domingo, 29 de julho de 2018

Elegia a uma pequena borboleta

Como chegavas do casulo,
– inacabada seda viva –
tuas antenas – fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
– a confusão dos nossos olhos
– o selvagem peso do gesto,
– cegueira – ignorância – remotos
instintos súbitos – violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
– os espelhos que refletissem
– vôo e silêncio – os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!


*Cecília Meireles*
Em “RETRATO NATURAL”, São Paulo, Global Editora, 2ª Edição, 2014.
Fantasma

Para onde vais, assim calado,
de olhos hirtos, quieto e deitado,
as mãos imóveis de cada lado?

Tua longa barca desliza
por não sei que onda, límpida e lisa,
sem leme, sem vela, sem brisa...

Passas por mim na órbita imensa
de uma secreta indiferença,
que qualquer pergunta dispensa.

Desapareces do lado oposto
e, então, com súbito desgosto,
vejo que teu rosto é o meu rosto,

e que vais levando contigo,
pelo silencioso perigo
dessa tua navegação,

minha voz na tua garganta,
e tanta cinza, tanta, tanta,
de mim, sobre o teu coração!


*Cecília Meireles*
Em “Antologia Poética”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 3ª Edição, 2001.

domingo, 8 de julho de 2018

Deixa que o olhar do mundo...

Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes, se mostrasse?

Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.

Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Desse amor, que minh`alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo.

Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.


*Olavo Bilac*
Em “Poesias (Via-Láctea)”, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 29ª Edição, 1977.

Fragmentos...

Moinho do tempo

[...]

Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado, tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do poço da imaginação...

Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
Conter e reprimir os jovens, dar-lhes esperanças, ensinar-lhes a paciência,
a vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha parda de pobreza e limitação.

Hoje sobrará para todos mil cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém da infância.
Bem por isso mandei fazer um broche de um vintém de cobre e preguei no meu vestido do lado do coração.


[...]

*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 10ª Edição, 2013.

Parodiando Manuel Bandeira...

Este livro, Meias Confissões de Aninha
 
 é um livro tumultuado,
aberrante, da rotina de se fazer e ordenar um livro.
Tumultuado, como foi a vida daquela que o escreveu.
Consequentemente. Vai à publicidade sem nenhuma pretensão.
Alguma coisa, coisas que me entulhavam, me engasgavam e precisavam sair.
É um livro das consequências.
De consequências.
De uma estou certa, muitos dirão:
estas coisas também se passaram comigo.
Este livro foi escrito no tarde da vida, procurei recriar e poetizar.
Caminhos ásperos de uma dura caminhada.
Nos reinos da Cidade de Goiás, onde todos somos amigos do Rei.
 
(Parodiando M. Bandeira.)

*Cora Coralina*
Em “Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha”, São Paulo, Editora Global, 
10ª Edição, 2013.
Aqui reformam-se sonhos, remendam-se corações, 
alinhava-se otimismo, costuram-se desilusões. 
Borda-se carinho, pregam-se esperanças, 
confecciona-se amor, 
pesponta-se ternura, remodelam-se almas. 
Aceitam-se encomendas.
 
*Desconheço a autoria*
Por enquanto, devoro apenas

Por enquanto, devoro apenas,
com paciente ritmo,
estas folhagens do mundo.

Por enquanto, sou este corpo necessário
que se enruga à luz do dia, à leveza do ar.
Corpo não escolhido,
aceito, de paciente ritmo.

Deixai-me depois dormir meu tempo indispensável
enrolada nestes fios que humilde tece
um paciente ritmo,
deixai-me descansar nesta experiência de tela frágil
onde prolongo a aprendizagem
de cada instante na escola do paciente ritmo.
Estarei ouvindo os comandos
de infinitos professores sem voz.

Deixai-me elaborar as asas claras
de paciente ritmo,
para a alegria de não ter mais peso,
de desprender-me do obrigatório alimento,
de ter merecido a etérea liberdade.

Deixai-me ir, enfim, sobre ar e luz,
com a substância apenas das cores,
no ritmo paciente
que me vai desfazer em cinzas de seda,
num pequeno arco-íris de pó.

Mas tudo isto está sendo inventado agora,
por este corpo melancólico,
de paciente ritmo,
que resignado devora
(na verdade inapetente)
as folhagens do mundo.


*Cecília Meireles*
Em “Estudante Empírico”, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1ª Edição, 2005.

Escrito no Hospital da Lagoa, Rio de Janeiro, em 07 de dezembro de 1977...

Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. 
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. 
Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. 
Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. 
E a lágrima que não se chorou. 
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.


*Clarice Lispector* 
 Em “Clarice: UMA VIDA QUE SE CONTA (Nádia Battella Gotlib)”, São Paulo, Editora Ática, 7ª Edição, 2013.
[...]

Certo de estar perto da alegria comunico finalmente que há lugar na Poesia
Pode ser que você tenha um carinho para dar ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar que é tempo ainda, Benvinda
”.

[...]

Composição: *Chico Buarque de Holanda*

Agora vou falar da dolência de uma flor...

[...]

A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda. 
Dizem que se esconde por modéstia. Não é. 
Esconde-se para poder captar o próprio segredo. 
Seu quase-não-perfume é glória abafada mas exige da gente que o busque. 
Não grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que não se podem dizer”.

[...]

*Clarice Lispector*

Fragmento extraído da página 222 do livro “clarice lispector: nas entrelinhas da escritura”, 
Edgar Cézar Nolasco, São Paulo, ANNABLUME Editora, 1ª Edição, 2001.