LXVII

Vida da minha alma:
Um dia nossas sombras
Serão lagos, águas
Beirando antiqüíssimos telhados.
De argila e luz
Fosforescentes, magos,
Um tempo no depois
Seremos um só corpo adolescente.
Eu estarei em ti
Transfixiada. Em mim
Teu corpo. Duas almas
Nômades, perenes
Texturadas de mútua sedução.


*Hilda Hilst*
Em “CANTARES DE PERDA E PREDILEÇÃO”, São Paulo, MASSAO OHNO - 
M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1983.
Cantares

I

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.


[...]

IX

[...]

Mas assim mesmo
Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...
Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade
A esperança.


*Hilda Hilst*
Em “CANTARES DO SEM NOME E DE PARTIDAS”, São Paulo, MASSAO OHNO -
 M. LYDIA PIRES E ALBUQUERQUE EDITORES, 1ª Edição, 1995.
O coração

O coração é o colibri dourado
das veigas puras do jardim do céu.
Um − tem o mel da granadilha agreste,
bebe os perfumes, que a bonina deu.

O outro – voa em mais virentes balças,
pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel − a que se chama − crenças −,
Vive do aroma − que se diz − amor.


*Castro Alves*
Em “ESPUMAS FLUTUANTES”, São Paulo, Editora Melhoramentos, 1ª Edição, 2012.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A morte

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.


*Vinicius de Moraes*
Em “Poesia Completa e Prosa - Volume Único”, Rio de Janeiro, 

Editora Nova Aguilar, 4ª Edição, 2004.